*por Raphael Vidigal
“Quando ele nasceu foi no sufoco
Tinha uma vaca, um burro e um louco
Que recebeu Seu Sete
Quando ele nasceu foi de teimoso
Com a manha e a baba do tinhoso
Chovia canivete” Aldir Blanc
“A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Mesmo quando estivemos afastados, ele esteve comigo. E quando nos reaproximamos foi como se tivéssemos apenas nos despedido na madrugada anterior. Desde então, voltamos a nos falar ininterruptamente. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos”. Esse é um fragmento do texto que João Bosco, 73, divulgou no dia 4 de maio de 2020, data da morte de Aldir Blanc (1946-2020). O parceiro mais expressivo e constante de João, responsável pelas letras de obras-primas do cancioneiro nacional, como “O Bêbado e a Equilibrista”, “O Mestre-Sala dos Mares”, “Corsário”, dentre outras, foi uma das vítimas da pandemia do novo coronavírus que, no Brasil, caminha a passos largos para ultrapassar os 15 mil óbitos.
Quando Aldir foi internado, João decidiu adiar o lançamento de seu novo álbum, “Abricó-de-macaco”, inicialmente previsto para 17 de abril e, com a perda do amigo, optou por se recolher e cancelar as entrevistas. O disco chega nesta sexta (15) às plataformas digitais e teve o seu DVD exibido na noite de quarta (13) pelo Canal Brasil. Munido de seu singular violão, que, ao longo do tempo, agregou influências das matrizes africanas ao barroco mineiro, passando pelo samba-jazz e chegando ao choro e samba tupiniquins, o anfitrião convida um time de instrumentistas de peso para auxiliá-lo na tarefa de recriar, e não apenas revisitar, preciosidades de sua prolífica trajetória, iniciada pra valer em 1972, com um compacto que trazia “Bala com Bala”, feita, justamente, com Aldir Blanc. A rigor, há duas inéditas, ambas assinadas com Francisco Bosco, 43, filho mais velho de João.
Inéditas. Uma delas é a que dá título ao lançamento. “Esse samba pertence àquela linhagem de sambas ‘cheios’ do meu pai, que convidam mais ao registro narrativo ou a uma espécie de compêndio das coisas, ambos registros explorados pelo Aldir (Blanc), em sambas como ‘Siri Recheado e o Cacete’ (1980) ou ‘Linha de Passe’ (1979). Pensando nessa ideia de samba cheio, as coisas foram aparecendo, guiadas pelo som, mais do que tudo. E, nisso, apareceu o ‘Abricó-de-macaco’, uma árvore amazônica, mas que é comum aqui no Rio de Janeiro. É uma árvore barroca, repleta de balangandãs. Cabe tudo nela, como cabia tudo no samba”, explica o primogênito, que, em determinada passagem, introduz o verso “babaluaê, rabo de arraia e confusão”, da clássica “Linha de Passe”, composta por João, Aldir e Paulo Emílio (1941-1990).
“Nesse samba do tipo fieira, em que você vai puxando as palavras, orientado pela sonoridade, havia esse verso do tamanho certinho do verso de ‘Linha de Passe’, que, como eu disse, considero que pertence à mesma estirpe. À mesma árvore genealógica, para manter a imagem”, completa ele. A outra contribuição de Francisco foi com “Horda”. Com quase oito minutos de duração, a música atravessa diferentes estados e se ampara em um discurso minimalista, que parece contestar o maniqueísmo e, no entanto, impacta: “É ninguém/ É geral/ É o um/ É o tal/ É do bem/ É do mal/ É quebra-pau”. Para completar, há uma citação à instrumental “O Galho da Roseira” (Airto Moreira e Hermeto Pascoal). “É uma canção muito estranha, no bom sentido da palavra. Ela é composta de partes bastante heterogêneas entre si. Parece mais uma mini suíte do que uma canção. Não é comum encontrar uma canção com essa forma”, observa o letrista.
“Há, dentro dela, um fragmento melódico recorrente, que havia sido o leitmotiv (motivo condutor ou tema musical que se repete) da trilha sonora composta por Plinio Profeta (músico, DJ e produtor), a partir de músicas originais de João Bosco, para o documentário que codirigi (com Raul Mourão), chamado ‘O Mês que Não Terminou’”, complementa. Previsto para estrear na tela do canal Curta! em junho, o longa-metragem aborda, exatamente, as manifestações populares que invadiram as ruas do país naquele mês, em 2013. “A letra foi, portanto, um desdobramento do modo como esse tema aparece no filme, que trata sobre o processo político e social brasileiro desde 2013, e que é muito marcado por lógicas de grupo, daí o tema da horda”, esclarece.
Transformação. O repertório de “Abricó-de-macaco” passa longe do óbvio. Não é um desfile de clássicos, mas de composições com o potencial para se tornarem, e que foram assim vestidas, com a devida elegância. “Meu pai é um grande mestre das releituras, da sua própria obra e da alheia. Um dos seus maiores discos é todo de leituras quase sempre muito inventivas de canções alheias”, destaca Francisco, em referência a “Dá Licença, Meu Senhor” (1995), quando João renovou músicas de Noel Rosa, Ary Barroso, Gilberto Gil, Tom Jobim, e outros. Por conta disso e com justiça, ele se confessa incapaz de escolher somente uma favorita do CD mais recente. “‘Chora, Chorões’ (de Caruso, Djalma Branco, Djalma da Mercês e Nei Jangada), por exemplo, é um samba-enredo dos anos 70, pouco lembrado hoje. A leitura de meu pai é primorosa, fazendo pequenas mudanças na melodia, de cabo a rabo”, enaltece ele, que prossegue na exaltação.
“E o que falar da transformação do acalanto de (Richard) Rogers e (Oscar) Hammerstein, ‘My Favourite Things’ (trilha do filme ‘A Noviça Rebelde’, de 1965), em um afro-jazz ensolarado? ‘Água de Beber’ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) também foi transcriada, em andamento acelerado que evoca o violão de Baden Powell. Entre as releituras da própria obra, minha preferida é ‘Cabeça de Nêgo’, que ganhou uma levada funkeada, com solo brilhante de sax soprano da (israelense) Anat Cohen”, sublinha. As participações compreendem ainda os cantores Alfredo Del Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, que soltam a voz nas faixas “Forró em Limoeiro” (Edgar Ferreira), sucesso de Jackson do Pandeiro (1919-1982), e “Pagodspell” (João Bosco, Caetano Veloso e Chico Buarque), e os músicos Marcello Gonçalves e Marcelo Caldi.
Parceiros. Em “Mano Que Zuera” (João e Francisco), “Cordeiro de Nanã” (Madeus e Dadinho), que cita “Nação” (João, Aldir e Paulo Emílio), “Holofotes” (João, Wally Salomão e Antonio Cícero), “Profissionalismo É Isso Aí” (João e Aldir), “Senhoras do Amazonas” (João e Belchior), e na intersecção entre “Blue in Green” (Miles Davis e Bill Evans) e “Transversal do Tempo” (João e Aldir), João é acompanhado de perto pelo trio formado por Kiko Freitas (bateria), Ricardo Silveira (guitarra) e Guto Wirtti (baixo), companheiros de longa data. Ao todo, são 16 faixas. A despeito da variedade de parcerias, dois nomes reaparecem frequentemente: Francisco e Aldir, o que apenas cristaliza algo que deu o tom à própria carreira do mineiro de Ponte Nova, que estreou no ofício de compor tendo por companhia um tal Vinicius de Moraes (1913-1980).
“Aldir sempre foi uma presença importante na minha vida, mesmo quando esteve ausente. Eu mal me lembro dele na infância. Os parceiros se afastaram quando eu ainda era pequeno”, conta Francisco. Aldir e João ficaram 20 anos sem compor juntos – o hiato durou entre o samba “João do Pulo” (1986) e “Toma Lá Da Cá” (2007), tema do programa homônimo escrito por Miguel Falabella para a Rede Globo. A possibilidade de distanciamento surgiu, pela primeira vez, em uma edição do semanário “O Pasquim”, de 1978, que trouxe, com exclusividade, a letra de “O Bêbado e o Equilibrista”, ilustrada com um desenho do cartunista Mariano, onde um bêbado vestido de Charlie Chaplin e uma equilibrista se posicionavam abaixo de um balão, com os dizeres: “Pra quem inventou mil fofocas sobre o fim da dupla, aqui está o desmentido. O novo samba de Aldir Blanc e João Bosco”.
“Cresci ouvindo as canções que traziam o pensamento e a personalidade do Aldir. E, à medida em que fui formando o meu gosto estético e crítico, fui admirando sua obra cada vez mais. Considero-o, sob certos aspectos, o maior de todos os letristas da canção brasileira. Mas só fui conhecê-lo pessoalmente quando ele e meu pai retomaram a amizade. E aí, felizmente, pude usufruir da amizade do Aldir em alguns encontros e, nos últimos anos, quando ele se tornou bastante recluso, em conversas por e-mail. Aldir era uma figura humana extraordinária, extremamente afetuoso e generoso”, elogia Francisco.
Ofício. Formado em jornalismo e doutor em Teoria Literária, Francisco atua como filósofo, colunista e ensaísta. Ele coordenou a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, e, atualmente, integra o “Papo de Segunda”, ao lado de Fábio Porchat, Emicida e João Vicente de Castro, transmitido pela GNT. Carioca, começou a compor com o patriarca em meados da década de 1990. “Eu era muito novo e sem a menor condição de fazer canções com meu pai quando ele, entretanto, me convidou a fazê-las. Isso foi em 1996, se não me engano. Eu tinha 19 anos. A primeira canção que fizemos foi um bolero chamado ‘Enquanto Espero’”, rememora, antes de emendar com uma elevada autocrítica.
“Felizmente, quase todos os meus versos foram retirados, e meu pai se encarregou de escrever a maior parte da letra. Na época, estávamos bem próximos, eu escrevia poemas, fazia comentários sobre as canções dele, mas não era letrista, não tinha um entendimento sobre as especificidades da letra de música em relação ao poema. Eu era, em suma, muito despreparado”, admite. No antecessor “Mano Que Zuera” (2017), disco que marcou a volta de João às inéditas, decorrida quase uma década, Francisco esteve presente em cinco das oito novidades, incluindo a faixa-título e a delicada “Fim”, que abria o trabalho.
“Considero que prejudiquei algumas canções no início da nossa parceria, mas a coisa foi se aprumando e, modéstia à parte, acabamos por fazer inúmeras canções de que me orgulho”, garante ele, que, no rol de influências, percorre do tradicional ao contemporâneo. “Como eu venho da literatura e da teoria, pertenço a uma tradição que cultiva a densidade semântica, a intensidade imagética, a habilidade sintática, a mestria formal. Como letrista, tendo a escrever letras que chamam a atenção para si próprias, o que geralmente se chama de ‘letras poéticas’. Então, minhas referências vêm dessa linhagem: Noel (Rosa), Chico (Buarque), Caetano (Veloso), Aldir (Blanc), Antonio Cicero, Arnaldo Antunes”, enumera. “Mas, como se sabe, o que importa é sempre a canção, então há letras excepcionais que não chamam a atenção para si, não faria sentido figurarem em um livro, e, contudo, são excelentes, porque funcionam na canção”, arremata.
Diferenças. A facilidade do compositor para transitar entre variadas áreas se comprova pelos desafios que ele tem encarado. Francisco tem aparecido, e causado rebuliço, em forma de imagem (na TV), som (com as músicas) e palavra, que o digam suas incursões literárias. O primeiro dos, até agora, dez livros, foi publicado em 1996, com o nome de “Florestado”, uma reunião de poemas. No entanto, foi o recente “A Vítima Tem Sempre Razão?” (2017), que provocou reações mais acaloradas. Ele ainda é autor de “Orfeu de Bicicleta: Um Pai no Século XXI” (2015), sobre o desafio da paternidade em tempos modernos. Ao estabelecer as distâncias entre filosofia e letra de música, ele se vale do ensinamento de um colega com as mesmas habilidades, empossado na Academia Brasileira de Letras em 2017.
“Como diria meu amigo Antonio Cicero, um texto filosófico é um objeto autotélico, ou seja, sua finalidade está em si próprio. Por outro lado, uma letra de canção é um objeto heterotélico, sua finalidade é ser parte funcional do todo, que é a canção. Tudo o mais também tende a ser diferente entre esses dois gêneros. Um mobiliza conceitos, argumentos, tentativas de persuasão. O outro lida com afetos, sonoridades, e, geralmente não quer convencer ninguém de coisa alguma”, ensina. Francisco exerceu a presidência da Funarte (Fundação Nacional de Artes) em 2015, e deixou o cargo no ano seguinte, após a consumação do golpe parlamentar que derrubou a ex-presidente Dilma Rousseff, do PT. O atual ocupante da cadeira, maestro Dante Mantovani, chegou a declarar que “o rock leva ao aborto e ao satanismo”. “Não vale a pena comentar. Isso está, literalmente, abaixo da crítica”, resume o entrevistado.
Política. Exonerado por Regina Duarte, Mantovani foi renomeado no início do mês, à revelia da secretária especial de Cultura, que assumiu a pasta depois da saída de Roberto Alvim, demitido por protagonizar um vídeo com referências nazistas. Há poucos dias, um manifesto em repúdio a declarações de Regina recebeu a assinatura de mais de 500 artistas, entre eles Chico Buarque, Lenine, Adriana Esteves, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Camila Pitanga, Cauã Raymond, Fafá de Belém, Lulu Santos, Marco Nanini, Maria Flor, Miguel Falabella, Renato Aroeira e outros nomes de peso. “Não existe atuação de Regina Duarte, a não ser como péssima atriz em péssimos discursos. Como gestora de cultura, não existe atuação. Nem existe Funarte, nem MinC (Ministério da Cultura), nem políticas de cultura nesse governo. Regina Duarte conseguiu piorar uma biografia já embaraçosa”, aponta Francisco.
Parte das críticas direcionadas à secretária se deveu ao fato de ela não ter se pronunciado diante da morte de artistas como Moraes Moreira, Aldir Blanc, Rubem Fonseca e Flávio Migliaccio. “O silêncio sobre as mortes de figuras importantes da cultura brasileira evidencia que o ‘bolsonarismo’ odeia as melhores ideias de cultura já surgidas nesse país, como a utopia da mestiçagem, do encontro, do desrecalque corporal, ou a exigência de revisão crítica e até a ruptura com o nosso passado colonial escravagista. Nada disso, a cultura ‘bolsonarista’ é, segundo a matriz ‘olavista’ (referência a Olavo de Carvalho, guru intelectual de Jair Bolsonaro), seguida pelo chanceler Ernesto Araújo, apenas um desdobramento do cristianismo ocidental. E, segundo a ralé militante, merecidamente chamada de ‘minions’ ou ‘gado’, é uma cultura da truculência, da boçalidade, do obscurantismo, do esmagamento de minorias. Tudo isso é um horrendo pesadelo”, dispara.
Frente a uma enfermidade que levou, como dito, Aldir Blanc e, em todo o mundo, vitimou mais de 300 mil pessoas, as perspectivas do filósofo são pessimistas, principalmente ao se levar em conta as atitudes do mandatário maior da nação, que segue sua sina de reiterar a descrença na ciência e exibe, com particular orgulho, a própria ignorância. “A pandemia tem uma dimensão comum, que é a do distanciamento social, a angústia com o futuro, a morte de pessoas próximas, a ameaça à própria saúde, e uma dimensão singular, que depende das condições concretas de cada indivíduo. Eu tenho uma situação material confortável, mas, de resto, a minha experiência tem sido de grande angústia”, afirma Francisco.
“Não sabemos o que vai acontecer, porém, entre os cenários possíveis, está um colapso social no Brasil. Como vai passar por isso um país com dezenas de milhões de desempregados, uma economia que já vinha mal, sob um governo ultraliberal e um presidente paranoico, negacionista e autoritário? É assustador. Temos que fazer a nossa parte, mantendo a crítica e a solidariedade com os desfavorecidos. E pensando o tempo inteiro em como tirar o país do buraco social e político em que se meteu”, finaliza.
Fotos: Juliana Coutinho/Divulgação.