“Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.” Hilda Hilst
As lágrimas caem por elas mesmas. Nem que você queira, me levará ao centro de reabilitação. Estou na Motown. Anos 50. Negras vozes, melodias negras. Amores desfeitos na gravidade de um contrabaixo.
A tinta é uma mágoa na sobrancelha. Os cílios cortinam, mas o olhar revela. E a boca adquire o remorso compartilhado. Coração de alicate nas tatuagens. Marcas no corpo. Rouca alma.
O ritmo do blues. A batida do jazz. A batida das máquinas. O entrecortar do alicate. O balanço dos vocais. Remexendo bebidas, seringas, cabelos colados. Quietos. Esvoaçantes. Voa-se muito pela fumaça. Amy Winehouse. Assim meio perdida. Em linhas quase medíocres.
“Love is a losing game”. Eu sei. Quando a cantora apareceu, não era uma menina tímida. Disfarçava o sorriso melancólico. Mostrava a dor. A postura altiva lhe recobria os cabelos ao alto de seus pés, saias bem engomadas, maquilagem de alta fantasia.
Foi tudo de verdade. Não foi um sonho que a gente teve, como aconteceu com Cartola, já disse Nelson Sargento. Nem uma epígrafe alinhavada por Oscar Wilde, a mostrar sua alma, das profundezas. Foi tudo tão real e artístico que houve quem descambasse a querer mostrá-la como uma de nós. Com os mesmos problemas. Maquilagem borrada. Seios de fora. Cicatrizes espalhadas pelo corpo magro, lânguido e aquela voz.
Era de verdade, por mais que se queira crer que não. Que fosse mais natural e óbvio tratá-la dentro de uma embalagem. Que ela fosse negra, criada nos subúrbios americanos. A sujeira, a estranheza, a excentricidade espaireceu como gotas de poeira. Incapazes de impregnarem vestidos alvos.
A sobriedade que cobra-se dos artistas parece ser a mais absurda das realidades. Pois a fantasia daquela menina egressa diretamente dos anos 50 americanos trazia na loucura o ponto de contato com estrelas claras. Cintilantes? Gostariam de dizer. Talvez um pouco mais. A palavra cisne não expressa a brancura do vôo da ave, escreveu Patti Smith.
E todos os badulaques, tintas, acessórios, imagens não capturam a voz. A voz que só é ouvida por ela própria. E por quem tem no coração uma mágoa. Verdadeira, realizada, bem guardada. Lustrada com cuidado. Amy Winehouse colocou sua mágoa na voz. Não o contrário.
E se um dia a mágoa é líquida, não petrificada como busto estóico, por que não permiti-lo à sua cantora a imaterialidade do que é eterno?
“Minhas lágrimas secam sozinhas.” Descansam as manchetes. Resta uma voz, com tudo o que quis dizer.
Raphael Vidigal
Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 23/08/2011.
11 Comentários
Que bom Rapha Raphael Vidigal!!!
; )
Muito bom Vidigal !! Parabéns !!
Eu li hj de dia e relembrei essa figura impactante. Fiquei totalmente nostálgico e emocionado com seu texto profundo. Parabéns mesmo!
Ficou MUITO bom!!! Parabenssss!!!!
\o/
Parabéns pelo texto Raphael Vidigal. Amy Winehouse por si só já nos diz tudo e traduzida em forma de poesia. Eike delícia! rsrsrs
Simoni Helfer e Olívia Mussato, olhem que maravilha isso!
arrasou hein!
Muito bom Vidigal , Excelente colunista . abraço !
eu adoro a Amy
AMO.
Uau, texto muito bom!! Parabéns, querido! 😉