*por Raphael Vidigal
“Sei, o teu coração sobeja
De amores velhos arrancados,
Como uma forja ainda flameja,
E na garganta tens guardados
Uns orgulhos dos condenados;” Charles Baudelaire
Nelson Gonçalves era um homem vaidoso, a ponto de dizer que ele mesmo se emocionava com as próprias interpretações. Nascido há cem anos, em Santana do Livramento, no interior do Rio Grande do Sul, o homem de voz potente, charmosa e grave acumulou polêmicas, quedas e reerguimentos ao longo dos 78 anos de vida que teve, a maior parte deles dedicados à música. Recordista de gravações da música brasileira, Nelson recebeu um prêmio da RCA-Victor por ter ficado 55 anos na gravadora. Além dele, só Elvis Presley obteve tal feito. Mas foi a aclamação popular a maior de todas as conquistas do intérprete, cuja obra continua ecoando. Em 2018, a gravadora Nova Estação lançou o álbum “Angela Maria e Nelson Gonçalves Ao Vivo”, em registro que permanecia inédito e enfileira os sucessos da carreira do cantor.
“Renúncia” (1942) – Roberto Martins e Mário Rossi
Começando a se projetar em 1942, com a valsa “Dorme Que eu Velo Por Ti”, o jovem cantor Nelson Gonçalves se consagraria cinco meses depois, com o fox “Renúncia”. O curioso é que Nelson não estava interessado na música, só a gravando graças a uma determinação do diretor da RCA-Victor. Por isso, ele chegou ao estúdio sem conhecer a melodia. Temendo que Nelson errasse na gravação, Roberto Martins gratificou o saxofonista Luís Americano para ele anteceder a entrada do cantor com um solo do tema.
“Louco (Ela é Seu Mundo)” (1943) – Wilson Batista e Henrique Almeida
No samba de 1943, Wilson Batista apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do ser humano: o malfadado amor. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma letra inteligente e romântica, que acompanha esses passos desenganados e sem rumo. Lançada por Orlando Silva, a música ganhou várias regravações de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia. Mais tarde, Nelson a cantou em dueto com Alcione.
“Maria Bethânia” (1945) – Capiba
Feita por encomenda de Hermógenes Viana, diretor do Teatro dos Bancários, que ensaiava a peça “Senhora de Engenho”, de Mário Sette, a música é inspirada na heroína da montagem. Nelson Gonçalves, em temporada pelo Recife, a ouviu no rádio e acabou registrando a música. Esta gravação só aconteceu por insistência de um lojista pernambucano, que se comprometeu junto à RCA-Victor a comprar um mínimo de duzentos discos. Clássica, a canção inspirou depois o batismo da irmã de Caetano Veloso.
“Caminhemos” (1948) – Herivelto Martins
Atravessando na época um período conturbado de sua vida sentimental, o compositor Herivelto Martins extravasava em sua música os problemas que o afligiam. Assim, não foi por acaso que saíram, em sequência, músicas como “Segredo”, “Caminhemos”, “Cabelos Brancos” e, por fim, as composições que marcaram a polêmica separação da mulher, a cantora Dalva de Oliveira. Lançada em novembro de 1947, por Nelson Gonçalves, “Caminhemos” firmou-se na preferência popular do país após o Carnaval do ano seguinte.
“Normalista” (1949) – Benedito Lacerda e David Nasser
Inspirada num caso real de proibição de casamento, segundo conta David Nasser, no livro “Parceiro da Glória”, a história teria se passado com a filha do coronel Félix Henrique Valois, interventor no Acre. A moça estava apaixonada por um tenente e, normalista, lutava por seu amor. O pai não queria consentir no casamento e havia, de outro lado, a proibição do Instituto de Educação. No final, tudo deu certo, pois além de inspirar um belo samba, a moça se casou. Lançada por Nelson Gonçalves, obteve sucesso imediato.
“Última Seresta” (1952) – Adelino Moreira e Sebastião Santos
Essa foi a primeira música de sucesso de Adelino Moreira lançada por Nelson Gonçalves. Um ano antes, o compositor havia tentado a sorte com a marchinha “Parafuso”, gravada pela dupla Zé da Zilda e Zilda do Zé, mas foi no samba-canção que ele encontrou um campo profícuo para o desenvolvimento de sua obra. Com uma forma de andamento e dança igual ao bolero, mais próxima do choro, a canção “Última Seresta” iniciou uma das parcerias mais celebradas da música brasileira, especialmente nos anos 50.
“Meu Vício É Você” (1956) – Adelino Moreira
Nelson Gonçalves estava gravando vários tangos da dupla de compositores formada por Herivelto Martins e David Nasser, que resolveram lançar com ele uma versão para o clássico “Mano a Mano”, de Carlos Gardel. Só que havia a necessidade de colocar uma outra música no lado B do disco de 78 rotações. Por insistência de Adelino Moreira, o cantor resolveu gravar “Meu Vício É Você”. Essa gravação tem um improviso lindo de Jacob do Bandolim, e acabou que fez muito mais sucesso do que o tango do lado A do disco.
“Dolores Sierra” (1956) – Wilson Batista e Jorge de Castro
Ambientada na Espanha, em Barcelona, com passagem por Salamanca, sua cidade natal, o bolero com a história de Dolores Sierra foi lançado por Nelson Gonçalves, e teve um forte apelo nas rádios da época. A trajetória típica e romantizada da protagonista revela interessantes aspectos históricos, como a lendária e frequente prostituição nos portos e cais do país, para atender aos marinheiros, e a dissociação, neste caso, entre sexo e amor. “Não tem castanholas/ E faz companhia a quem lhe der mais”, afirmam os versos.
“A Volta do Boêmio” (1957) – Adelino Moreira
Um clássico da música sentimental, “A Volta do Boêmio” é, talvez, o maior sucesso da carreira de Nelson Gonçalves. Num estilo que mais tarde seria chamado de brega-romântico, este samba-canção trata de um personagem que, tendo abandonado a boemia pelo amor a uma mulher, pede agora “inscrição” para voltar à vida antiga: “Boemia, aqui me tens de regresso/ E suplicante, te peço/ A minha nova inscrição/ Voltei pra rever os amigos que um dia/ Eu deixei a chorar de alegria/ Me acompanha o meu violão”.
“Fica Comigo Esta Noite” (1961) – Adelino Moreira e Nelson Gonçalves
Além de intérprete principal da obra de Adelino Moreira, Nelson Gonçalves foi também o seu parceiro em mais de vinte composições. A mais conhecida de todas elas certamente é “Fica Comigo Esta Noite”, que virou tema de musical e até título de filme erótico. Em 1980, Angela Ro Ro sublinhou a sensualidade da canção ao reforçar os tons de bolero contidos em seu ritmo. Outros artistas deram a sua versão para a história de amor, como Agnaldo Timóteo, Simone, Núbia Lafayette e Fábio Jr. Mas a de Nelson é insuperável.
Fotos: Museu da Imagem e do Som/Divulgação