10 músicas com Maria Alcina para sacudir o Brasil

*por Raphael Vidigal

“- A arte é extensão do corpo.” Wally Salomão

A verdade é que eles não sabiam se era homem ou mulher. Todos: jurados, público, entusiastas, críticos assustaram-se. Para alguns foi espanto de encantamento, outros de temor e repreensão. Há 50 anos, portanto no auge da ditadura militar que se estendeu no Brasil de 1964 a 1985. “Ser alegre contrastava com a situação do país”, define Maria Alcina. Confundida com travesti no início da carreira devido à gravidade da voz e proibida pela ditadura militar de aparecer na televisão por conta dos trejeitos exagerados, Alcina traduz a sua personalidade artística. “Minha linha de trabalho é a liberdade. Sou solta no mundo, não estou aí para corresponder expectativas. É da minha natureza ter esse lado vedete, o outro palhaço, sou uma cantora de rua e trago essa negritude na voz. O meu canto é totalmente percussivo, me guio pelo ritmo”, diz.

“Fio Maravilha” (samba-rock, 1972) – Jorge Benjor
Jorge Benjor é talvez o compositor brasileiro que mais escreveu sobre futebol. Porém, entre seus inúmeros sucessos no tema o maior deles é, sem dúvida, “Fio Maravilha”, lançado pela mineira Maria Alcina no Festival da Canção da TV Globo em 1972. A interpretação esfuziante de Alcina e os versos simples e bem harmonizados ao ritmo por Benjor certamente contribuíram para o êxito. Outro fato importante relacionado à música é a polêmica envolvendo o homenageado. João Batista de Sales, o Fio Maravilha, atacante do Flamengo famoso pela aparência exótica e por marcar gols esquisitos, acionou o compositor na Justiça exigindo o pagamento de direitos autorais pelo uso do apelido, o que levou Benjor a cantar “Filho” em versões posteriores. Fio acabou voltando atrás e permitindo que Jorge cantasse a música como no original. Mas o que ficou pra história, sobretudo, é o grito de gol dos fãs e da torcida brasileira.

“Kid Cavaquinho” (samba, 1974) – João Bosco e Aldir Blanc
No início dos anos 70, por intermédio de um amigo em comum, João Bosco e Aldir Blanc foram apresentados. Era o início de uma das mais celebradas parcerias da música popular brasileira. No disco “Caça à Raposa”, lançado por João Bosco em 1975, as 12 faixas são assinadas pela dupla. Entre elas, surge “Kid Cavaquinho”, quase no final do álbum. Velocíssima, a música traz como protagonista um cavaquinhista que se vale do instrumento como arma de resistência. Mas há, também, lugar para o humor, como na célebre citação “Genésio, a mulher do vizinho/ Sustenta aquele vagabundo”. A canção foi lançada por Maria Alcina, em 1974, e regravada pelo cantor Alexandre Pires.

“Folia no Matagal” (MPB, 1981) – Eduardo Dussek e Luiz Carlos Góes
A dupla de compositores Eduardo Dussek e Luiz Carlos Góes transfere as relações amorosas para a natureza nesta marchinha que traz no deboche e na metáfora os seus grandes trunfos a fim de vencer os moralismos e as repressões da época. “O mar passa saborosamente/a língua na areia/ (…) e lá em cima a lua, já virada em mel/olha a natureza se amando ao léu/e louca de desejo fulgura num lampejo/e rubra se entrega ao céu”. Lançada por Dussek, ganhou regravações de Maria Alcina e Ney Matogrosso, que no Festival de Montreux de 1983, a interpretou na companhia de Caetano Veloso e João Bosco.

“Prenda o Tadeu” (folclore, 1985) – Clemilda e Antônio Sima
Duas personagens importantes e carismáticas estão ligadas à música “Prenda o Tadeu”. Clemilda (que divide a autoria com Antônio Sima) e Maria Alcina, intérprete que a popularizou para o Brasil inteiro. As duas a gravaram no mesmo ano, em 1985. Com interpretações que variam entre a irreverência e o ritmo mais tradicional do forró, ambas sublinham o duplo sentido da canção, na história característica do folclore da região, em que uma moça perde a virgindade para um tal garanhão, no caso, o temido Tadeu. Claro que a preocupação da família, e especialmente das irmãs, é nítida. “Prenda o Tadeu” é parte dum imaginário riquíssimo da cultura de duplo sentido nordestina, que conta ainda com nomes de peso como Anastácia, que também abasteceu o repertório de Maria Alcina, e Sandro Becker, além de obras de domínio público como “É mais embaixo” e “Calor na Bacurinha”, todas cantadas pela mineira de Cataguases que lançou Fio Maravilha no Festival da Canção de 1972. “Seu delegado/Prenda o Tadeu/Ele pegou a minha irmã e/Oh!…”.

“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com ritmo alegre e dolente a marcha-rancho “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972, carrega contrastes em todo andamento. Lançada pelo autor Sérgio Sampaio no VII Festival Internacional da Canção, e finalista do concurso, a música tornou-se emblemática não só pela letra ácida e contestadora, mas, talvez principalmente, em razão do desempenho de Sampaio no palco que, entre outras coisas, simulou um ato sexual com seu violão enquanto cantava: “Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer…”. Autobiográfica, balizada em versos imprecisos e debochados, a canção anuncia pontos importantes da liberdade sexual que aquela geração almejava. Regravada muitas vezes depois, sempre por nomes ligados à rebeldia e irreverência, como Maria Alcina, a canção nunca perdeu o sentido ou saiu de moda. Prova que o bloco de Sérgio Sampaio ia muito além da luta contra qualquer ditadura, era, sobretudo, um brado de libertação. Ney Matogrosso a regravou no ano de 2019.

“Cachorro Vira-Lata” (samba-choro, 1937) – Alberto Ribeiro
Ao popularizar a expressão “complexo de vira-lata” para se referir ao deslumbramento com o exterior e a falta de confiança em si do brasileiro, após a derrota sofrida na final da Copa do Mundo disputada em território nacional em 1950, contra o Uruguai, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues cometeu um erro histórico. O vira-lata, na verdade, é a expressão maior da força do povo brasileiro, mestiço, mulato, que se adapta às dificuldades e sabe tirar delas o maior proveito possível. Aquele que faz do osso uma escultura. É o que se vê no samba, no cinema de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, no teatro de Augusto Boal e José Celso Martinez Corrêa, nas artes plásticas de Lygia Clark e Hélio Oiticica e na literatura de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, e tantos outros. Por isso Carmen Miranda canta o samba-choro de Alberto Ribeiro, lançado em 1937, com orgulho indistinto. A música seria ainda gravada por Maria Alcina e Baby do Brasil. Além de tudo, é um hino à libertação. “Eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão…”.

“De Normal Bastam os Outros” (rock, 2014) – Arnaldo Antunes
O exotismo musical de Maria Alcina, mineira de Cataguases, sempre teve em Carmen Miranda uma de suas principais referências. Por isso, não espanta que o universo teatral e circense a seduza. Em 2014, ao comemorar 40 anos de carreira, Maria Alcina ganhou de presente o álbum “De Normal Bastam os Outros”, com músicas compostas especialmente para ela por Zeca Baleiro, Péricles Cavalcanti, Karina Buhr, Anastácia e outros. A faixa-título ficou a cargo de Arnaldo Antunes, que ofereceu a Alcina um banquete para ela se deleitar com as patacoadas circenses típicas de sua personalidade artística: “De normal bastam os outros/ Vale a pena ver de novo/ Todo mundo vai ao circo/ Gente fina é outra coisa”, entoa Alcina, com a gravidade característica de sua voz singular.

“Dionísio, Deus do Vinho e do Prazer” (marcha, 2014) – Péricles Cavalcanti
Após um período de ostracismo na carreira, com longos intervalos sem gravadora, a intrépida Maria Alcina voltou a gozar de prestígio nos últimos anos junto à crítica e ao público e também entre seus colegas. O álbum “De Normal Bastam os Outros” é uma iniciativa do produtor Thiago Marques Luiz para comemorar os 40 anos de carreira da intérprete. “É engraçado ver que as pessoas não esquecem você, e receber esse carinho dos colegas de profissão foi fantástico, fiquei emocionadíssima”, declara. No disco, além de protagonizar dueto com Ney Matogrosso, Alcina recebeu canções feitas especialmente para ela por Zeca Baleiro, Arnaldo Antunes, Péricles Cavalcanti e Anastácia, cujos títulos são autoexplicativos, como nos casos de “Eu Sou Alcina” e “Dionísio, Deus do Vinho e do Prazer”, onde ela canta: “Pode me chamar de Carnaval…!”.

“Tropicália” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso
Para selecionar o repertório das dez canções de Caetano Veloso que viriam a integrar o álbum “Espírito de Tudo”, lançado em 2017, Maria Alcina contou com a participação decisiva do produtor Thiago Marques Luiz. “Tudo começou quando o Thiago me convidou para participar do espetáculo ‘Corações Vagabundos’, ao lado da Cida Moreira e da Zezé Motta, e, quando eu cantei ‘Tropicália’ no show, a plateia veio abaixo, se identificou na hora”, conta. “Antes de estourar com ‘Fio Maravilha’ (de Jorge Ben Jor) no Festival Internacional da Canção, em 1972, eu gravei um compacto pela Continental que trazia num lado ‘Mamãe Coragem’, do Caetano com o Torquato Neto, e do outro ‘Azeitonas Verdes’ (Marcus Vinícius). Eu sempre me interessei pela Tropicália. Quando eu era uma jovenzinha e tocou ‘Atrás do Trio Elétrico’, no ano de 1969, em Cataguases, eu fiquei chapada, era muito diferente das coisas que a gente ouvia no rádio da vizinha, porque na nossa casa nem rádio tinha”, recorda a cantora.

“E Nasceu Jesus” (Jovem Guarda, 1962) – Orlandivo e Roberto Jorge
Os mais conceituados letristas e melodistas brasileiros pegaram papel e instrumento para criar canções natalinas. Embora a temática se repita, a abordagem revela uma diversidade incrível de impressões sobre a festa, passando pela exaltação, alegria, reflexão, tristeza e melancolia. Produtor do disco “Natal Bem Brasileiro” (2008), Thiago Marques Luiz foi o responsável por reunir nomes como Maria Bethânia, Zezé Motta, Dominguinhos e outros para cantarem músicas de Vinicius de Moraes, Roberto e Erasmo Carlos, Blecaute e mais uma porção de gente entendida no assunto. Mineira de Cataguases, a cantora Maria Alcina, que participou do projeto cantando “E Nasceu Jesus”, de Orlandivo e Roberto Jorge, relembra sua ligação afetiva com a data. “Fui criada acreditando em Papai Noel. Nossos vizinhos se fantasiavam e visitavam a gente. Para mim, o Natal é essa festa, está na minha alma”, afirma.

Foto: Lucas Kakuda/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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