“(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas” e. e. cummings
A honra de ter me sido apresentado por você, ignora a conjugação do verbo. Zeca Baleiro, o inescrupuloso, desbrava os grandes sertões veredas pisando em cactos. Fura um buraco na secura da planta e dela bebe a água, jorra sede, jorra sebo, canta rap, funk, samba, funde cuca, rock, praia – no meio do deserto – com malemolência.
Os desfeitos técnicos, como uma chance da vida, embarcam na locomoção do autor, esparge na vossa cara o imperfeito, passível de erro, pecado, demora. Tudo pode para aquele que detém o pingente, grita alguém da platéia, recebe a resposta negativa. Motivo, segurança, momento, para usufruir da molequice embriagante, pirraça a descompostura de Lulu Santos.
N’ ‘O Desejo’ encana, imita o gorjear do Hip-Hop, com suas missivas e retaliações por todos os lados, lixo urbano voa na direção do homem-máquina. “E pra dor que rói a carne tesa sob a pele fina, não há um só remédio em toda medicina”, arremata com um pedaço de cano, descarga, fuligem, protesto. Pequenos chamarizes clamam espirrando petróleo petrificado.
Numa paixão verdadeira reclama a implacabilidade da desdita vida porre: “Não presto mas eu te amo”, é o ‘Último Post’, recorta moldes de triângulos, estrelas, círculos, quadrados, formas, peça a falta da canção, embola os versos tão esticados no coração de lã desfiado por mãos de avó sestrosa, solitária. Um gato a ronronar lhe confere o peso dos sapatos velhos.
‘Calma aí, coração’, tropo reggae, trafega dub, rítmica da hierarquia irrespeitável, “Esquece metas, retas e planos, veleja no mar escuro da escuridão”, e cita à revelia esgueira o descrédito Nietzsche, “o que liberta é também prisão”. Quando na peleja o descompasso passa ao largo, devo a você, que me apresentaste, lá no início do texto, a mesma escondida sob os véus do vestido violeta-negro, a percepção tardia, de que a ‘Disritmia’, trata-se no canto ansioso, aflito.
Ascendente subida desvairada infinita até o torpor completo o descontrole ascídio assédio contemporâneo. Desmaio enfim na exumação de lanças as forças, facas, garfos – só há um grito – o do desespero que tudo silencia. Após longas horas, conversas, manias, só o garoto de chapéu charmoso transforma o brega com tal poesia. Dança tango na festa junina. Isso sem falar nos dedos-estalidos.
Rabino de touca exígua, confunde letras, línguas, corpos, almas, difunde a religião no redemoinho do ateísmo, provoca a controversa, pergunta à exclamação e responde ás aspas. Hábil tatear na esperteza do macaco que rouba da bolsa o batom, pertence, blush da madame, quanta coisa diz uma ‘Tattoo’. E a querer exalta a inconformidade do verbo anti-estático, dicionário de dobras, barriga, Sancho Pança.
Dom Quixote, pasmado de ilusões, permite a balada dos moinhos distantes. Roberto Frejat lhe acompanha em ‘Nada além’, “vago na cidade entre inocentes e criminosos”. Abre a palma dos haicais de Paulo Leminski, descansam em porcelanas de cores roxas, libélulas, tulipas e margaridas. Mata a poesia e jura impertinência em ‘Mundo dos negócios’, tua canastrice não me engana, não, não mais.
Solstício de inebriantes modéstias, os rapazes ajeitam-se em bancos de madeira e dão o fino frasco do luau. Antes d ‘O Amor Viajou’ banjo de preguiça e saudade, banzo de carícia e alarde – enfeites repicam como orégano o tempero de salada verde, havaiana, abacaxi, ácido e doce. ‘Maresia’ relembra Adriana Calcanhotto, embora não sejam dela os pesos de papel.
Num regato caudaloso, porém discreto, um bilhete amarelo reduz a desintegração à alacridade de cine íris: “Você vai comigo aonde eu for… (…) fica bem, mas fica só comigo”. Cinematográficas claquetes, cortes, rolos de fitas vendam meus olhos, sem amordaçar a boca, sibila pra dentro: Charlie Chaplin e uma bailarina, você, nós dois.
‘Price Tag’, cotidiano estrangeiro, me prega uma peça de Bob Marley, mesmo sem tê-lo, impetra o ungido da gaita, a descrença no “money”, relva perdida em maio, as savanas, caçadores de pilares, antílopes, indígenas, pilastras construídas de chifre, alarido, marfim arrancado, calha-canalha-gaze. ‘Quase Nada’ rotula as garrafas descartáveis porém eternas do sucesso, afinal, a qualidade também chega lá, desviante, “rio raso, passo em falso”, e lúcido.
‘Meu amor, minha flor, minha menina’ rebobina contos de fadas lascivas, com a contumaz amizade para com a bela aliteração: “o melhor da vida é isso e ócio”. ‘Zás’ repercute a caminhada do velho moço que decidiu pôr á prova todos os venenos, atender ao conselho de Neruda (“feche os livros e vá viver”). Enquanto ‘Ela não se parece com ninguém’ é cópia-sépia de emoções recicladas, no balanço digno do chacoalhar da copa das árvores molhadas por garoa de Jim Morrison (“baby light my fire”). Entre Iracema do Adoniran e Barbie de Jaçanã, o blasé e o noir acolhem goivas.
Posterior à provocação para alguém além do palco, compete às novas tecnologias abrigar o despacho, deboche, descaso para com a ferramenta nova: Facebook, utilizado para alargar distâncias, ‘Meu amigo Enock’, feito para o desdém carinhoso. Eis o gran momentâneo momento da noite: ele irá dançar com seus companheiros de farra e instrumento, não sem antes destilar: “brasileiro gosta mais do que música de música coreografada, vide sucessos do tipo Michel Teló e para não ficar por baixo…” O FUNK DA LAMA!
Só repito o que me ensinou: “Você vai ter que responder pelo que faz, você vai ter que responder pelo que diz…” e “o mundo está atoladinho na lama”. Picante demais para qualquer comentário, só o dedinho indicando a vocação para macaco disse me invoca a postura. Calei-me de ojeriza vermelha, ria como um casto retorcido na missa, e o castiçal me olhos iluminava. Despediram-se como quem sai para uma volta breve.
Breve retornaram, canto espontâneo e simples da fábula de Raul Seixas, ‘A Maçã’, alvo das flechas de muitos, cai na cabeça de poucos (talvez Newton) e a dor alfineta. Agulha fere de dissabor Paulo Coelho (‘péssimo escritor, mas compôs algumas boas músicas, como esta’, diz ele, o anfitrião). Antes do término, conclama os convidados a brindarem com desajeito, desacato, da ordem e civilidade.
Pisa num palco simples como quem pega uma rosa no chão, abandonada, quase murcha, assombrada nos últimos dias de finitude e medo, mas ainda rosa, pois sempre será. Ecos de ‘Babylon’, ‘Alma Não Tem Cor’ – repetidos à exaustão e alegorias contínuas – ‘Telegrama’, até o ápice maremoto mares ‘Mamãe Oxum’, repartidos em campo de montanha e trigo por homenagens aos mineiros Vander Lee com “românticos são loucos”, Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, outros que já não me lembro.
Lembro-me apenas do sorriso dela, me abraçando, abrandado a calma, ao final.
P.S.: “Mamãe No Face”, perfeita sacada de estilingue! (espetáculo áudio-visual)
Raphael Vidigal
14 Comentários
Quase morri q n deu pra ir no show.. =[
cada dia que passa amo mais voce
você é o autor do texto?
show de bola Raphael! parabéns!!!!
Parabéns! Excelente… =]
Maravilhosoo!!!! Estou emocionada com tanta doçura e clareza!
Revivi o show como quando “ressinto” a maresia… sensação de “descontenção” e contentamento desprendido, desamarrado. Não entendeu? É isso mesmo, inexplicável!
Maravilhosas as sensações que senti!
O deboche, a ironia foram muito bem colocadas! hahahah
Ri com prazer novamente… Q delícia! O Zeca é o cara… sempre achei, sempre acharei!
E é claro… é maravilhoso e uma honra ser mencionada junto a alguém e por alguém que admiro tanto! Meu sorriso, olhares, gestos estão soltos por entre seus dedos e as canções do Zeca… esplêndido!
adoooooro!
Ah!!!!!!!! Quero esse cd!
Mandiu bem demais Vidi….. adoro Zeca Baleiro!
é que ontem eu recebi um telegrama. Era vc , de Aracaju, ou do Alabama… Nao sei que que eu curti mais. O texto ou o comentário da Ale!
Fui no show no palácio das artes e entrevistei o Zeca. Bacana demais
Salve, Vidigal! interessante seu texto, mas minhas percepções com as melodias de Baleiro foram (como pontuou Márcio Serelle), IMPIEDOSAS… Francamente, achei as novas produções musicais de Zeca muito fracas!
Agradeço a todos pelo carinho e participação. Voltem sempre ao site! ^^ Bjos
Amooooo!!! Zeca vc é d+>