Último disco de Elza Soares brada contra o preconceito e as desigualdades

*por Raphael Vidigal

“É preciso batalhar duro para ganhar o pão e o sono, e a gente fica meio aleijado com tanta coisa faltando.” Eduardo Galeano

Duas influenciadoras entregam bananas e um macaco de pelúcia para meninas pretas. Um segurança branco aponta uma banana para um homem preto como se fosse uma arma. Todo um estádio de futebol imita sons de macacos em direção ao jogador negro. Quando esses fatos aconteceram, Elza Soares (1930-2022) já havia gravado o seu último álbum, “No Tempo da Intolerância”, que acaba de ser lançado. Não que a cantora tenha sido visionária ou premonitória. A verdade é que tais crimes talvez nunca tenham deixado de acontecer, envolvendo colonizadores e colonizados, especialmente no último país a abolir a escravidão na América Latina. Elza foi uma das vítimas que sofreu na carne esse preconceito e, ao longo da vida, transformou a dor em resistência.

“No Tempo da Intolerância” carrega a cicatriz da urgência, tanto pela idade de Elza, que o gravou beirando os 90 anos, quanto pelo período em questão: o Brasil tinha na presidência a extrema-direita racista, homofóbica, patriarcal e saudosista de uma ditadura que praticou torturas e assassinatos em série, com sadismo indisfarçável. Esse sentimento de indignação e disposição para a luta atravessa as dez faixas, a começar pelo desabafo que ganhou contornos musicais com uma guitarra blueseira ao fundo. “Justiça” se vale de um discurso espontâneo e emocionado de Elza, que se integra ao conjunto das canções. É a senha para a opção pela narrativa direta como projétil. Elza parte para o enfrentamento e toma o seu partido: ao lado dos mais fracos.

A faixa-título invoca Martin Luther King, militante da igualdade racial que acabou assassinado nos Estados Unidos, em 1968. Elza desfia um corolário de frases feitas que reforçam discriminações cotidianas, com postura questionadora. O arranjo confere peso à canção. Numa só tacada, a intérprete ataca os fascistas, defende mulheres e bichas. Da mesma forma, “Pra Ver Se Melhora” segue essa trilha que tem o mérito de permanecer espirituosa, apesar de tocar em temas áridos. Ambientada numa feira, a letra reclama do preço dos alimentos, uma das tragédias do povo brasileiro submetido às crueldades empertigadas do neoliberalismo. A fome é um fenômeno patrocinado pelo rentismo. “No carro do ovo/ Tá bem mais em conta/ Aquele que a galinha chorou”.

“Coragem” se insinua dançante, pois é canção para sair do lugar e não aceitar as condições impostas. Misto de resistência e denúncia. Elza conclama à batalha. A leve inflexão no bolero “Te Quiero”, com verso em espanhol, não se dá por inteira. Por trás do aparente romantismo segue a determinação em se livrar das violências de gênero. Elza, que vivenciou um romance abusivo com o ex-jogador Garrincha, incentiva as mulheres a não aceitarem menos do que merecem, a se valorizarem cada vez mais. Essa primeira parte do álbum tem outro diferencial importante. Elza demorou mais de um século para gravar um disco só com canções inéditas, feitas sob medida para ela. No derradeiro movimento de sua carreira, supera outra limitação e realiza nova proeza.

Agora ela assina as próprias canções, num decisivo passo no campo da autoria feminina, de ter voz, ser a sua própria voz e se dizer por si mesma. De musa ela passa a autora, uma das principais reivindicações dos movimentos de libertação sociocultural das esquerdas progressistas. Do seu caderno de anotações saíram as frases que preenchem as primeiras canções, e temos uma Elza compositora, valorizada também pelo pensamento que criou. A autoria feminina prossegue como uma marca do álbum. Tanto que é de Rita Lee (1947-2023), com melodia do parceiro Roberto de Carvalho, a letra de “Rainha Africana”, numa homenagem que se tornou póstuma para ambas. A faixa padece de seu sentido original, abafada pelo arranjo suntuoso que a descaracteriza. Sua vocação pueril e despretensiosa ganha contornos graves, triunfais.

Nada que comprometa “Mulher pra Mulher”, que chega em seguida, amparada por novo falatório de Elza. A composição de Josyara segue a cartilha didática, literal, mas insere uma perspectiva que se torna mais interessante quando é capaz de amplificar suas conotações, como no caso do verso “vai ter que pautar, escutar, incluir/ no seu feminismo de bandeira branca/ a minha pele negra”. Ou seja: a abordagem feminista das mulheres pretas não trabalha com concessões, pois o conflito se impõe, como fica claro ao longo da faixa. “Feminelza”, de Pitty, parte de um trocadilho no título com o nome da anfitriã, em estratégia pouco criativa, e não evolui no assunto, repisando o óbvio. Embora ele seja necessário diante dos absurdos que tomam conta. “Quem Disse”, de Isabela Moraes, reverencia a solidariedade, valor em desuso no capitalismo.

Derradeira faixa do último disco de inéditas gravado por Elza Soares, “No Compasso da Vida” é o encerramento apropriado para a existência de uma das mais expressivas artistas da nossa cultura, e promove o encontro com outra figura fundamental: Dona Ivone Lara, primeira mulher preta a ter um samba-enredo cantado na avenida, mostra como uma melodia inspirada faz a diferença. Ao contrário das composições retas que têm se alastrado na música popular, ela brinda o ouvinte com caminhos melódicos envolventes e sinuosos, que tornam fácil à poesia alavancar a emoção. Elza canta como quem se despede de tempos sombrios e abre os braços para uma esperança teimosa, impertinente, até ingênua, que a domina. E nos convence de que é possível…

Foto: Victor Affaro/Divulgação.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]