10 músicas brasileiras para enfrentar o ano de 2021

*por Raphael Vidigal

“Para o júbilo/ o planeta/ está imaturo.
É preciso/ arrancar alegria/ ao futuro.
Nesta vida/ morrer não é difícil.
O difícil/ é a vida e seu ofício.” Maiakovski

Diante de uma pandemia que já vitimou mais de 450 mil brasileiros, o Brasil tem em 2021 um dos anos mais tenebrosos de sua história, conseguindo superar os já sombrios 2020 e 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República após um 2018 marcado pelo assassinato da vereadora feminista Marielle Franco e da prisão do ex-presidente Lula, então líder nas pesquisas. Além da tragédia notoriamente humanitária, o Brasil se vê diante do desmonte de políticas públicas consagradas na Saúde e na Educação e da destruição programada do meio-ambiente, sem falar nos ataques contumazes às liberdades individuais e na estigmatização das comunidades LGBTQIA+, indígenas e negras. Para enfrentar esse baixo-astral, a música brasileira dá o seu recado, em alto e bom som, com direito a roques, plumas, paetês, sambas e purpurinas.

“Alinhamento Energético” (pop, 2019) – Letrux
Alçada ao posto de musa do movimento “Diretas Já” na década de 1980, a cantora Fafá de Belém não tem dúvidas de que “o país está cindido ao meio”. “É duro a gente sair de uma ditadura para discutir qual a melhor democracia, se a minha ou a sua. Eu não tolero qualquer tipo de autoritarismo ou medida extrema, seja da esquerda ou da direita”, declara. Uma das faixas de “Humana”, disco lançado em 2019, toca diretamente nessa ferida. “Alinhamento Energético”, de Letrux, diz: “Que fase louca/ Que fase doida/ Que ano é esse?/ O que é que vem depois?/ Eu tô exausta, eu tô perdida”. “Há pessoas que continuam embaralhando o Brasil por interesses pessoais e partidários. Acredito na capacidade plural do nosso povo, temos a chance de nos unir em torno de uma pauta emblemática para o planeta, que são as queimadas na Amazônia”, afirma.

“Aburguesar” (tropicalista, 1972) – Tom Zé
A cantora e compositora Juliana Linhares, da banda Pietá, lança em 2021 “Nordeste Ficção”, o seu primeiro disco solo, em que apresenta parcerias com Zeca Baleiro, Chico César e nomes de sua geração, e também regrava as clássicas “Tareco e Mariola” e “Bolero de Isabel”, além de cantar, com Letrux, a irônica “Aburguesar”, canção escrita por Tom Zé em 1972, que permaneceu inédita. Nascida em Natal, no Rio Grande do Norte, a potiguar aproveita o disco para questionar os estereótipos em torno da população nordestina. Ironicamente, “Aburguesar” foi considerada fora de moda por Tom Zé quando redescoberta pelo produtor Marcus Preto em 2014, durante a feitura do disco “Vira-Lata na Via Láctea”, com participações de Mallu Magalhães, Tim Bernardes, Criolo e outros expoentes da nova geração da nossa música popular.

“AmarElo” (rap, 2019) – Emicida, Felipe Vassão e DJ Juh
Majur, que se define como não binária, ambientou o clipe de “Africaniei” na sua cidade natal, Salvador. “É uma aula sobre a história do nosso povo. Somos um país laico que tem a diversidade como qualidade”, aponta. A carreira artística teve início aos cinco anos de idade, no Coral da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador. Em junho de 2019, ela gravou com Emicida e Pabllo Vittar o clipe de “AmarElo”, que considera “um ‘start’ para o mundo”. “Nós três temos histórias de luta e resistência e encontramos um jeito de deixar uma mensagem de ânimo, utilizando a música como tecnologia de afeto”, avaliza. Capitaneada pelo rapper Emicida, a composição traz com sample da música “Sujeito de Sorte”, lançada por Belchior em 1976, no histórico disco “Alucinação”.

“Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
Ao longo do repertório de “Planeta Fome”, Elza Soares reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma. Lançada originalmente por Gonzaguinha em 1973, “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” foi cantada por ele durante a turnê que empreendeu ao lado do pai, Luiz Gonzaga, no ano de 1981, intitulada “Vida de Viajante”. A música também recebeu uma versão comovente do grupo “As Chicas”, que a interpretou em dezembro de 2008, na capital Rio Branco, no Acre, em homenagem ao líder ambientalista Chico Mendes, que foi assassinado.

“Esquadrão da Morte” (MPB, 2021) – Jorge Mautner e Cecília Beraba
“Esquadrão da Morte” nasceu de uma crônica escrita por Jorge Mautner na década de 1970, repercutindo a notícia assustadora de uma execução pela milícia carioca. “Morto, triturado/ Que nem porco/ Que nem gado/ No padrão e no esporte/ Às seis para as seis/ No facão e no corte/ Das leis sem leis/ Do esquadrão da morte”, descrevem os versos interpretados pela carioca Cecília Beraba, autora da melodia, que bramem contra a realidade de um país que elegeu a presidente da República o candidato que durante três décadas de atividade parlamentar defendeu e incentivou as milícias, e cuja ficha corrida contém uma condenação em três instâncias por apologia ao estupro. Em “Esquadrão da Morte”, Cecília ainda recita um poema sobre as diferenças entre bonobos e chimpanzés, duas espécies distintas de macacos: a primeira guiada pelo prazer sexual e, a segunda, pela violência. A música foi lançada no disco “Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner”, estreia de Cecília no mercado.

“Samba da Utopia” (samba, 2018) – Jonathan Silva
“O ano de 2018 foi tão alucinante e influente para a história do Brasil, que é impossível destacar um só acontecimento ou personagem, por isso eu considero que há três protagonistas e três datas-chave, que são o assassinato da Marielle Franco em 14 de março; a prisão do Lula no dia 7 de abril; e o triunfo do Bolsonaro nas urnas em 28 de outubro. Essas três personagens são fundamentais porque concentram o que o ano tem de mais sombrio e luminoso, egoísta e generoso, tolerante e intolerante”. A fala é do jornalista Mário Magalhães, autor do livro “Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018, o Ano em que o Brasil Flertou com o Apocalipse”. Foi nesse mesmo contexto que Jonathan Silva compôs o “Samba da Utopia”, interpretado ao lado da cantora Ceumar. “Se acontecer afinal/ De entrar em nosso quintal/ A palavra tirania/ Pegue o tambor e o ganzá/ Vamos pra rua gritar/ A palavra utopia”, dizem os versos finais dessa canção que permanece atual no Brasil de 2021 e pandemia.

“Tanto Faz” (indie rock, 2017) – Tim Bernardes
“Quando você me encontrar/ Não fale comigo, não olhe pra mim/ Eu posso chorar”. Os versos não são de Tim Bernardes, mas fizeram parte do show que o cantor apresentou. Embora baseado em seu primeiro disco solo, o autoral “Recomeçar”, no qual, para completar, ele toca a maioria dos instrumentos, o compositor percebeu uma ligação com a música “Soluços”, de Jards Macalé. “São versões que batem em algum lugar e que eu acho que têm a ver com o clima do disco. Esse hibridismo entre esperança e solidão”, justifica. Canções da banda O Terno, a qual Bernardes faz parte, também marcaram presença. Mas o condutor da noite foi mesmo o novo trabalho. “O CD tem algo de ruína, sobre algo que acabou enquanto o novo ainda não começou”, define. Também é sobre ruínas e desencantos que versa “Tanto Faz”, outro indie rock de autoria de Tim.

“O Amor É Um Ato Revolucionário” (balada, 2019) – Chico César
A experiência acumulada como presidente da Fundação Cultural de João Pessoa e, posteriormente, secretário de Cultura da Paraíba, entre 2009 e 2014, trouxe para Chico César saudades de outro ambiente menos concreto e pedregoso. “Depois de seis anos trabalhando com burocracia, vai se aniquilando a sua espontaneidade e, aos poucos, você começa a acreditar naquele universo. Eu precisava, física e mentalmente, voltar a essa pegada de deixar o fluxo correr. Não como uma corrente de metal, mas um rio corrente. Isso contaminou minha vida em geral, foi para a minha música, e o público percebeu”, comenta o cantor. Como prova dessa tese, ele lançou, em 2019, “O Amor É Um Ato Revolucionário”, em que transforma o afeto numa poderosa arma política. A canção tem tons religiosos que a carregam ao ambiente das preces e louvores.

“Androginismo” (pop rock, 1978) – Kledir Ramil
Os porões da ditadura militar brasileira estavam infestados de torturas sinistras enquanto, em 1978, o grupo gaúcho Almôndegas lançava “Androginismo”, música de Kledir Ramil. Em dezembro daquele ano, o Ato Institucional N º5, que, dentre outras medidas, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, finalmente caiu, após uma década. Passados 40 anos, o país elegeu um presidente que defendia a tortura e apoiava manifestações em favor da volta do AI-5, e Almério tornou a cantar os versos de Ramil: “Quem é esse rapaz que tanto androginiza/ Que tanto me convida pra carnavalizar?/ Que tanto se requebra no céu de um salto alto/ Que usa anéis e plumas a lantejoulizar?”. A faixa integra “Desempena Vivo”, registro do álbum de estúdio gravado em 2017, o segundo da carreira solo do pernambucano Almério – que valeu a ele o Prêmio da Música Brasileira na categoria cantor revelação –, e apresenta, ao todo, 19 canções que foram interpretadas no Teatro Santa Isabel, no Recife.

“O Tempo Não Para” (rock, 1988) – Cazuza e Arnaldo Brandão
Todas as músicas do espetáculo de lançamento do álbum “Ideologia” já estavam definidas quando Cazuza apresentou a Ney Matogrosso uma novidade. O antigo vocalista do grupo Secos e Molhados era o responsável pela direção, iluminação e cenografia do show. Amigos de longa data, Cazuza e Ney haviam sido namorados em meados da década de 1970. Ao se deparar com a letra arrebatadora de “O Tempo Não Para”, Ney não teve dúvidas de que a música daria nome à turnê. Parceria com Arnaldo Brandão, “O Tempo Não Para” mescla a batalha pela vida de Cazuza com as agonias de um país em constante crise. “A música é sobre essa velharia que está aí e vai passar. Vão ficar as ideias de uma nova geração”, afirmou Cazuza. Ney, Simone e Zélia Duncan a regravaram.

Ouça a playlist completa:

Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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