*por Raphael Vidigal Aroeira
“Etelvina…
Acertei no milhar!
Ganhei quinhentos contos não vou mais trabalhar” Wilson Batista & Geraldo Pereira
Moreira da Silva nasceu no Rio de Janeiro, no dia 1º de abril de 1902, e morreu na mesma cidade, no dia 6 de junho do ano 2000, aos 98 anos de idade. Cantor e compositor, ele ficou especialmente conhecido como o grande divulgador do chamado samba de breque, que consiste em inserir pausas e falas no meio do samba, com um andamento diferenciado. Entre os seus maiores sucessos, estão músicas como “Acertei no Milhar”, “Na Subida do Morro”, “Cidade Lagoa” e “O Rei do Gatilho”. No final da vida, Moreira se uniu a Bezerra da Silva e Dicró, com quem formou um trio de formidáveis malandros. Apesar dessa fama, Moreira não bebia nem fumava, e gostava de dormir cedo.
“Arrasta a Sandália” (samba de carnaval, 1933) – Aurélio Gomes e Baiaco
Depois de se virar como motorista de táxi e auxiliar de garagem, entre outras profissões, Antônio Moreira da Silva, que perdeu o pai jovem, quando tinha 11 anos de idade, lançou seu primeiro sucesso como cantor, no ano de 1933. “Arrasta a sandália” foi um samba de carnaval de autoria de Aurélio Gomes e Baiaco que esbanjava a condição do protagonista: “arrasta a sandália, minha morena, estraga mesmo e não tenha pena…” “que eu te dou outra de veludo, enfeitada de fita, e mando vir lá da Bahia”.
“Implorar” (samba de carnaval, 1935) – Kid Pepe, Germano Augusto e João Gaspar
Em 1935, Moreira da Silva venceu o carnaval cantando o samba “Implorar”, de Kid Pepe, Germano Augusto e João da Silva Gaspar. Na época a autoria foi contestada por Divino, que dizia ser ele, junto com seu falecido primo Cedar Silva, diretor da escola de samba Mocidade Louca, o autor da canção. Acontece que Divino estava no leito de um hospital, e não teve muito tempo para brigar pela paternidade, que acabou sendo um belo presente para a música brasileira.
“Acertei no Milhar” (samba, 1940) – Wilson Batista e Geraldo Pereira
A invenção do improviso foi por mero acaso, segundo o próprio Moreira da Silva, responsável direto pela popularização do “breque”. De acordo com o que ficou na história, ele teria remendado com astuto falatório os versos de “Jogo proibido”, em 1937. E foi esse exímio talento que convenceu o radialista César Ladeira a oferecer-lhe seguinte valor para cantar na Mayrink Veiga, ao que ele respondeu: “Ora, César, não vês que eu sou o tal?!”. Como na canção de Wilson Batista e Geraldo Pereira de 1940 ele acertou no milhar e ingressou de vez nas paradas de sucesso. Só que a astronômica quantia não passou de um sonho.
“Amigo Urso” (samba, 1941) – Henrique Gonçalvez
Segura a faixa que nosso Moreira não bebe, não fuma, não perde a noite de sono. E não há nada que o irrite mais que certo amigo urso não pagar a condição: “malandro que é malandro, não é malandro”. Moreira da Silva viaja até o polo Norte para cobrar de certo amigo Urso que não lhe dê o calote. O samba pitoresco de Henrique Gonçalvez foi mais um êxito da carreira de Moreira que enfim deslanchava. Após um começo trôpego como cantor de umbandas e serestas ele encontrou seu verdadeiro terreno. E a década de 40 seria fértil em acertos musicais, especialmente em 1941.
“Esta Noite Eu Tive Um Sonho” (samba de breque, 1941) – Wilson Batista e Moreira da Silva
O único samba que se tem notícia que traz uma citação na língua de Goethe, Brecht, Beethoven e Einstein. Assim é “Esta Noite Eu Tive Um Sonho”, samba de breque de 1941, composto por Wilson Batista e Moreira da Silva, que, na segunda estrofe, apela para o alemão: “Ich nag dich, seu Fritz”. A tentativa é de se fazer entender na terra das personalidades citadas, depois que a personagem do samba salta em Berlim. “O garçom respondeu: ‘não pode ser não!’/ Fiquei furioso e fui ‘hablar’ ao patrão”, canta Moreira da Silva, que lançou a música, mais tarde regravada por João Nogueira no disco “Wilson, Geraldo e Noel”, de 1981. A música traz uma série de tiradas impagáveis durante a letra.
“Na Subida Do Morro” (samba, 1952) – Moreira da Silva e Geraldo Pereira
Trocar músicas na década de 50 era algo comum, segundo o próprio Moreira da Silva. Era essa relação que ele mantinha com Geraldo Pereira. Um colocava o dedo numa autoria daqui, outro dali, e assim estabeleceu-se a parceria. Uma delas foi “Na subida do morro”, samba que conta com a graça maliciosa de Moreira da Silva, as intempéries de um triângulo amoroso que se transforma em crime passional. A canção politicamente incorreta foi um dos maiores sucessos de sua carreira, lançada em 1952.
“Olha o Padilha!” (samba, 1952) – Moreira da Silva, Ferreira Gomes e Bruno Gomes
Durante a década de 1980, Moreira da Silva foi socorrer o músico Jards Macalé, que excursionava com ele e acabou detido pela polícia. A encrenca rendeu a única parceria da dupla, batizada de “Tira os Óculos e Recolhe o Homem”. Pois no samba “Olha o Padilha!”, Moreira da Silva brinca com a fama pra lá de negativa de certo delegado, que teria realmente existido. A música foi composta em 1952, ao lado de Ferreira Gomes e Bruno Gomes, e aborda, como de costume, as asperezas vividas no cotidiano do morro, sempre com muito bom humor. E se tornou um dos maiores sucessos da carreira do cantor.
“Cidade Lagoa” (samba, 1959) – Sebastião Fonseca e Cícero Nunes
“Cidade Lagoa” flagra o povo do Rio de Janeiro em apuros. Tudo porque a cidade foi de novo acometida por uma enxurrada. Os versos irreverentes de Cícero Nunes e Sebastião Fonseca debocham da situação repetida e apresentam novas soluções: comprar lancha, canoa ou ser girafa! Gravada por Moreira da Silva em 1959 e regravada por Jards Macalé em 1998, a música retrata uma realidade inalterada. Eis outro grande sucesso de Moreira da Silva.
“O Conto do Pintor” (samba de breque, 1960) – Miguel Gustavo
Miguel Gustavo teve, como modelo de composição, o hábito de inserir diversas personalidades em sambas feitos sob a medida para a interpretação do intrépido Moreira da Silva. No contexto das histórias de aventura, o humor era o grande trunfo. É o que acontece, por exemplo, no samba de breque “O Conto do Pintor”, lançado por Moreira em 1960, com enorme sucesso. Ali, Miguel tira onda com o mundo das celebridades e suas afetações artísticas, por meio de um sujeito que investe na persona de pintor. Jards Macalé regravou tal pérola.
“Ciumento” (samba, 1962) – Moreira da Silva e Airton Amorim
A parceria entre Moreira da Silva e Airton Amorim começou em 1952, quando o primeiro gravou “Cavaleiro de Deus”, parceria do segundo com Ferreira Gomes. Na sequência, os dois compuseram “Rosinha” e “São Sebastião”. Em 1962, Moreira registrou outra parceria com Airton Amorim, desta vez no LP “Moreira da Silva, o Tal… Malandro”, lançada pela Odeon. “Ciumento” segue todos os preceitos arraigados à paternalista e machista canção popular brasileira, justificando o comportamento tóxico e abusivo do homem, que se acha no direito de expor as próprias inseguranças com ares de autoridade. “Toma atitudes que condeno e que reprovo/ Certamente não aprovo/ O seu modo de andar…”, lamuria o eu-lírico da canção. Ultrapassada em termos de discurso, a canção é um arquivo histórico de como a sociedade se comportava.
“O Rei do Gatilho” (samba, 1962) – Miguel Gustavo
Inspirado nos filmes de faroeste americano, Miguel Gustavo criou uma épica epopéia para seu personagem. Moreira da Silva vestiu a estampa de Kid Morengueira e saiu atrás de justiça. Com direito a um amigo Índio, cavalo, mocinha temerosa e citação de Hitchcock, a história bateu recorde de bilheteria na discografia do malandro herói, que ainda por cima terminava com a viúva do bandido que matou: “que até hoje ninguém sabe quem morreu, eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu…”. Ou não! Tudo isso em 1962.
“Morengueira Contra 007” (samba, 1968) – Miguel Gustavo
Miguel Gustavo teve como modelo de composição inserir diversas personalidades em sambas feitos sob medida para Moreira da Silva cantar. No contexto das histórias de aventura, o humor era o grande trunfo. Essa fórmula esteve inclusive presente na música “Super-heróis”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. A exemplo das bem sucedidas sequências cinematográficas, o herói Kid Morengueira cumpria sua missão ao final, fosse contra 007 ou qualquer outro. Mais uma vez em 1968 ele não se fez de rogado. E assim foi até o fim da vida, aos 98 anos, disposto como nunca a uma boa malandragem.
“Os Três Pagodeiros do Rio” (samba, 1995) – Dicró, Wilsinho Saravá e Edson Show
Jaime Alem tem muita história para contar, e laudas de jornal dificilmente seriam suficientes. Neto de maestro, filho de mãe bandolinista e aluno de Guerra-Peixe, ele trabalhou com Sueli Costa, se apresentou com a Orquestra Sinfônica Nacional, escreveu peças populares e eruditas, foi gravado por Elba Ramalho e produziu um emblemático disco da tríade de malandros formada por Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró. Lançado em 1995, em um projeto-especial da gravadora Cid, o álbum “Os 3 Malandros In Concert” reúne peças impagáveis, dentre elas o delicioso e satírico samba “Os Três Pagodeiros do Rio”, de Dicró, Wilsinho Saravá e Edson Show.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.