Peça ‘Babilônia Tropical’, com Carol Duarte, reflete sobre racismo no Brasil

*por Raphael Vidigal

“O anjo transpôs a barra,
Diz adeus a Pernambuco,
Faz barulho, vuco-vuco,
Tal e qual o zepelim
Mas deu um vento no anjo,
Ele perdeu a memória…
E não voltou nunca mais.” Murilo Mendes

Suspensos, como se não pertencessem a esse plano, eles foram considerados uma das sete maravilhas do mundo e, em 1978, ganharam música de Rita Lee. Os “Jardins da Babilônia”. É de uma coisa bem real, que estrutura o nosso mundo, que a peça “Babilônia Tropical: A Nostalgia do Açúcar” pretende tratar. Carol Duarte, atriz premiada por “A Vida Invisível” e pela personagem trans da novela “A Força do Querer”, da Rede Globo, agora enfrenta a si mesma, e nos convida a mirar esse mesmo espelho. “Olhar para nosso passado e nomear quem foram os donos de escravos, os exploradores, é importante para que possamos desenhar o nosso futuro”, constata.

No palco, Carol vive Cris, uma atriz que deve encenar a vida de Anna Paes, “figura histórica sobre a qual temos poucas informações”. “Uma dona de engenho que viveu em Recife, informação suficiente para que possamos usá-la como representante da estrutura colonial e escravocrata”. A metalinguagem do espetáculo é um recurso que serve ao intento de carregar esse passado, aparentemente longínquo, até o presente. “São artistas tentando elaborar aquele tempo à luz do nosso. Essas duas figuras são construídas como ideias, elas representam parte da nossa sociedade, um pensamento, uma postura cheia de privilégios e pouca elaboração sobre si mesmo, egóicas na medida em que querem ver seus desejos sanados a qualquer custo”, aponta.

Enredo. Ela toma como exemplo da contemporaneidade da questão a enxurrada de notícias recentes sobre empresas produtoras de vinho e sucos de uva, especialmente no Sul do Brasil, que mantinham trabalho escravo em suas dependências. “Se, por um lado, é chocante que, em pleno 2023, empresas que na propaganda se mostram dignas e recebem selos de qualidade, prêmios de ‘melhor empresa para se trabalhar’, na realidade são escravagistas; por outro lado percebemos que nunca foi diferente na nossa história. Como reestruturar nossas fundações sem reconhecer de onde viemos? É um trabalho árduo e incompleto, pois essa é uma chaga histórica, uma dívida, que o teatro não resolve, mas reflete”.

Carol considera que “discutir a branquitude é reelaborar os mecanismos e as estruturas em que nós, brancos, estamos metidos até o último fio de cabelo, e não existe um ponto de chegada, teremos que sempre olhar para isso e quebrar, refazer nossas estruturas. Talvez, assim, possamos pensar num futuro antirracista”. No palco, ela é acompanhada por Jamile Cazumbá e Ermi Panzo, dois artistas negros, além de Leonardo Ventura. A montagem toma como ponto de partida um bilhete escrito de próprio punho pela protagonista, destinado ao aristocrata holandês Maurício de Nassau, presenteado com seis caixas de açúcar, então a principal iguaria da região e foco da exploração que os colonizadores empreenderam no Nordeste brasileiro.

Racismo. “Tudo é política. O teatro em absoluto. Colocamos ideias, poesia, dança, representação no centro do palco para que possamos, juntes, ver, se emocionar e refletir sobre nós mesmos. E sempre foi assim, desde o surgimento do que chamamos hoje de teatro. Mal intencionado é aquele que diz que teatro não é política, pois está fazendo política sorrateiramente”, discursa Carol. Ela celebra a volta do Ministério da Cultura, chefiado pela cantora Margareth Menezes, e do surgimento do Ministério da Igualdade Racial, que tem à frente a jornalista e professora Anielle Franco, irmã de Marielle, assassinada covardemente há mais de cinco anos, em crime ainda não solucionado pela polícia.

Figuras como Silvio Almeida e Sonia Guajajara, representantes dos movimentos negro e indígena na política brasileira, também a entusiasmam. “Acredito que teremos alguns anos para nos reestruturar. A cultura foi violentada no governo Bolsonaro, e se fosse só a cultura estaríamos bem. Perdemos tanto nessa pandemia, com fome e desemprego. Aquele governo é o culpado por toda ruína e por tantas mortes”, denuncia. Na opinião de Carol, esse cenário apenas reafirma a necessidade de uma peça como “Babilônia Tropical”. “A volta de um discurso de extrema direita é o resultado da ‘falta de memória’, que é pensada para favorecer aqueles que cometeram crimes gravíssimos durante a ditadura militar, e a anistia foi eterna, passaram ilesos, e poucos anos após o estabelecimento da nossa democracia tivemos que assistir a pessoas pedindo a volta de um regime ditatorial. Aquilo que não resolvemos, volta com mais força, com mais raiva e ressentimento”, afirma a artista.

Política. Ela se refere, por exemplo, aos chamados atos antidemocráticos que culminaram na tentativa de golpe contra o governo do presidente Lula, recentemente eleito. “Não é que as pessoas esquecem sem porquê, isso é um projeto. Desde o surgimento do que chamamos Brasil nossa história é contada pelos vencedores, pelos que violaram e mataram. Aqueles que foram mortos, os indígenas e negros escravizados, são contados e representados pela tinta dos que escravizaram e que decidem qual a memória devemos ter de determinado evento histórico”, sustenta. Nessa batalha que é política, e também cultural e artística, ela acredita ser fundamental o fortalecimento das correntes progressistas da sociedade brasileira.

“As pautas feministas atualmente só são verdadeiramente feministas quando levam em consideração a transexualidade, e questões de raça e classe. Tudo isso está entrelaçado quando falamos de liberdade e equiparidade para todas as mulheres. Enquanto qualquer uma de nós estiver oprimida, todas nós perdemos muito. Até mesmo os homens. A nossa sociedade como um todo. Seremos uma sociedade menos doente quando os homens também entenderem que o patriarcado, o machismo e a misoginia causam muito sofrimento também a eles. Assim como, nas questões de raça, os brancos devem se implicar ativamente, se posicionando e reposicionando. E os homens também devem agir para destruir essas estruturas que nos matam e nos oprimem”, avalia.

Brasil. Esse olhar aguçado sobre a realidade de seu país tem levado Carol para outras plagas. Firme, com os pés cravados no chão de sua terra, e o sonho ilimitado, sem enxergar limites para os jardins suspensos no ar, ela alcança o globo terrestre. Como uma necessária utopia. Nesse mês, ela viaja para Cannes, na França, onde participa do lançamento do filme “La Chimera”, dirigido pela italiana Alice Rohrwacher. No elenco, a seu lado, estão a diva Isabella Rossellini e o britânico Josh O’Connor. “É uma alegria muito grande voltar a Cannes depois de ter estado lá com o filme ‘A Vida Invisível’”, comemora. Carol trabalha para que todas as vidas tenham uma visibilidade digna.

Serviço.
O quê. Peça “Babilônia Tropical: A Nostalgia do Açúcar”, com Carol Duarte, Jamile Cazumbá, Ermi Panzo e Leonardo Ventura
Quando. De 12 de maio a 5 de junho, sexta a segunda, às 20h30
Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. De R$15 (meia) a R$ 30 (inteira)

Foto: Julia Zakia/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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