Do cocar ao turbante: Brasil é das pretas e indígenas

*por Raphael Vidigal

“O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância,
o eco da vida-liberdade.” Conceição Evaristo

A imagem mais condecorativa partiu da boca de Sonia Guajajara, na cerimônia em que foi empossada Ministra dos Povos Indígenas – um ministério inédito até então. “Do cocar ao turbante”, ela bradou, com uma doçura que se viu em seu olhar de onça brava, na figura atarracada, exuberante, predestinada. Sonia Guajajara não poderia estar ali por acaso. Muitos foram os ancestrais que passaram antes e que agora estavam ali para aclama-la. Na cerimônia a empossar as duas últimas ministras do governo Lula, o Brasil parecia reestabelecer a verdade, mais do que se olhar no espelho. Esse é um país das mulheres pretas e indígenas. Todas. É de Sonia Guajajara e de Anielle Franco.

A irmã de Marielle, brutalmente assassinada com cinco tiros na cabeça em crime até hoje não solucionado, e já decorridos quase cinco anos, como ela relembrou com a voz embargada, estava ali para assumir o Ministério da Igualdade Racial. Aos detratores de ocasião, os abutres oportunistas de sempre, desfilou seu currículo para comprovar que era muito mais do que a irmã de uma mártir – como se já não bastasse. O sorriso largo contrastava com uma vida ceifada por tragédias, no corpo lânguido e alto a impor sua presença, diante de uma plateia que a reconhecia como ela merecia: uma pantera negra. Quando ergueu o punho esquerdo era como se Anielle afiasse as suas garras.

O poema de Conceição Evaristo serviu para arrancar as lágrimas daqueles que ainda se mantinham como pedras intransponíveis. Não foi possível nem para eles. Na voz de Anielle, a leitura ganhou a textura de um corpo humano e a espessura de um sangue quente, na vibração de um peito que arfava com a vitória. Frente a janelões recentemente estilhaçados, aquele era um momento de glória. O Brasil reestabelecia a verdade depois de ter a sua democracia atacada, como se ataca o corpo de uma criança desnutrida pelo espírito carniceiro das hienas. Havia luta, mas havia, também, consagração. Tudo vivo. E Dilma foi saudada como a “eterna presidenta”, em mais um reparo à verdade.

Ela, que instituiu, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes cometidos pela ditadura, da qual foi uma das inúmeras vítimas, sendo presa e torturada. Quando Marina Iris cantou os versos de “História para Ninar Gente Grande”, que conduziu a Mangueira na avenida, a câmera parecia procurar Dilma no momento em que se afirmava: “quem foi de aço nos anos de chumbo”, e Dilma era abraçada por Anielle, emocionada. Enquanto isso, Lula cochichava ao pé do ouvido com Sonia Guajajara, visivelmente emocionado. Se o Brasil tivesse reestabelecido a verdade após o nefasto regime militar, como aconteceu na vizinha Argentina, e condenado seus carrascos, talvez os janelões do Palácio do Planalto não estivessem cobertos com vários tapumes…

Agora, se apresenta nova chance de o Brasil reestabelecer a verdade, colocar os militares que se apresentam como patriotas, mas não passam de mercenários, em seus devidos lugares. E lembrar ao mundo que somos um país diversificado, miscigenado, com uma cultura antropofágica, exuberante, mas, sobretudo, que somos um país preto, pobre, indígena, periférico e feminino, ao contrário da imagem que talvez o próprio povo guarde de si, ou a representação que dele se faz nos meios midiáticos e de propaganda. Que o cocar e o turbante permaneçam em seus lugares de fato, com a força, o comando, a sensualidade e a beleza de Sonia e Anielle, capazes de estraçalhar quem se meter a besta com essas mulheres cheias de fibra, brasis.

Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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