*por Raphael Vidigal
“Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.” Paulo Leminski
O sangue argentino que corria nas veias de Carlos Galhardo era sempre negado em entrevistas. Impossível não constatar a latinidade “hermana” que se entregava às grandes paixões na forma das valsas mais brasileiras. O cantor com pinta de galã foi para São Paulo ainda bebê, aos dois meses, mas foi no Rio de Janeiro que iniciou sua trajetória musical e artística, cantando e atuando em filmes.
“Os sonhos mais lindos sonhei,
De quimeras mil um castelo, ergui,
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas previ…”
Mal sabia ele que tudo começaria quando ainda era alfaiate. Pois foi executando a profissão da qual não gostava que conheceu o barítono e alfaiate Salvador Grimaldi, com quem ensaiava duetos de ópera. Eterno romântico, Carlos Galhardo teve uma trajetória difícil, tendo perdido a mãe aos 8 anos de idade. A partir dali, o pai o levou para morar com um parente no bairro do Estácio, e Carlos Galhardo foi definitivamente adotado pela música.
“Pra despertar teu ciúme
Tentei flertar alguém
Mas tu não flertaste ninguém
Olhavas só para mim
Vitória de amor cantei
Mas foi tudo um sonho… acordei!”
Em uma festa na qual estavam presentes Francisco Alves, Mário Reis e Lamartine Babo, Carlos Galhardo soltou a voz e agradou, sendo aconselhado a tentar a sorte no rádio. Sorte essa que lhe sorriu quando ele começou a cantar no coro que acompanhava as gravações da RCA – Victor. Logo, sua voz macia e doce descortinaria com delicadeza os versos da canção, talhando o veludo da cortina que encantou e fez sofrer diversos corações.
“Beijando teus lindos cabelos
Que a neve do tempo marcou
Eu tenho nos olhos molhados
A imagem que nada mudou”
Embora tenha ficado conhecido como o Rei da Valsa, Carlos Galhardo era acima de tudo “O Cantor que dispensa adjetivos” e gravou com categoria sambas e marchinhas inesquecíveis de autores do quilate de Ataulfo Alves, Assis Valente, Hervé Cordovil, Braguinha, Haroldo Lobo e Nássara, entre outros.
“Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor, ô ô ô ô ô ô
Atravessamos o deserto do Saara
O Sol estava quente, queimou a nossa cara
Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô
Mas que calor, ô ô ô ô ô ô”
A voz de Carlos Galhardo exemplifica todo seu amor pela música, que embora embale versos tristes e sofridos mantém sempre a elegância dos pares que seguem os passos compassados da valsa, a alegria da multidão que dança o samba e pula o carnaval. No dia 25 de julho de 1985, Carlos Galhardo se foi, “deixando em tudo o perfume da saudade que ficou”, e agora “voa, pois a vida é tão boa quando se tem um amor no coração”, a vida é tão boa quando se ouve Carlos Galhardo cantando belas canções!
“Quando lá no céu surgir
Uma peregrina flor
Pois todos devem saber
Que a sorte me tirou
Foi uma grande dor”
“Fascinação” (valsa, 1905) – Fermo Dante Marchetti e Maurice de Féraudy
Escrita em 1905 por Fermo Dante Marchetti e Maurice de Féraudy, a valsa francesa “Fascinação” rodou o mundo e se tornou uma das mais populares de todos os tempos. Em 1943, recebeu uma versão em português criada por Armando Louzada e gravada no mesmo ano por Carlos Galhardo em companhia de sua orquestra. O cantor ficaria conhecido como o “Rei da Valsa”. Três décadas depois, em 1976, Elis Regina a resgatou para o espetáculo “Falso Brilhante”, em uma interpretação arrebatadora. A música entrou para a trilha da novela “O Casarão” e recebeu versões de Nana Caymmi e Ney Matogrosso.
“Ontem ao Luar” (polca, 1907) – Catulo da Paixão Cearense e Pedro de Alcântara
“Catulo foi o grande gênio da música e da cultura popular brasileira de 1880 a 1940, o maior poeta desse período e talvez o compositor que mais tenha tido músicas gravadas entre 1902 e 1930”, atesta o pesquisador e jornalista Gonçalo Junior, que lança mão de uma força de expressão para melhor denotar essa característica. “Ele é o pai de Luiz Gonzaga e Guimarães Rosa. Catulo absorveu a tradição portuguesa à literatura de cordel, que ele popularizou durante a República no Rio de Janeiro. Tinha muita facilidade com versos, tanto que publicou uma infinidade de livros”. Em 1913, à revelia do compositor da melodia, Catulo criou versos para “Ontem ao Luar”, polca de Pedro de Alcântara que se eternizou e recebeu regravações de Marisa Monte, Fafá de Belém, Rubel, Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Joyce, entre outros.
“Boas Festas” (marcha natalina, 1933) – Assis Valente
A canção natalina de maior sucesso nacional em todos os tempos é a triste constatação da solidão feita por um melancólico Assis Valente. Nascido no interior da Bahia, o compositor morava no Rio de Janeiro no Natal de 1932 quando teve inspiração para compor a música. Gravada um ano depois por Carlos Galhardo, com acompanhamento da Orquestra Diabos do Céu, regida e arranjada por Pixinguinha, faria sucesso inúmeras vezes nas vozes de Maria Bethânia, Roberto Carlos, Luiz Melodia e mais recentemente o grupo mineiro Pato Fu. Em versos, Assis Valente declara seu pedido não atendido por Papai Noel, pois para ele a “felicidade é brinquedo que não tem”.
“Quero Morrer Cantando” (samba, 1934) – Valfrido Silva
A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedirem do amigo. Conhecido no meio musical por “Chico Viola”, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel Rosa. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953. Em 1934, no auge do sucesso, Francisco Alves lançou o samba “Quero Morrer Cantando”, de Valfrido Silva, regravado por Carlos Galhardo, outro cantor de destaque.
“Mangueira” (samba, 1935) – Assis Valente e Zequinha Reis
Bastaram menos de sete anos para que a Mangueira recebesse a sua primeira homenagem em forma de canção. Data de 1935 a música intitulada apenas como “Mangueira”, parceria do baiano Assis Valente com o carioca Zequinha Reis. Lançada pelo Bando da Lua, a música foi repisada com sucesso por Elis Regina, Elizeth Cardoso, Carlos Galhardo, Aracy de Almeida, Célia, Zé Renato, Dilermando Pinheiro e o grupo Demônios da Garoa, entre vários outros. Seus versos iniciais são definitivos: “Não há, nem pode haver/ Como Mangueira não há/ O samba vem de lá/ A alegria também/ Morena faceira, só Mangueira tem”.
“O Palhaço, o Que É?” (marchinha, 1936) – Bide e Paulo Barbosa
Embora tenha ficado conhecido pelo epíteto de “Rei da Valsa”, Carlos Galhardo foi também um habilidoso intérprete de marchinhas, o que justificava seu outro apelido: “O Cantor Que Dispensa Adjetivos”. Em 1936, foi ele o responsável por lançar uma das mais populares marchinhas de todos os tempos. Composta por Bide e Paulo Barbosa, a música “O Palhaço, o Que É?” trazia os versos que atualmente se confundem com o domínio público: “Hoje tem marmelada?/ Tem, sim senhor!/ Hoje tem goiabada?/ Tem, sim senhor!/ O palhaço, o que é?/ É ladrão de mulher!”. E a canção foi um sucesso instantâneo do Carnaval de 1936.
“Quanta Tristeza” (samba, 1937) – Ataulfo Alves e André Filho
Filho do Capitão Severino, assim chamado o conhecido violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona Mata de Minas Gerais, pode-se dizer que Ataulfo Alves nasceu em berço de ouro da música popular brasileira. Porque foi através do DNA paterno que aprendeu a retrucar as trovas que virariam versos, e, mais tarde, clássicos. O primeiro da safra do mineiro tímido que rumara da Fazenda Cachoeira para o Rio de Janeiro pode-se dizer que foi “Errei, Erramos”, na interpretação do Cantor das Multidões, Orlando Silva, depois de alguns sucessos nas vozes de Almirante (“Sexta-feira”), Carmen Miranda (“Tempo Perdido”), Floriano Belham (“Saudade do meu Barracão”), Silvio Caldas (a valsa “A Você”, em parceria com Aldo Cabral) e Carlos Galhardo, na parceria com André Filho, “Quanta Tristeza”, um samba lançado em 1937.
“Velho Realejo” (valsa, 1940) – Custódio Mesquita e Sadi Cabral
Do outro lado do compacto que lançou, em 1940, o fox-canção “Mulher”, estava a valsa “Velho Realejo”, mais uma pérola da parceria entre Custódio Mesquita e Sadi Cabral. Custódio, aliás, é autor de outra melodia célebre que ganhou letra de um ator, “Nada Além”, feita com Mário Lago. “Velho Realejo” remonta aos tempos em que era costume avistar o instrumento pelas ruas. “Depois tu partiste/ Ficou triste a rua deserta/ Na tarde fria e calma/ Ouço ainda o realejo a tocar”, diz o refrão escrito por Sadi Cabral. A música também ganhou regravações dos maiores cantores de seu período, como Carlos Galhardo, Orlando Silva e Carmen Costa, e continuou recebendo versões com Jair Rodrigues, Johnny Alf e Benito Di Paula, entre muitos outros que a resgataram.
“Pião” (seresta, 1941) – Custódio Mesquita e Sadi Cabral
Custódio Mesquita e Sadi Cabral estreitaram laços quando escreveram, juntos, a opereta “A Bandeirante”, que estreou no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, no ano de 1938. A ela, seguiram-se parcerias de sucesso popular e radiofônico com as músicas “Mulher” e “Velho Realejo”, lançadas por Silvio Caldas. Já em 1941, a dupla lançou a seresta “Pião”, novamente com Silvio Caldas. A música mereceu regravações de Orlando Silva, Carlos Galhardo e Roberto Silva, que, antes de virar o “Príncipe do Samba”, gravou o LP “Eu… O Luar e a Serenata”.
“Nós Queremos Uma Valsa” (valsa de carnaval, 1941) – Nássara e Frazão
Frazão foi sem dúvida o parceiro mais imponente de Nássara. Tanto no sobrenome sonoro, precedido por um extravagante Eratóstenes, como no que diz respeito ao número de sucessos. Entre todos eles, “Nós queremos uma valsa”, possui história das mais interessantes.
A ideia criativa de lançar a música em pleno carnaval de1941 foi de Frazão, e trouxe alívio supressor à Morais Cardoso. Tudo porque o jornalista do periódico “A Noite” era simplesmente o primeiro Rei Momo do carnaval brasileiro, e como tal, cumpria o figurino de porções vantajosas em seu corpo portuário de cervejas.
Os desfiles em ritmo de samba e marchas alucinantes deixavam seus pés enormes ainda mais inchados. Por isso, a novidade foi instituída de imediato pelo Rei Momo e tornou-se sucesso na voz de outro Rei, o da Valsa, Carlos Galhardo, também gravada ao acordeom por Luiz Gonzaga. Toques de clarim anunciam a entrada triunfante da música que saúda os patinadores.
“Alá Lá Ô” (marcha de carnaval, 1941) – Nássara e Haroldo Lobo
O folião Haroldo Lobo, apelidado de clarinete por sua voz agudíssima, era segundo o amigo Antônio Nássara: fabuloso. E tinha razão de ser. Criador de inúmeras marchinhas que se tornaram parte integrante da memória carnavalesca, ele pediu para o caricaturista completar uma despretensiosa composição do ano anterior.
Como não podia deixar de ser, a música era em ritmo de festa e euforia e destacava versos que falavam de sol e caravana. Para isso, Nássara unificou uma divindade a um conhecido cartão postal africano, o deserto do Saara.
Pronto, dali para Haroldo arrematar com o refrão entusiasmado foi um pulo: “Alá lá ôôô, mas que calor, ôôô…”. Faltavam agora os arranjos e a orquestração, definidos com maestria e alta categoria por ninguém menos que Pixinguinha.
Nas palavras de Nássara: “Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque “Alá lá ô” ficou sendo uma das músicas mais tocadas no carnaval. Das que fiz, foi a única que me rendeu alguma coisa”. A música gravada por Carlos Galhardo em novembro de 1940 foi lançada no carnaval de 1941. Virou sucesso permanente.
“Natal das Crianças” (música natalina, 1955) – Blecaute
“Natal das crianças” comemora a bonita inocência guardada no canto suave de Blecaute. É com singeleza que ele compõe a harmonia e imita os sinos que aguardam Papai Noel.
Na música de 1955, que tornou-se clássica e recebeu mais de 40 regravações, dentre elas a de Carlos Galhardo, a celebração é agraciada com o clima de bondade que merece ter, sob a batuta do espaçoso sorriso branco que ocupa a cara inteira dum negro orgulhoso de simpatia e samba.
Blecaute não é Blecaute só no nome artístico. É também na união gostosa de música e sabedoria em uma única risada ao povo. Uma risada sua já é suficiente. Mas ele não se cansa de distribuí-las, como presentes. Ao som de palmas e vibrantes marchinhas, marche General, a banda é sua!
Lido na Rádio Itatiaia por Acir Antão dia 25/04/2010.
7 Comentários
Esse bigodinho passava muita credibilidade. Ainda deixarei o meu assim
Valeu Raphael Vidigal!!
que lindu! 🙂
Nossa, adorei!!!
Desde pequena adoro Carlos Galhardo.
Cantava Salão Grená o dia todo, em festas
da escola, etc.
Parabéns pelo site, no próximo slide que
mandar vou tornar a divulga-lo.
Bom dia e beijos,
Cara!Seu site é muio bom!parabéns!
Abraços
Que lembrança fantastica Raphael….aida porque vc é muito jovem…
A minha mãe era muito fá dele…..Valeu!!!!!!
Agradeço a todos que comentaram! Voltem sempre. Abraços