*por Raphael Vidigal
“CONHEÇO O RIO DE JANEIRO
COMO A PALMA DA MINHA MÃO
CUJOS TRAÇOS DESCONHEÇO” Wally Salomão
Ayrton Montarroyos, cantor pernambucano de 25 anos, foi um dos primeiros a se manifestar contra as reportagens da revista Rolling Stone e do jornal Folha de São Paulo que consideravam “inusitado, cômico e caseiro” o uso do prato-e-faca na live de Caetano Veloso. “Saber o que significa arrodear é difícil, não se sabe se no Nordeste tem algo além da seca e se em Manaus existe algo além de floresta e macaco. O negócio é ser ‘cool’. Quanto menos latino e mais americano melhor: nas bandas que se ouve, nas gírias que se fala, nas referências de tudo que se tem”, escreveu Montarroyos, que foi mais longe.
“Quando falo que é importante a gente defender e exaltar nossa cultura me chamam de elitista, de saudosista, todos os ‘istas’ pra tentar disfarçar o estupro que a cultura americana fez e faz nas nossas cabeças diariamente. Eu, por exemplo, sou obrigado a usar a palavra ‘live’ porque quando digo ‘ao vivo’ as pessoas não sabem ao que se refere”, desabafou. Um dos que fizeram coro ao jovem intérprete foi o jornalista carioca Hugo Sukman, que lembrou o fato de, em 1997, ao escrever a matéria sobre o disco “Livro”, de Caetano, ter começado o texto “falando justamente do prato-e-faca”.
O próprio Caetano se pronunciou, chamando de “ignorância inacreditável” o desconhecimento acerca do instrumento tocado no samba de roda por Edith do Prato, João da Baiana e até sua mãe, dona Canô. Embora reacendida e cada vez mais acentuada, a polêmica do estrangeirismo na música brasileira não vem de hoje. Em 1915, o escritor Lima Barreto publicou o livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. O herói do romance defendia a língua tupi-guarani e se recusava a utilizar palavras em francês: preferia arranjo de flores a buquê.
“Canção para Inglês Ver” (foxtrote, 1931) – Lamartine Babo
O título da canção já diz tudo. “Canção para Inglês Ver” lança mão do espírito zombeteiro de Lamartine Babo, por meio de uma expressão que se tornou sinônimo de enganação, manobra ilusória. Lançada por Lamartine e regravada por Joel de Almeida, esse foxtrote ganhou uma versão impagável do conjunto As Frenéticas, no álbum “Babando Lamartine”, homenagem de 1980 ao compositor. A letra tira sarro e faz troça do deslumbramento dos brasileiros com o idioma estrangeiro, valendo-se do melhor estilo Lamartine, que rima “I Love You” com “Itapiru” e “Independence Day” com “Me Estrepei”. Uma joia popular!
“Tem Francesa no Morro” (samba, 1932) – Assis Valente
No embalo do sucesso da música de Lamartine, o baiano de Santo Amaro, Assis Valente, radicado no Rio de Janeiro, também resolveu dar o seu pitaco sobre a questão do estrangeirismo em terras tupiniquins, desta vez a bordo de um autêntico samba. “Tem Francesa no Morro”, samba de 1932 lançado pela vedete de conhecido temperamento forte Araci Cortes, não denunciava a presença de uma moça estrangeira na favela, mas, sim, o modismo entre a burguesia de acrescentar palavras afrancesadas a seu vocabulário, tudo isto de uma maneira expressamente afetada e macarrônica, da qual Assis tirava um tremendo sarro.
“Good-Bye” (marchinha, 1933) – Assis Valente
Não contente em debochar do uso frequente do francês entre seus compatriotas, Assis Valente compôs especialmente para Carmen Miranda, sua musa número um, “Good-Bye”, em ritmo de marchinha de carnaval. Como a anterior, a canção também fez sucesso no rádio e entre os foliões, sagrando-se como o segundo êxito da carreira de seu compositor. A letra era direta, sem firulas: “Deixa a mania do inglês/ É tão feio pra você/ Moreno frajola que nunca frequentou/ As aulas da escola”. Para arrematar, expunha a presença desse estrangeirismo até no nome da companhia de energia elétrica do Rio: “Lá no morro só se usa a luz da Light”.
“Não Tem Tradução” (samba, 1933) – Noel Rosa e Ismael Silva
Claro que Noel Rosa não poderia ficar de fora desse fuzuê. Com o bamba Ismael Silva, ele compôs, em 1933, o samba “Não Tem Tradução”, que acusava o cinema falado de ser o grande culpado pela mania de expressões estrangeiras no país. “Amor lá no morro é amor pra chuchu/ As rimas do samba não são ‘I love you’/ E esse negócio de alô/ Alô boy, alô Johnny/ Só pode ser conversa de telefone”, dizia a canção. Sucesso que atravessou décadas, a música foi lançada pelo Rei da Voz, Francisco Alves, e ganhou regravações marcantes de João Nogueira, Aracy de Almeida, Caetano Veloso, Teresa Cristina e até Bibi Ferreira.
“Joujoux e Balangandãs” (marchinha, 1939) – Lamartine Babo
Lamartine voltou a carga em 1939, desta vez propondo uma fusão entre dois idiomas. É o que realiza o título de “Joujoux e Balangandãs”, marchinha que combina a palavra francesa que significa “brinquedo” com a tipicamente brasileira “balangandãs”, penduricalho tradicional entre as baianas, cheio de tropicalidade. Tanto que também gerou o verso “quem não tem balangandã não vai no Bonfim”, de Dorival Caymmi. Voltando à canção de Lamartine, ela deu título a um espetáculo teatral e a um filme do mesmo ano, infelizmente perdido. O dueto original de Mário Reis e Mariah foi revivido por João Gilberto e Rita Lee.
“Disseram Que Eu Voltei Americanizada” (samba, 1940) – Luís Peixoto e Vicente Paiva
Em 1940, após um longo período sem se apresentar no Brasil, a portuguesa Carmen Miranda voltou à terra que a acolheu e foi recebida no aeroporto por uma multidão de fãs. No entanto, ao se apresentar a grã-finos no Cassino da Urca acabou tendo uma recepção fria por cantar algumas músicas em inglês. Acusada de ter ficado “americanizada” pelo tempo que passou nos Estados Unidos, Carmen gravou, no mesmo ano, o samba “Disseram Que Eu Voltei Americanizada”, de Luís Peixoto e Vicente Paiva, no qual era enfática: “Enquanto houver Brasil, na hora da comida/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!”.
“Joana Francesa” (MPB, 1973) – Chico Buarque
Dando um salto temporal na história, Chico Buarque provou a sua exímia habilidade poética com “Joana Francesa”, canção de 1973 feita sob encomenda para o filme de mesmo nome dirigido por Cacá Diegues e protagonizado pela estrela francesa Jeanne Moreau. A trilha ainda conta com interpretações de Fagner e Nara Leão. A narrativa passional da letra entremeia prazer e dor da mesma forma com que amalgama o português ao francês, em versos preciosos. Elis Regina a cantou em disco lançado em 1979, à sua revelia, pela Polygram, após uma saída conturbada da gravadora. Alcione e Angela Ro Ro a regravaram.
“Tantas Palavras” (MPB, 1984) – Chico Buarque e Dominguinhos
Mais uma vez, Chico Buarque, agora com a companhia luxuosa de Dominguinhos, autor da melodia de “Tantas Palavras”. Lançada pelo próprio Chico, no disco de 1984, a canção tem um mote romântico e sensual, e reflete um encontro apaixonado, em que o casal, além de sentimentos, compartilha expressões idiomáticas. “Toda sessão ela virava uma atriz/ ‘Give me a kiss, darling’/ ‘Play it again’”, canta Chico. O desfecho do romance, no entanto, não entrega o final feliz típico dos filmões hollywoodianos: “Minha boca sem que eu compreendesse/ Falou ‘c’est fini, c’est fni’”. Dominguinhos também a cantou.
“Eu Não Falo Gringo” (samba, 1986) – João Nogueira e Nei Lopes
João Nogueira foi o típico sambista carioca ortodoxo e praticamente, como ele deixava claro na letra de “Eu Não Falo Gringo”, parceria com o bamba Nei Lopes, lançada em 1986: “Eu não falo gringo/ Eu só falo brasileiro/ Meu pagode foi criado/ Lá no Rio de Janeiro/ (…) Eu aposto um ‘eu te gosto’/ Contra dez ‘I love you’/ Bem melhor que hot dog/ É rabada com angu”, cantava, renovando o discurso de Noel Rosa em “Não Tem Tradução”, música de 1933 que ele também regravaria, no álbum dedicado aos ídolos Wilson Baptista, Geraldo Pereira e, claro, Noel. João não admitia estrangeirismos em seu samba genuíno.
“Mister Dicró” (samba, 1988) – Dicró e Pongá
A maior ironia do samba “Mister Dicró” é o contraste entre o título e o apelido de seus compositores: nada mais brasileiro do que Dicró e Pongá, expressões que ultrapassam, em muito, o português formal trazido a essas terras indígenas pelas caravelas de Cabral, e baseados na nossa histórica miscigenação entre negros africanos, índios nativos e europeus. Cheio de marra, gíria e bom humor, Dicró reclama da predominância estrangeira no mercado que ele disputa: “Vou traduzir meus pagodes/ Vou cantar só em inglês/ Vou tocar nas FM’s/ Isso eu garanto a vocês”. A música batizou o LP de 1988 de Dicró, um autêntico malandro do Rio.
“Amor, I Love You” (balada, 1999) – Carlinhos Brown e Marisa Monte
Ao invés de resistir, Carlinhos Brown e Marisa Monte decidiram assimilar a influência estrangeira na letra de “Amor, I Love You”, cujo título e refrão falam por si. A balada foi lançada em 1999 com enorme sucesso por Marisa Monte, como parte do álbum “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”. Com um trecho do romance “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, recitado por Arnaldo Antunes, serviu como embrião para a formação dos Tribalistas, que lançou seu primeiro disco em 2002. Tema da novela global “Laços de Família” e indicada ao Grammy Latino de melhor canção brasileira, foi regravada por Daniel em 2015.
“Samba do Approach” (samba, 1999) – Zeca Baleiro
Após ser revelado nacionalmente graças à participação no Acústico MTV de Gal Costa, em 1997, Zeca Baleiro gravou seu segundo disco. “Vô Imbolá”, de 1999, trazia, entre outras faixas, a irreverente “Samba do Approach”. A música contava com a participação especial de Zeca Pagodinho e, em ritmo acelerado, brincava com essa mania tão presente em nossa língua de importar palavras: “Eu tenho savoir-faire/ Meu temperamento é light/ Minha casa é hi-tech/ Toda hora rola um insight”. Ácida, sagaz, crítica e cômica, a letra de Baleiro deixa claro seu espírito inquieto, como espécie de herdeiro da Tropicália e dos “malditos” da nossa MPB.