Álbum: sou / nós

Primeiro trabalho solo de Marcelo Camelo condensa solidão ao barroco

Marcelo Camelo

Bucólico e minimalista, Marcelo Camelo caminha entre relva e plantas aquáticas, bonitas, que agora me escapam o nome. Monet as pintou em belo estudo impressionista. Trevo Dom Quixote dos morridos.

‘Téo e a gaivota’ sobrevoam a mata inerte, assolada em lodos, lamas, engodos, em tramas: “todo amor encontra sempre a solidão”. Romanos algarismos, distintos, destinos, reverberam as cruzadas, sinos sonos: “os ais e os hão de ser”. ‘Tudo passa’.

Um bezerro cândido é agarrado à mão d’outro enquanto mamava, ‘Passeando’: “e lá vai deus sem sequer saber de nós”. Somente uma voz e…violão. Cobra arrasta a barriga na encruzilhada, assoviando calmamente, à espera da ‘Janta’, ‘Doce Solidão’: “foge que eu te encontro, que eu já tenho asa”. Mas a insistente cidade bate à porta e da janela embaçada se a vê em cada fim de faixa o sorriso irônico-babilônico.

Mallu Magalhães sente-se à mesa de cinza áspero, colore a mais fosca pedra, companhia: “pode ser cruel a eternidade”. ‘Voilá’. Condiciona o búfalo perante a fazenda erguida por braços fortes como a terra: “ver o mundo feito faz o mar num grão de areia.” ‘Mais Tarde’.

Pede colo porque não dá pra viver sempre à beira: “moça, por favor, cuida bem de mim”. ‘Menina bordada’. Cavalo corre cambaleante crista contra cismas calejadas: “vou fingindo ser o que eu já sou”. ‘Liberdade’. Dominguinhos subestima a verdade da vida, com a sanfona além-compreensão.

Escreve uma página em branco (‘Saudade’). Clara Sverner adoça o café com piano preto. Lágrimas riscam o vidro embaçado do chalé; a chaleira treme à luz da lareira. Deus e solidão. Respiração mansa e aflita de boi no pasto. ‘Santa Chuva’: “meu coração vai se entregar à tempestade”. Violinos, violas, fagote, regência. Dois violoncelos amarrados amarelos arame farpado de feira.

Trompete, trombone. Tuba, flauta. Surdo, prato. Caixa, percussão. Arranjo, metais. Clarineta, clarone. Soprano, alto. Saxofones, carnaval. Relança ao céu o arco-íris e o sol transborda em correntes marítimas, rios e lagos, sais: “é o vento do mar, será que a gente chega, …”. ‘Copacabana’.

Naturalismo e poesia reduzida. Voz arrastada e o silêncio. Sonoplastias e ruídos estranhos. Incursões ‘Macalísticas’ e narrações fragmentadas. Renato Russo (disco V Legião) e melancolia morna. Vinhetas sonoras ambientam as músicas em tábuas. Dorival Caymmi (‘Vida Doce’): “toda beira é final de dois, eu deixo tudo sempre…”.

Atrás das matas guarda surpresa. No musgo tem o verde. Por entre a maré azulada há o branco das espumas. Crianças brincam na praia, é a infância que Camelo observa sitiado com um pingo (ou vários deles) de saudade.

Cantor

Raphael Vidigal

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Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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