*por Raphael Vidigal
“Pode ser que a coisa dita não seja entendida, mas o sentimento que mora nos vãos das palavras, esse sentimento é sentido.” Rubem Alves
Aos que acusam-me de ser antigo – se bem que nem tão antigo assim – confesso: sou adepto de obras que traçam um caminho, ou o desvirtuam e inventam, refazem a própria noção de caminho, enfim, não necessariamente há um começo, meio e fim, mas existe um pensamento por trás da forma, da necessidade de se elencar tais coisas em determinada ordem, ainda que elas possam se abrir e se desdobrar como nas obras da artista plástica Lygia Clark.
Mas ainda não consegui me habituar à aleatoriedade da contemporaneidade. Para pessoas de alma antiga como eu, “Interior” é um banquete à altura. Que não se pense na noção de fartura como primeiro atributo. A delicadeza permeia todo o repertório do álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho.
“Montanha e Maré” é um exemplo. A faixa que abre o álbum é um presente de Ixa Veiga para celebrar a amizade dos dois. A compositora se mostra habilidosa no ofício de construir uma canção pop, que emana boas vibrações, sem abrir mão da profundidade. Logo de cara o ouvinte é carregado para dentro deste interior – com a licença da redundância – que fala tanto sobre nós e os outros. Fala sobre todo mundo. Daí a identificação. E o refrão é saboroso.
“Pedro Pescador” tem a assinatura de Ed, e presta reverência a essa figura humilde e pacata do imaginário popular, com uma candura que nos aproxima da personagem. “O Rio e o Mar” abre-alas para a parceria com Antônio Martins e a participação luxuosa do Trio Amaranto – que, para quem não sabe, se candidata a ser o mais importante conjunto vocal da música mineira. Ed está com tudo e não está prosa. “Outono” dá vazão à seara instrumental com vigor.
Ed segue com a pena do lápis e a palheta do violão em “Vila Rica” que, obviamente, nos convida a se insinuar pelas sinuosas vielas de Ouro Preto, essa cidade histórica e sacra, tão profana quanto contemporânea. Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós.
O arranjo contribuiu para revelar até mesmo a mim, suposto autor, o caráter um tanto surrealista da composição quando, ao final, um violão segue ao longe, nos levando para o sonho ou trazendo-nos até ele? “Belo Horizonte” tem a participação efetiva de Lucas Telles, diretor musical e produtor deste belo álbum, com quem também já tive a honra de trabalhar na homenagem “Waldir Silva em Letra & Música”, disco de chorinhos lançado em 2016. “Encontro” reflete sobre essa experiência que nos causa tanta comoção e, quando chega ao fim, traz grandes angústias. Pra encerrar, “Valsa Serena”. Pois é pra ontem.
Foto: Chris Bonfatti/Divulgação.