*por Raphael Vidigal
“E isso é para sempre, por mais que o tempo passe e a afaste cada vez mais dele, que continua eterno naquele segundo em que o viu.” Caio Fernando Abreu
Pela primeira vez ela escapou da sombra que toda família encarna e começou a ouvir, por contra própria, aquela trupe de cabeludos e cabeludas hippies, professando o amor livre com muita libido e vitalidade, em figurinos tão exuberantes que ultrapassavam as fronteiras entre homens e mulheres binárias. O disco que acaba de lançar se encerra com uma canção feita na estrada. Sentada no chão do ônibus, ficou “sentindo aquela vibração e tocando violão no ritmo” que o automóvel imprimia ao trecho. Adriana Calcanhotto chegou a mostrar parte da canção, durante a turnê que eles empreenderam na Europa, a Gilberto Gil, um dos heróis daquele “quarteto cheio de empoderamento” que a encantou por volta de 1976, quando ela tinha dez anos. E descobria o mundo…
Foi também em 1976 que a TV Globo exibiu a novela “O Casarão”, protagonizada por Paulo Gracindo, Yara Cortes e Mário Lago. A avó não perdia um capítulo da trama. Mas o que despertou o fascínio da criança foi a voz que cantava “Só Louco”, de Dorival Caymmi, na abertura do folhetim. Outra reminiscência decorre de um pouco antes, 1973. De novo aquela voz, límpida e transparente, apelidada de “cristal” pela imprensa, agora dando conta de “Volta”, um samba-canção dolorido do gaúcho Lupicínio Rodrigues, só com o piano. “Isso me chamou muita atenção porque eu sou do Rio Grande do Sul e estava acostumada a ouvir várias pessoas cantando Lupicínio, mas sempre ao violão, nunca ao piano”, recorda. Essa voz era a de Gal Costa, doce, e bárbara.
Convite. O tempo se embola na vida e confunde a memória, porque nenhuma delas é linear. Do impacto com Os Doces Bárbaros, formado por Gil, Caetano, Gal e Maria Bethânia no auge da repressão militar, que perdurou de 1964 a 1985, à construção da canção “Nômade”, num ônibus que chacoalhava pelas estradas da Europa, Adriana jamais se descolou da música, que parece unificar esses acontecimentos num único instante, como se pudéssemos enxerga-los ao mesmo tempo, no mesmo prisma, e no mesmo caleidoscópio. O tempo também se espalhou em mil pedacinhos quando o Brasil perdeu repentinamente Gal Costa, ecoando o cristal da voz em cada ângulo do globo. Diretor da baiana na última década, Marcus Preto convidou Adriana a saudá-la.
“Coisas Sagradas Permanecem” aporta neste domingo (7) em Belo Horizonte, depois de passar por Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. O título é pinçado de “Recanto Escuro”, canção que Caetano escreveu para Gal em 2011, quando produziu o álbum que deu uma nova guinada, mais uma, em sua carreira marcada por transformações, sempre pronta a enfrentar o inédito e desconhecido. “A única coisa que eu sabia é que queria abrir o show com ‘Recanto Escuro’”, confessa Adriana, que só não arranhou o disco porque ouvia em CD, e não mais LP, atualmente vintage, na ocasião. “Custei a chegar à segunda canção porque ficava ouvindo ‘Recanto Escuro’ em looping. Aquela voz da Gal pairando sobre aquela programação maluca do (produtor) Kassin, com aquela canção maravilhosa, aquela letra, eu achei uma obra-prima”, conta.
Repertório. “Recanto Escuro” fala sobre Gal e, “ao mesmo tempo, sobre o próprio Caetano, que escreveu a letra”, pontua Adriana. Os versos da canção, regravados por Cida Moreira em 2017, entrelaçam as duas vivências. “O álcool só me faz chorar/ Convidam-me a mudar o mundo/ É fácil, nem tem que pensar/ Nem ver o fundo/ O chão da prisão militar/ Meu coração um fogareiro/ Foi só fazer pose e cantar/ Presa ao dinheiro”, delineiam. Depois da prisão de Gil e Caetano pelo regime militar e do posterior exílio em Londres, Gal assumiu a bandeira da Tropicália e se tornou a porta-voz mais rebelde e revolucionária do movimento. “Ela ia até Londres buscar canções para cantar no Brasil e fazer essa resistência, mesmo assustada como ela dizia que ficava na época”, aponta Adriana. Com a vitória de Lula e a derrota de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2022, o Brasil interrompeu as comemorações pelo golpe militar.
“Gal tem um lugar único na música brasileira que ficará para sempre e que nos ensina muito, desde a questão da técnica vocal à escolha do repertório e o jeito de se portar na vida, suas atitudes”, enumera a entrevistada. Não por acaso ela se tornou musa de diversas canções, fossem feitas para sua voz ou para a própria personagem, que aparece citada, nominalmente, em “Meu Nome É Gal”, de Roberto e Erasmo Carlos, na única vez em que a dupla oriunda da Jovem Guarda homenageou uma cantora. A música estará no repertório que Adriana leva ao palco, assim como “Caras e Bocas”, rara composição de Bethânia, que a assina com o irmão Caetano, “Vapor Barato”, o maior sucesso de Jards Macalé e Wally Salomão, inegavelmente graças a Gal, “Baby”, e etc…
Esquadros. “São anos e anos de gravações definitivas, verdadeiros clássicos, então um dos critérios que nos guiou, porque a gente precisava de critérios, foi esse de músicas feitas para a Gal”, explica Adriana. Ironicamente, Gal se queixava de não ter nenhuma música de Adriana feita sob medida para ela que, em 1998, regravou “Esquadros”, um dos grandes hits da gaúcha, lançado em 1992, no disco “Senhas”, aclamado pela crítica e pelo público. “Assisti algumas entrevistas em que a Gal falava que eu estava devendo uma canção inédita pra ela, que achava que eu não tinha feito ainda por imaginar que precisaria de uma melodia e uma harmonia muito complexas, por causa das canções que ela gravava e, de certa forma, eu acho que eu pensava isso sim, porque não faz sentido você dar uma canção que não aproveite aquela voz, aquele talento, aquela forma de dividir as frases”, admite Adriana, sem rodeios.
Em 2018, Gal colocou na praça “A Pele do Futuro”, o último álbum de inéditas da sua carreira, onde constava “Livre do Amor”, finalmente uma música de Adriana para ela. A canção havia sido pensada para um trabalho anterior, mas a intérprete constatou que ela não se encaixava tão bem no conjunto das faixas. O destino a reservou para o derradeiro álbum de Gal. “É impressionante ver o que ela faz com uma canção. Porque eu sei do jeito que mandei a música pra ela, e o que aconteceu com a gravação, como ela internalizava e dava um acabamento genial”, agradece a compositora. Adriana sente que possui “muitos pontos de aproximação” com Gal. Num dos números mais apoteóticos do espetáculo, ela mimetiza a interpretação arrebatadora da baiana em “Brasil”, de Cazuza, quando, dirigida por Gerald Thomas, Gal deixou os seios à mostra.
Nômade. A versão de Adriana para esse momento libertário e de desprendimento acontece durante a música “Dê Um Rolê”, de Moraes Moreira e Luiz Galvão, consagrada pelos Novos Baianos. Desde a descoberta precoce dos Doces Bárbaros, ela já entendia que os shows não devem se conformar em serem apenas recitais de música, “figurino, cenário, tudo tem a ver com o que eles estão dizendo, tudo faz parte do trabalho”. Assim como os gestos e as proposições. De tanto ouvir Gal, Adriana aprendeu a se locomover sobre “um repertório de espectro largo, no sentido de gravar canções muito populares e também poetas menos conhecidos, de gostar de fazer show, estar no palco”. A atual turnê, que a intérprete define como “tão pequeninha”, calorosamente recebida pelo público, terá registro audiovisual. “Eu acho importante que fique”.
Nesse mundo de impermanência, dos famosos tempos líquidos de Zygmunt Bauman (1925-2017), o filósofo polonês, e em que a presença de Gal é tão impactante que nos disfarça de sua ausência, Adriana é “Nômade”, a canção que ela criou no chão do ônibus em que viajava pela Europa com Gilberto Gil e os familiares. “Nômade quer dizer sem pouso/ Nômade é quando a casa é o corpo/ E é onde te recebo/ E é o que te entrego/ E sou tudo o que carrego amanhã cedo”. “A música é o resultado de uma observação do Gil na estrada. Eu já tinha feito coisas com ele mesmo fora do Brasil, mas não assim de conviver, vê-lo todo dia no ensaio, com aquela disciplina que eu já conhecia e que posso perceber nos músicos que trabalham com ele. A letra eu fui fazendo aos pouquinhos, na estrada, e só terminei finalmente no estúdio”. O tempo voa.
Serviço.
O quê. Adriana Calcanhotto em “Gal: Coisas Sagradas Permanecem”
Quando. Neste domingo (7), às 20h
Onde. Grande Teatro Minascentro (av. Augusto de Lima, 785, Centro)
Quanto. De R$25 (meia) a R$250 (inteira) na bilheteria do teatro ou pelo site www.sympla.com.br
Foto: Leo Aversa/Divulgação.