Com boas intenções, ‘Barbie’ se sai melhor quando assume a comédia

*por Raphael Vidigal

“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.” Simone de Beauvoir

A ambição de “Barbie” fica clara logo na primeira cena. Ao aludir à clássica abertura de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, o filme de Greta Gerwig marca posição. Ou seja, o repertório vai muito além de desfilar futilidades sobre uma boneca loira que definiu o imaginário de várias gerações.

A sacada funciona, porque não cai no pedantismo. Munido de humor e de uma boa dose de ironia, o roteiro busca alicerçar duas características cada vez mais raras no cinema: entreter e refletir. Longe de abrir mão do divertimento, “Barbie” consegue, através de uma história que tinha tudo para cair no clichê, tecer comentários interessantes, muitas vezes ácidos, sobre essa tal realidade.

Barbies são muitas, como explicita o longa. Acompanhando as transformações do tempo, de ordem social e cultural, os comerciantes da boneca mais famosa do mundo logicamente seguiram à risca o manual capitalista, que, ao invés de combater, prefere assimilar sob a forma de produto as reivindicações feministas, diluindo o seu poder de gerar uma mudança de fato.

Cabe a Margot Robbie encarnar a primeira Barbie, a original, cuja imagem angelical, curvilínea e loira é definida com perfeição na seguinte frase, dita por ela mesma no filme: “Pensa numa Barbie”. Essa Barbie ganha a alcunha de “estereotipada”, colocando, mais uma vez, o dedo na ferida do filme.

Há também a “Barbie Estranha”, aquela que a criança rabiscou e cortou os cabelos, vivida pela cantora Pink, entre uma profusão de modelos que abarcam a diversidade trans, negra, oriental, obesa, cadeirante, e etc., conversando com pautas identitárias e a perspectiva de que essa construção cultural atua para oprimir e subjugar as mulheres.

O desempenho de Margot é tão bom que poderia segurar o longa, amparado pelo roteiro e, sobretudo, a escolha pelo tom cômico, que abraça o absurdo e ri do risível. Esse ridículo é o mundo dos homens, seja na submissão do Ken de Ryan Gosling e seus pares na Barbielândia, seja na empáfia de Will Ferrel, o presidente da Mattel, empresa que comercializa a boneca, e seus próceres, no mundo real.

A crítica a esse modo masculino e masculinizado de gerir o planeta é outro ponto alto da película, justamente porque assume a comédia. Quando se leva a sério e tende para o drama e o discurso direto, o filme escorrega no didatismo, e provavelmente afasta aqueles que podem se sentir confrontados. Em situações como esta, humor e ironia valem mais do que as boas intenções. Ainda que as demandas sejam legítimas, a forma é fundamental numa história.

Foto: Warner Bros./Reprodução

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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