*por Raphael Vidigal
“Um papagaio que se preza é sempre desbocado e assume ares de poder retrucar com um nome feio à menor provocação, compenetrado de seu papel de símbolo da malícia, da irreverência e da safadeza” Fernando Sabino
Negro, de bandana na cabeça, com um suingue propositadamente malicioso, um dos grandes fenômenos populares da música brasileira assumiu ares de maestro, a seu modo, ao reger, em 1969, a multidão que compareceu ao Maracanãzinho para vê-lo cantar “Meu Limão, Meu Limoeiro”, um tema folclórico que, na ocasião, acabou devolvido ao povo, que se encarregou de entoar em coro: “Meu limão, meu limoeiro/ Meu pé de jacarandá/ Uma vez, tindô lelê/ Outra vez, tindô lalá”. Diante da força de tal imagem, congelada como numa fotografia, seria difícil acreditar que, em 1971, Wilson Simonal (1938-2000) se tornaria uma memória pálida daquele instante apoteótico, acusado de colaborar com a ditadura militar.
A partir daí, a sua carreira degringolaria vertiginosamente. A simpatia pelo regime, embora não expressa publicamente, era notória, desde que, na juventude, cumprira o serviço militar obrigatório. Mas o episódio que viraria a sua vida de cabeça para baixo começaria com a desconfiança de que o seu contador o roubava. Ao contactar agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), responsável pelas torturas nos anos de chumbo, a fim de intimidar o contador, a adesão ao governo vigente viria à tona. Morto há 20 anos, o músico tentou inutilmente resgatar o prestígio, e, sem sucesso, se entregou ao vício da bebida alcoólica que o vitimaria, aos 62 anos, com uma cirrose hepática.
Em 2019, uma cinebiografia protagonizada por Fabrício Boliveira chegou às telonas. Antes, ele já havia sido tema do documentário “Simonal: Ninguém Sabe o Duro Que Dei” (2009), dirigido por Cláudio Manoel, e do musical “Simbora: a História de Wilson Simonal” (2015), com Ícaro Silva no papel principal. Os filhos Wilson Simoninha e Max de Castro, ambos músicos, também dedicaram discos e espetáculos ao pai. Provocativo, autoconfiante e chegado a uma ostentação – sua queda por carros de luxo e roupas de marca era conhecida –, Simonal sabia colocar essas características em sua música. Dono de uma voz charmosa, sensual e um domínio do ritmo intuitivo, ele chegou a rivalizar com Roberto Carlos no auge da Jovem Guarda. Esse legado está aí para quem quiser ouvir, sobre o qual não existe contestação.
“Meu Limão, Meu Limoeiro” (samba-sertanejo, 1937) – tema popular
Mistérios rondam a origem de “Meu Limão, Meu Limoeiro”, como é da natureza dos temas populares. Mas é impossível negar seu sucesso através do tempo. Aproveitada pelo pernambucano José Carlos Burle, essa canção folclórica alcançou sucesso radiofônico pela primeira vez em 1937, com as vozes seresteiras de Jorge Fernandes e Sílvio Caldas, o “Caboclinho Querido”. Na ocasião, aparecia a indicação “folclore recolhido na Bahia por Cardoso de Menezes e Francisco Pereira” no selo do disco, mas há indícios de que a música já era conhecida na Europa, em países como Alemanha e Holanda. Existe a teoria de que os holandeses a teriam trazido para o Nordeste brasileiro. Decorridas duas décadas, Inezita Barroso a resgatou com êxito parecido, em 1957, e a colocou, definitivamente, em seu repertório. Mas foi a gravação de Wilson Simonal, em 1966, por sugestão do jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que a alçou ao posto de clássico.
“Mamãe Eu Quero” (marchinha, 1937) – Jararaca e Vicente Paiva
Não foi sem razão que o jornalista Paulo Francis vaticinou que “Mamãe Eu Quero” é o hino dos mamíferos. A marchinha, composta por Jararaca, da famosa dupla com Ratinho, foi gravada no ano de 1937, pelo próprio autor, que, em gratidão ao arranjador Vicente Paiva, responsável por permitir o registro da música, o colocou como parceiro. Esta gravação histórica conta com a participação de Almirante, num inusitado diálogo com Jararaca, na introdução, e o coro composto por nomes como Ciro Monteiro e Odete Amaral. Mais tarde, a música alcançaria solo americano na voz de Carmen Miranda. Também foi registrada, no Brasil, por Silvio Caldas, Pixinguinha e Wilson Simonal, em 1969. A indisfarçável malícia da música e os trocadilhos cheios de simplicidade colocaram a música na boca do povo. E o que mais viesse! “Mamãe eu quero mamar…/ Dá chupeta pro bebê não chorar…”.
“Fim de Semana em Paquetá” (valsa, 1947) – Braguinha e Alberto Ribeiro
No final da década de 1940, Braguinha e Alberto Ribeiro captaram com sensibilidade o encanto do despertar do amor, ao retratar encontros no bairro carioca de Paquetá: “Esquece por momentos teus cuidados/ E passa teu domingo em Paquetá/ Aonde vão casais de namorados/ Buscar a paz que a natureza dá/ (…) Agarradinhos, descuidados/ Ainda dormem namorados/ Sob um céu de flamboyants”. A música foi lançada por Nuno Roland, em 1947, e regravada com enorme sucesso por Jorge Goulart e, depois, Wilson Simonal, na continuação do álbum “Alegria, Alegria” (1967), que trazia o epíteto “Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga”. O álbum seria um estouro absoluto, e o bordão, que Simonal utilizava com frequência ao subir ao palco, seria pego emprestado por Caetano Veloso para batizar uma das canções mais famosas do Tropicalismo.
“Mamãe Passou Açúcar em Mim” (pilantragem, 1966) – Carlos Imperial
Sem vergonha de utilizar métodos artificiais para promover seus objetivos, o Gordo, apelido de Carlos Imperial, dada a sua postura corpulenta e despachada no comando de seus programas de TV ou no cinema, teve fundamental importância na criação do chamado rock jovem na música brasileira, que mais tarde ele rebatizaria de “Pilantragem”. Depois de tentar lançar, sem sucesso, o ícone da Jovem Guarda que viria a ser Roberto Carlos, e de participar da produção do primeiro álbum de Elis Regina, posta para rivalizar com Celly Campello, Imperial encontrou no cantor negro, cheio de suingue e charme, Wilson Simonal, a sua mina de ouro. Foi pensando nele que o apresentador, cantor e agitador cultural mais aplaudido e vaiado nos anos 1960, compôs a convencida “Mamãe Passou Açúcar em Mim”, em 1966, que dizia: “Eu era neném, não tinha talco/ Mamãe passou açúcar em mim”.
“Nem Vem Que Não Tem” (samba-soul, 1967) – Carlos Imperial
Regravada pela musa do cinema francês Brigitte Bardot em uma adaptação feita por Pierre Cour, “Nem Vem Que Não Tem” foi composta pelo controverso artista multimídia Carlos Imperial – que era produtor, ator, apresentador de TV, compositor e jurado carnavalesco –, como forma de apresentar o movimento criado por ele e intitulado de “Pilantragem”. Na prática, era uma versão malcriada e irreverente da Jovem Guarda. Não por acaso, Wilson Simonal foi escolhido por Imperial para representar o estilo. Sempre cercado de belas mulheres e acostumado a uma vida de deleites, Simonal, ainda por cima, era dono de uma voz de dar inveja até ao Rei Roberto Carlos. Ao utilizar ditados populares, a canção rapidamente caiu na boca do povo. O arranjo foi concebido em meio a apresentações do “Show em Si… Monal”, que o cantor comandava na Rede Record durante a década de 1960.
“Tributo a Martin Luther King” (samba, 1967) – Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli
Wilson Simonal não era santo, e, tampouco, o diabo que o pintaram após o polêmico e controvertido envolvimento com as forças de segurança do Estado durante o período nefasto da ditadura militar no Brasil. Por outro lado, é inegável que sua trajetória representou uma vitória de classe, do negro que ascende de condição social, circunstância rara no país, cuja exceção reside, justamente, em profissões de destaque e com pouco mercado, como a música e o futebol. Embora não fosse ligado a movimentos sociais, Wilson Simonal se afirmava, e identificava-se com a luta do negro nos Estados Unidos, presidida por Martin Luther King, para quem ele compôs um bonito e comovente tributo em parceria com Ronaldo Bôscoli. “Tributo a Martin Luther King” foi lançada por Simonal durante a entrega do Troféu Roquete Pinto, sem passar pela censura, e dedicada a seu filho mais velho.
“Sá Marina” (toada-moderna, 1968) – Antônio Adolfo e Tibério Gaspar
A música brasileira procurava juntar influências durante a década de 1960, e foi com essa ideia que Antônio Adolfo compôs, com Tibério Gaspar, a “toada-moderna”, segundo ele, “Sá Marina”, estouro na voz de Wilson Simonal em 1968, ficando com o posto de primeiro lugar nas paradas de sucesso por 19 semanas seguidas, um feito impressionante. A união de bossa nova, toada e Iê-iê-iê surtiu o efeito esperado, “Sá Marina” subiu a ladeira para não descer mais. Com versos simples, porém líricos, a canção agradou em cheio a gregos e baianos: “Descendo a rua da ladeira/ Só quem viu, pode contar/ Cheirando a flor de laranjeira/ Sá Marina vem pra cantar”. Em 2018, a canção passou a batizar uma ladeira do Rio de Janeiro. Regravada em inglês por Stevie Wonder, em 1971, ela também recebeu as vozes de Elis Regina, Ivete Sangalo e Alexandre Pires.
“Vesti Azul” (pilantragem, 1968) – Nonato Buzar
Wilson Simonal era, nas palavras do produtor, apresentador e diretor Luís Carlos Miele, “o maior cantor do Brasil”, e isso, na década de 1960, estava claro. Não à toa, ele comandava programas de TV, a exemplo do “Show em Si… Monal”, na Record, e era frequentemente líder de vendas de discos. Foi por essa época, em 1968, que Simonal gravou uma canção de Nonato Buzar, chamada “Vesti Azul”, cantada no mesmo ano com o nome de “Anjo Azul” pela cantora mirim Adriana, de apenas 14 anos. A versão de Simonal, como não poderia deixar de ser, chamou bem mais atenção. O título original era uma homenagem ao impactante filme estrelado pela diva alemã Marlene Dietrich, em 1930. Novamente, o sucesso ganhou uma adaptação no exterior, traduzida para o inglês por Paul Anka e Sammy Cahn com o nome de “Something Else”. No imaginário dos brasileiros, prevaleceram os versos: “Vesti azul/ Minha sorte então mudou…”.
“País Tropical” (samba-rock, 1969) – Jorge Ben Jor
Um balanço ritmado por cuíca e guitarra. Nos embalos de sábado à noite e nas manhãs de Carnaval, nasceu na periferia de São Paulo uma dança trazida ao gosto popular por Jorge Ben, garoto do Beco das Garrafas que, na metade da década de 1960, mostrou ao mundo o seu “sacundin sacunden”. Virou samba-rock a adesão de batidas elétricas a temas acústicos e universos distintos, como a bossa de João Gilberto e o canto falado do blues, a partir de histórias simples cantadas com entusiasmo. “País Tropical” fez um sucesso tão grande que se tornou prefixo musical do Brasil no mundo. Exaltando as belezas de sua terra, ao modo de Ary Barroso, Jorge Ben Jor fez uso de sua vasta gama de influências para criar essa pepita do cancioneiro brasileiro. A ideia de não pronunciar a segunda parte das palavras no decorrer da música marcou, mais uma vez, a criatividade do artista. Wilson Simonal foi um dos que a regravou com maior êxito comercial, em 1969.
“Aqui É o País do Futebol” (samba, 1970) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Convidados pelos diretores Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite para compor a trilha sonora do filme “Tostão, a Fera de Ouro”, Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram canções que ultrapassaram aquele período específico. “Aqui É o País do Futebol”, samba moderníssimo em sua estrutura e com letra que exalta o poder de atenção do esporte sobre os brasileiros, embalou não só a Seleção Brasileira em 1970, quando ela conquistou o Tricampeonato Mundial no México, com uma equipe considera das melhores de todos os tempos, como seguiu emocionando e contagiando plateias mesmo após o encerramento da competição. Além do registro de Milton Nascimento, no disco “Milton”, a música também foi gravada por Elis Regina, no álbum ao vivo “Trem Azul”, e Wilson Simonal, um dos embaixadores daquela seleção, amigo íntimo de Pelé e outras estrelas do escrete canarinho.
Fotos: Arquivo Pessoal/Divulgação.