*por Raphael Vidigal
“A ditadura é um costume da infâmia: uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar. O primeiro morto na tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno.” Eduardo Galeano
Nada acontece do dia para a noite. Essa é uma retórica tão arcaica quanto óbvia. O que espanta é que, a essa altura dos acontecimentos, ainda há gente que contemporize os atos terroristas praticados ontem em Brasília, na sede dos Três Poderes. Não se trata de conivência, mas de cumplicidade. Quem emite esse tipo de comentário se identifica, de alguma forma, com aquela gente. Mas não devemos nos assustar com nenhuma atitude humana. A barbárie tem rosto humano, já profetizava um autor esloveno. E o ser humano é capaz de tudo, fato que esses mesmos moralistas repelem. Se um bando de favelados pretos protagonizasse as cenas de ontem, eles seriam chamados de “equivocados…”?
A nova tentativa de golpe de Estado no Brasil tem raízes profundas. A mais recente foi gestada em meio à deposição da presidente Dilma, em 2016. Também não é novidade a disposição da direita em não aceitar derrotas na América Latina. O exemplo do Chile de Pinochet é o mais expressivo, mas se estende para todos os países sul-americanos na década de 1960, período em que os Estados Unidos, por interesses econômicos, financiaram a deposição de líderes de esquerda, para implementar ditaduras alinhadas com a sua política. No Brasil, em 1964, o golpe foi perpetrado contra João Goulart, porque militares e agentes econômicos não aceitavam um comunista, eleito pelo povo.
Ato contíguo, o golpe parlamentar de 2016 teve como base uma estrutura complexa, que aliava agentes econômicos e meios de comunicação. Com a anuência do Judiciário e o clamor histérico de órgãos de imprensa, a Lava Jato colocou em campo sua operação política travestida de justiça divina, cujo principal objetivo era impossibilitar que uma determinada corrente política vencesse as eleições, no caso, a esquerda. A prisão do presidente Lula foi o ato mais sórdido desse combinado. Voltando à deposição de Dilma, a incubadora de terroristas começou a ganhar força quando um terrorista crônico, que há anos mantinha mandato de deputado, dedicou seu voto a um torturador, especificamente torturador da ex-presidente, numa prova de sadismo covarde.
Essa direita golpista renasceu com a vitória de Dilma à reeleição em 2014, frente a um candidato mimado, que não sabia o que era perder em sua vida. O terrorista crônico do exército demonstrou a mesma dificuldade em perder, e estimulou os atos terroristas vistos ontem em Brasília, do alto de seu exílio em Miami. São personagens desprezíveis que revelam a face tanto dos que os apoiaram quanto daqueles que se acovardaram. Nossa sociedade está coalhada de gente mesquinha, racista, preconceituosa, escravocrata, que ainda encontra eco em nossos meios de comunicação, por vezes comandados por elas. É o retrato de um país conservador e reacionário, não restam dúvidas.
Ao derrubarem uma presidente legitimamente eleita e encarcerarem politicamente o maior líder popular do país, as instituições deram guarida para o golpismo que se assanha agora, alimentado a pão de ló, com tapinhas nas costas e risadinhas cretinas em gabinetes e redações. É preciso compreender a gravidade de cada gesto. O poder destrutivo da devassa antidemocrática foi subestimado por personagens de todas as vertentes sociais, quando não aplaudido. Não se brinca com corvos. Ao permitirem que um terrorista adorador da ditadura com discurso fascista disputasse eleições, elas dobraram a aposta. O pacto democrático já foi rompido há muito tempo. E retomá-lo não será fácil.
Não há mais nenhuma confiança de que nossas Forças Armadas cumpram seu papel constitucional. Primeiro por seu histórico golpista. Segundo pela recente passagem pelo governo federal, com o aparelhamento de vários instituições, que resultou em cabides de emprego. O discurso do patriotismo esconde interesses mercenários. Como o discurso do combate à corrupção, uma sina da direita golpista e antidemocrática, tem como objetivo conceder certa dignidade ao interesse econômico, ao egoísmo tacanho e à mesquinharia de quem se habitou a viver da exploração do outro, se lambuzando com a fé alheia. O Brasil do presidente Lula precisa levar esses bandidos para a cadeia.