De Cazuza a Chico Buarque: rebeldia e resistência na MPB

*por Raphael Vidigal

“A escrita trabalha não só com a memória das coisas realmente acontecidas, mas, com todo o reino do possível e do imaginável.” Alfredo Bosi

O primeiro impacto que senti diante da palavra foi sob a forma de música, quando descobri uma letra de Cazuza (1958-1990) intitulada “Brasil”. O contexto competiu para aquele espanto. Na terceira série do ensino fundamental, era a primeira vez que, por escolha da professora, o dia 7 de setembro abria mão do tradicionalíssimo Hino Nacional Brasileiro em detrimento daquela canção interpretada de maneira rascante, cheia de rebeldia e inconformismo, em que o seu autor exibia sentimentos contraditórios, especialmente nos versos de arremate: “grande pátria desimportante/em nenhum instante eu vou te trair…”.

Foi através de Cazuza que passei a investigar e descobrir outros nomes da música popular brasileira com os quais ele mantinha uma relação ora de admiração e idolatria, outrora de contemporaneidade e competição. Esse longo percurso rendeu a minha primeira oportunidade profissional, quando eu já cursava Comunicação Social com ênfase em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Em 2009, comecei a produzir textos e pesquisas sobre música para o programa “A Hora do Coroa”, exibido aos domingos de manhã pela Rádio Itatiaia, com apresentação do locutor Acir Antão.

No ano seguinte, veio a primeira matéria impressa nas páginas do jornal Hoje em Dia, com um artigo sobre a trajetória da obscura cantora Leny Eversong (1920-1984), que completaria 90 anos na ocasião, data que vinha sendo absolutamente ignorada pela imprensa.

O mesmo veículo ofereceu-me a oportunidade para uma entrevista que rendeu matéria de capa e três páginas com o músico Jards Macalé, de passagem pela capital mineira para uma apresentação. As colaborações com o Hoje em Dia se intensificaram e logo abrangeram outras áreas como teatro, literatura e artes visuais. Em 2012, eu já batia ponto no jornal.

Nesse meio-tempo, o trabalho de conclusão de curso que apresentei na PUC-Minas se deteve sobre a relação poético-musical da obra de Cazuza com a prática da homossexualidade na vida privada do artista. Ao estabelecer essas relações de ordem ética e estética preponderou o interesse pela palavra que guiou os meus caminhos pessoais e profissionais até a música, tornando-me repórter especializado da área no jornal O Tempo (2017 a 2020), Rádio Itatiaia (2021 a 2023) e blog Esquina Musical (2012 até o momento presente).

Em 2016, produzi um disco de chorinhos em homenagem ao cavaquinhista mineiro Waldir Silva (1931-2013), ao colocar letra em 12 melodias de sua autoria. Novamente, a relação entre música e literatura se estabelecia, por meio de sons prenhes de significados que preenchi com elaboração poética. Também publiquei dois livros pela editora Asa de Papel; o primeiro de poesias (“Amor de Morte Entre Duas Vidas”, de 2014); o segundo investindo numa prosa experimental e inventiva (“O Sol Áspero”, de 2018). Na seção dedicada à poesia do caderno Pensar, do Estado de Minas, publiquei poemas inéditos em 2017. Vieram outras letras de música e outras parcerias com músicos e compositores mineiros que renderam sambas, canções e marchinhas.

Tudo isto para dizer que meu interesse pela palavra se aprofunda na medida das experiências. A palavra é o norte que guia as minhas pulsões criativas. A palavra jornalística; a palavra como letra submetida à melodia; a palavra poética impressa no livro; a palavra no corpo do ator em texto teatral ainda inédito (“Quando tudo desaparecer”); a palavra intuitiva e do pensamento crítico. Independentemente da condição e do contexto, a palavra é sempre criadora de sentido e, no caso, interessa-me sobremaneira que o seu sentido ético se abra às possibilidades estéticas.

Recentemente, ao cursar uma matéria isolada no Mestrado em Letras da PUC, tive a oportunidade de elaborar uma perspectiva analítica que intenciono aprofundar. Não se passa incólume pela música popular brasileira sem abraçar o cânone do qual Chico Buarque é, sem dúvida, seu representante mais legitimado por uma gama de estudos acadêmicos que enriqueceram a percepção acerca da obra do compositor. Compete aos clássicos abarcar uma infinidade de camadas, dimensões e possibilidades.

Durante o curso mencionado no Mestrado da PUC, resolvi me deter sobre a elaboração do horror através do lirismo no texto “O Contrário da Morte”, do escritor italiano Roberto Saviano (https://esquinamusical.com.br/a-elaboracao-do-horror-atraves-do-lirismo-em-o-contrario-da-morte-de-saviano/). Com seu gênio que é tanto poético quanto musical, Chico Buarque também adentrou com maestria essa esfera pouco explorada, em geral, da criação humana, ainda cercada de tabu. Como extrair beleza do horror? E a quê isto serve? É válido?

Essas são apenas algumas das perguntas que guiarão um estudo sobre esse tema, sem dúvida nenhuma, instigante e essencial para tempos em que a barbárie parece tomar a forma de uma naturalidade mais aterradora que sua própria condição natural. Em “Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque”, Adélia Bezerra de Meneses oferece uma visão aguda e complexa sobre matizes e meandros da produção de um de nossos mais talentosos compositores, um notável artesão da palavra, dedicado a lustrar o seu sentido mais profundo com o apuro de um ourives.

Pois Chico Buarque é capaz de escrever com beleza, inclusive, sobre uma mãe que nutre desejos de violência contra a filha, como é o caso da impressionante “Uma Canção Desnaturada”, interpretada originalmente pela cantora Marlene na peça “Ópera do Malandro”, e que ganhou uma versão ainda mais carregada de tensão no canto rouco e blues de Cida Moreira. Ou, ainda, de comparar a saudade a um membro amputado, alcançando a sua sensação mais real e dramática, no caso de “Pedaço de Mim”, gravada em dueto com Zizi Possi.

Em “Não Sonho Mais”, Chico cria imagens poderosas para expressar o aspecto horrendo e terrífico da ditadura militar no Brasil, que congrega morto-vivo, flagelado, esfolamento, carniça e tripa. “Hino de Duran”, do mesmo período, fala sobre tumor, estorvo, com o protagonista pregado na cruz à revelia dos urubus. O incrível é justamente que, a despeito da abjeção do conteúdo, as palavras, dispostas por Chico, aliadas à melodia, criam beleza e até causam prazer. Mas não um prazer pervertido, não uma beleza conformista, ao contrário, são revolucionários e dignos.

Com a canção “Querido Diário”, de 2012, Chico prova que continua afiado, ao tramar essa relação fina e aguda entre a beleza e o horror. Um cão arranca-lhe um pedaço. A ovelha oferta-se ao sacrifício. E o inimigo carrega o porrete para estraçalhá-lo. “Mas eu não quebro não/Porque sou macio, viu?”, arremata. Novamente no canto de Cida Moreira a canção revela toda a sua dimensão ao mesmo tempo horripilante e lírica. E a resistência ao horror não está em almejar edificá-lo, nem em somente denunciá-lo, o que seria um passo ainda primitivo, insipiente, nessa luta que se trava simbolicamente com vistas ao mundo das coisas irremediavelmente aflitivas. O que a poética de Chico Buarque pode nos mostrar é que a elaboração do horror através do lirismo converge a potência do real à potencialidade artística, ampliando a nossa concepção acerca da vida.

Foto: Leo Aversa/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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