O homem que foi quase comido por um jacaré

“Mas sempre se encontra um círculo de pessoas para quem se tornam importantes as coisas que aos olhos dos outros são desimportantes.” Gógol

Há pessoas que são mesmo estranhas. Hickens disse que estava bem, mas o fato é que, dois segundos depois, caiu desfalecido na grama. Foi um tanto custoso tirá-lo de lá porque além do desespero e do pânico que tomou conta de todos, o sujeito ainda pesava umas boas toneladas. Não impressionava que Hickens estivesse constantemente se queixando de dores no estômago. O café da manhã do homem era um espetáculo para se ver de perto, preparado por sua esposa mais do que dedicada, que alguns acusavam de ser submissa com olhares reprovadores ou mesmo comentários sem a menor intenção de discrição, como era o caso de Elaine, que perguntava para todo mundo ouvir como era ter trocado uma mãe por outra quando ela chegava a tempo de conferir o desjejum do glutão, feito de ovos mexidos, bacon, dois a três pedaços de pão com manteiga, cereais e bananas mergulhados no leite, suco de melancia, quatro generosas fatias de bolo cujo sabor variava entre coco, chocolate com cenoura e formigueiro, uma broa de fubá, uma fatia de mamão, duas de melão e algumas rapaduras para terminar de embrulhar o estômago de quem assistia tudo aquilo, que serviam de desculpa para o sujeito enfiar ainda mais duas xícaras de café goela abaixo. Hickens tinha um certo deslumbramento com o modo de vida norte-americano, talvez pelo próprio nome que carregava. Mas Elaine, amiga de infância da esposa de Hickens que jamais se casara e que exibia uma certa altivez da solidão que aos poucos deixa as pessoas circunspectas nelas mesmas, não estava presente no dia do fatídico acidente.

Se é que se pode chamar de acidente o que aconteceu, no entanto, não é por falta de palavra mais adequada que iremos emperrar a história. Os ataques de jacarés a seres humanos eram raríssimos. Na verdade, era mais comum acontecer o contrário. Da primeira vez em que dois moleques que ainda não tinham idade para serem presos nem mesmo tirar uma habilitação para dirigir jogaram várias pedras e pedaços ocos e podres de pau até atingir o animal na cabeça aquilo virou notícia. A imprensa tratou rapidamente de correr atrás da vida pregressa de cada um, que não era muito longa, pois os guris tinham no máximo 12 ou 13 anos cada um, e logo ofereceu as melhores conclusões para a população sedenta por justiça se lambuzar: eram tipos perigosos que precisavam ser contidos, com 10 anos eles já tinham tentado pular o muro de uma casa para roubar as mangas de uma árvore e, ao se depararem com o rottweiler do dono da propriedade, também tinham agredido o animal com pedaços ocos e podres de paus enquanto corriam para salvar a própria pele, o que, no caso, equivalia a dizer que protegiam suas bundas de uma dolorosa e instintiva mordida. De outra feita, assustaram uma velhinha que passava na rua, por pura maldade, ao gritarem para ela que um rato tinha acabado de sair do esgoto naquela movimentada avenida no centro da cidade e, aproveitando-se da distração da distinta senhora, trataram de levar as bolsas cheias de compras para o Natal da madame. Todas essas informações haviam sido passadas por pessoas confiáveis do 19º distrito policial que já haviam colocado as mãos nos garotos mais de uma vez, mas que foram obrigadas a colocá-los de volta na rua por falta de provas. Os supostos meliantes negavam tudo, e chegavam a sugerir que eram perseguidos pela coloração escura de seus corpos e pelos cabelos enrolados acima da cabeça. Fora isso, as outras únicas testemunhas possíveis eram as mães dos meninos, mas elas preferiam não falar com a imprensa, sob o argumento de que esta via nelas apenas um espetáculo bizarro que ajudaria a vender jornais, como nos velhos circos de aberrações. Os pais também não poderiam ser ouvidos, pois ambos haviam desaparecido. O que corria à boca pequena na vizinhança do aglomerado era que um deles havia abandonado a esposa logo depois de saber que ela estava grávida. Anos depois, a mulher o teria reconhecido entre os mortos de uma das maiores chacinas ocorrida dentro de um presídio na história do país. À essa altura, o filho tinha apenas 5 anos, e não teria entendido nada quando a mãe começou a se contorcer quando ouviu um nome no noticiário da TV, o que rapidamente evoluiu para espasmos e convulsões. O socorro demorou a chegar, mas, felizmente, ainda a tempo de leva-la para uma unidade médica de pronto-atendimento, onde ela esperou por mais 12 horas até ser levada em cima de uma maca para uma sala branca e fria, já sem o acompanhamento dos gritos de protesto e desespero da mãe, uma velha de 80 anos que mal se aguentava nas próprias pernas e que para isso usava uma bengala a fim de suportar o peso de seu próprio corpo. Quando a filha pôde enfim ser atendida, a resignação da morte estava estampada no rosto da velha. A vida da filha foi salva por um jovem médico de pele escura, rosto angulado e cabelo raspado, que havia conseguido aquela vaga graças a um programa de cotas instituído pelo governo para pessoas negras e de baixa renda. No entanto, além da sequela emocional daquele episódio, a mãe de um dos supostos marginais passaria a precisar de auxílio constante para algumas atividades básicas, já que o lado esquerdo de seu corpo havia ficado paralisado. O remédio para aquele problema eram aulas de fisioterapia que ela não podia pagar. Pois então, Solange se conformou em ter a ajuda primeiramente da mãe e, com a morte desta aos 86 anos, do seu único filho para cozinhar, tomar banho, lavar e passar roupas e até mesmo se sentar no vaso para satisfazer as suas necessidades fisiológicas. O garoto que na infância era famoso por suas estripulias no bairro, como levantar as saias de todas as garotas que passavam, passou a ficar cada vez mais tinhoso, xingando sua mãe por ter se tornado uma inválida que o obrigava a fazer atividades domésticas e desconjurando a memória do pai, um criminoso qualquer que tinha morrido nas mãos dos meganhas. As bocas mais maledicentes da vizinhança diziam até que ele adorava o diabo e que esbravejava com o orgulho e a petulância típica da adolescência que Deus não existia e, se existisse, era um grande filho da puta.

A história do pai do outro garoto era mais nebulosa. Haviam poucas informações. Só o que se dizia é que ele era um militante da luta armada e, uma vez capturado pela ditadura, fora torturado, depois esquartejado e, finalmente, tinham jogado os restos mortais de seu corpo na lagoa da Pampulha, o cartão-postal da cidade de Belo Horizonte, para o jacaré devorar. Talvez isso explicasse o ódio mortal do garoto pelo jacaré da lagoa. Mas isso não explicava o porquê, após esse primeiro caso de ataque ao réptil, outros se seguiram. O desinteresse da imprensa poderia ser explicado pelo fator da novidade pois, uma vez que o gesto se tornara repetitivo e banal, não fazia mais sentido contar aquela mesma história que soaria como uma ladainha. Mas o desinteresse da própria polícia quando um grupo de sete rapazes em carros tunados desceu de suas máquinas com alguns sinais de embriaguez na noite de 20 de março de 2005 e açoitou o animal durante horas com paus e fósforos acesos que eles amarraram em seu rabo depois de atraí-lo para a beirada da lagoa com iscas de peixes em postas, é algo que ainda merece ser estudado. Sem contar a vez em que uma garota arremessou um anel comprovadamente de ouro com detalhes em diamante na direção do animal. Não sabemos até hoje se ela teve a intenção de acertá-lo, pois, na sequência, ela foi fazer companhia ao anel na lagoa e só foi tirada de lá já sem vida, na manhã seguinte, branca como a neve e rígida feito uma estátua de marfim. A polícia concluiu o caso como suicídio, mas tanto o noivo viúvo como a família da defunta, que morava numa das mansões próximas à região e era herdeira do inventor de um famoso refrigerante, afirmavam categoricamente que após se arrepender do gesto impensado de atirar o anel de ouro na água, ela tentara resgatá-lo e então se afogara. Fato é que a esses casos célebres e notórios se somava mais uma centena de outros, menos inusitados e famosos, de ataques de humanos ao jacaré.

Pois naquele dia o animal foi à forra. Justamente contra o pobre do Hickens, que nada tinha a ver com o passado de rancor construído entre as duas espécies. Cabe dizer que, além de gordo, Hickens era um tanto atabalhoado, e talvez isso tenha contribuído para o ataque. Os gestos do homem eram sempre exasperados, incertos, sem nenhuma precisão. A única segurança que ele demonstrava era ao segurar um garfo e uma faca nas mãos, ou quando levava a tigela de cereais com bananas mergulhados no leite em direção à sua boca sempre faminta. O nome do sujeito também não ajudava, vamos combinar. Uma pessoa que nasce com um nome norte-americano em terras tupiniquins está condenada a carregar esse tipo de deslumbre ianque para a sua vida inteira. Por sinal, a mãe de Hickens, uma mulher tão devotada ao filho quanto a todos os santos da igreja católica que pudessem ajudá-la a sair de enrascadas, tinha cometido esse erro na saída. Porque, na verdade, ela queria batizar o rebento gorducho com o nome de Dickens, Charles Dickens, em homenagem ao mais popular de todos os romancistas ingleses da era vitoriana. Tudo porque, no instante em que os olhos dela cruzaram com os do mágico David Copperfield pela primeira vez na TV, ela se encantou com o rapaz bem-apessoado de longos e cheios cabelos negros de um tal modo que aquele passou a ser o único assunto de sua existência. Acontece que, disposto a pregar uma peça em sua esposa, o marido da mãe do Hickens um dia contou para ela que o mágico era apenas um personagem de um romance de Charles Dickens. Mas o tiro saiu pela culatra. Como a história comprova. Sem nunca ter lido uma linha da obra de Dickens, a mulher ficou ainda mais admirada com o fato de ver tanta realidade numa pessoa fictícia, falsa, feita de papelão ou das linhas nascidas na imaginação de um inglês caduco. Enquanto ela estava grávida, um dia o marido se engasgou com uma bolacha porque, envolvido de tal maneira no jogo da final do campeonato de futebol que assistia pela TV, o homem se esqueceu de molhar o biscoito no leite e morreu instantaneamente. Àquela altura, Amélia já tinha decidido qual seria o nome de seu filho, mas o fato é que, seja pela pronúncia dela ou pela má audição do tabelião, Hickens nunca foi Dickens. Embora tivesse seguido a mesma profissão do velho barbudo gringo.

E, afinal, ninguém viu direito o que aconteceu, porque foi tudo muito rápido. Hickens gesticulava como de costume e o seu rosto redondo e assertivamente branco estava com aquela coloração vermelha que se acentuava ao redor das bochechas quando ele falava demais, o que o deixava com pouco fôlego e, por consequência, dificultava a sua locomoção. Ao tomar ar para soltar mais uma frase que ele considerava de suma importância para a humanidade, arriando um pouco mais as calças que comprimiam o seu sempre dolorido estômago, o animal lhe desferiu uma bela bocada na jugular, daquelas de cinema norte-americano, com direito a closes, trilha sonora incidental e tudo mais, para ser vista frame a frame. Só que na hora ninguém nem teve certeza do que tinha se passado. Se era um bumerangue, um pedaço de pau oco e podre ou uma cobra que se lançara contra o pescoço suculento do pobre Hickens. A reação dele foi tão instantânea e espicaçada, como se tivesse sido picado por um inseto peçonhento que, com a mesma velocidade que o bicho veio ele voltou para a beirada da água. Só tivemos certeza de que se tratava de um jacaré quando, depois de acalmados pelo próprio Hickens, que apesar do susto nítido em sua coloração agora arroxeada dizia estar tudo bem, vimos o último pedaço do rabo cartilaginoso e verde do jacaré retornar para seu habitat natural. E aí logo depois também, quando o estrondo seco da batida do corpo imenso de Hickens caiu na grama, feito um pedaço de pau oco, devolvendo o bicho ainda mais rapidamente para a lagoa, ninguém mais pensou no destino do jacaré, e sim no da vítima humana. Apesar de eu ser obrigado a dizer que um detalhe que passou despercebido naquele dia depois me atormentou durante semanas, até o cansaço resolver o dilema pela exaustão. O Hickens tinha uma baita cara de capivara.

Depois desse dia, o Hickens nunca mais acordou. Mas o episódio era muito bom para a imprensa desperdiçar assim, como se fosse uma simples galinhada ou um frango ao molho pardo. Aquilo era um banquete digno dos javalis que se devoram nas histórias em quadrinhos sobre uma certa tribo gaulesa que resistiu ao domínio do império romano. Possuía todos os requisitos para uma manchete espetacular, sensacional. Era o tal exemplar raro, do homem mordendo o cachorro, só que ao contrário, se bem que, a certa altura dos acontecimentos, ninguém sabia quem tinha mais humanidade, se o jacaré assassino ou a vítima humana. Fuçaram e reviraram toda a vida pregressa do Hickens, e ali tinha coisa. Um homem de 54 anos certamente já tinha aprontado das suas durante uma existência que, se não era mirabolante, tampouco poderia ser medíocre. Por essa o Lacerda, repórter da Gazeta Diária designado para o caso, não esperava. Ele foi vendo a sua expectativa minguar até não passar de uma simples mosca dentro de uma pequena poça de chuva que reflete as marcas de sola quando sente o peso de um sapato em cima da calçada de uma avenida cinza e turva. A vida do sujeito, além de sem graça como mingau, era de uma mesquinharia constrangedora. Turrão desde a infância, Hickens nunca tinha se casado, ou sequer tido uma mísera namorada, nem uma paixonite platônica. Ele era conhecido por negar até apertos de mão para não gastar a maciez da palma guardada para as atividades mais nobres e delicadas, que dirá permitir que alguém se aproximasse o suficiente de seu corpo para bagunçar seu cabelo ou sua alma. O pai era um militar que, diziam, durante a ditadura no país tinha instaurado um tipo novo e ainda mais sádico de tortura, em que picava partes do corpo do torturado ainda vivo, justamente as que não eram vitais, para que ele continuasse a sentir com cada vez mais intensidade aquela dor latejante, feito um Cristo na cruz com as mãos e os pés atravessados por pregos enferrujados. Depois, diziam, ele próprio se incumbia de atirar os pedaços da vítima na lagoa, assistindo fascinado, com a contumaz embriaguez dos genocidas, o jacaré devorar os pedaços de carne humana, para êxtase do único espectador daquela plateia de horror tão bizarro que ofuscava a realidade.

O que complicava ainda mais a história é que o sujeito era um homem culto, lido, que amava as peças de Shakespeare, os poemas de Ezra Pound e a música de Wagner, mas, frustrado com a própria incapacidade de escrever sobre a miséria humana para além dos clichês habituais, tinha um prazer mórbido de destruir aqueles que atingiam tal façanha: suas vítimas prediletas eram militantes ligados de alguma forma às artes, como o negro que deixara a mulher grávida, cujo poema “Ninguém Solta a Mão de Ninguém” havia sido capaz de quebrar, ao menos simbolicamente, as algemas e correntes daquela repressão nefasta. Para superar o trauma da própria frustração só havia uma única resposta para o general: que o seu primogênito se tornasse um escritor celebrado. Mas afinal de contas ele morreu antes mesmo da bolsa d’água de sua fiel esposa estourar (aquela que sabia dos segredos mais sórdidos e das piores confissões do marido sobre o prazer que ele sentia com a humilhação alheia, da qual, por várias vezes, ela própria servira de mártir). Pois a dor e a violência se diferem nas suas consequências. A dor é o que nos torna mais humanos, enquanto é a violência que nos transforma em animais cegados pelo instinto.

E sem a influência paterna, Hickens foi um menino mimado, distante das outras pessoas, fechado em si mesmo, com uma obsessão incontrolável de guardar dentro de si tudo o que o seu dinheiro herdado pudesse comprar ou engolir, mas nunca, jamais, em tempo algum, havia sido um homem agressivo. O traço de agressividade que havia em sua pessoa se revelava apenas de maneira oblíqua, enviesada, nunca com a força física de um braço ou uma perna, mas a partir de suas palavras que, à bem da verdade, tinham o peso de uma pluma, pois eram tão destituídas de vigor quanto um cacto desidratado. Não havia vida em nenhuma palavra de Hickens, apenas o bolor de clichês amontoados uns sobre os outros como uma bola de gato. Tudo o que ele dizia com a agitação de seus gestos exasperados e o fulgor de uma grande revelação eram trechos esparsos de citações emboloradas que ele havia catado aqui e ali em páginas midiáticas de confiança duvidosa, como um grande mosaico que espelhava a sua cara alva feito a de uma criança albina, com a inocência vazia de quem sente a dor física de uma picada de abelha sem compreender a densa tragédia que o prenúncio da morte do inseto revela sobre a inevitabilidade do nosso próprio desaparecimento futuro. E desta mesma matéria era feito o único romance vagabundo que o Hickens tivera a coragem de publicar, não apenas porque já duvidasse àquela altura das suas próprias capacidades literárias, mas, sobretudo, porque ele se apegara demais ao dinheiro para o sair distribuindo por aí entre editores fajutos que recusavam sem cerimônia publicar aquela obra por uma quantia que consideravam sempre parca para passar por aquele vexame de carimbar um livro com tamanha estupidez vocabular e inconsistência artística.

Até que um dia recomendaram ao Hickens um proxeneta que se dispôs a publicar aquela coleção de abobrinhas por uma quantia que o autor considerou justa, não a ideal, mas o suficiente. A verdade é que o Hickens fez aquilo mais para agradar a própria mãe, cada vez mais próxima de se tornar uma defunta, já que ele próprio não colocava lá muita fé nas linhas de “O Amor é Como Uma Lagoa”, espécie de folhetim mexicano sobre as tentativas de Orlando conquistar o coração de Clotilde, até que o galã do livro descobre que a amada é uma subversiva que trabalha secretamente na guerrilha e, depois de sequestra-la, ele a estupra durante várias horas na beira de uma lagoa onde jazia uma árvore em que, no tempo de apaixonado, o protagonista havia cravado com ferro e fogo as inicias dos dois. Não satisfeito, Orlando ainda a corta em pedacinhos e a serve numa bandeja de prata para a própria mãe, dizendo ser carne de jacaré. Se o conteúdo é nojento, a forma com que o autor articula as ideias não é menos digno de repulsa. Pois quem iria supor que esse romance chinfrim escrito 15 anos antes do acidente seria o grande trunfo da reportagem escrita pelo Lacerda? Relegados a prateleiras empoeiradas durante décadas, os exemplares do romance mórbido começaram a vender como água de uma lagoa miraculosa com a tragédia do Hickens, o homem que foi quase comido por um jacaré. O troço virou novela e até filme estrelado pelo Adolfo Ribeiro e a Estela Constança. Um best-seller insuperável. Os exemplares mais raros eram vendidos em leilões porque traziam dedicatórias de próprio punho escritas para amigos já falecidos pelo agora vegetativo autor, em coma desde a mordida do jacaré. Só que três meses depois daquele fuzuê uma barragem de lama gerida pela maior mineradora do país explodiu e engoliu 300 pessoas de uma só vez, que nunca tiveram os seus corpos resgatados para serem enterrados pelos parentes, apenas algumas partes como pernas e braços. Então, com a confusão envolvendo os advogados da mineradora, que subiam orgulhosamente em tribunas para, constipados e compungidos, lançarem olhares lacrimejantes e palavras brilhantes feito um raio para afirmar que tudo não passara de uma tragédia natural inevitável, cujo único culpado era o próprio Deus do mundo, com as famílias miseráveis ainda procurando conceber como as ossadas que recebiam eram as mesmas pessoas de fibra e musculatura presas em suas recordações cada vez mais desfocadas, o caso do Hickens ficou meio de lado.

Passado um ano, Hickens continua internado. Mas as vendas de seu best-seller e dos demais produtos da franquia mirraram, e estão cada vez mais parecidas com o raquítico corpo dum moleque que furta mangas. Talvez amanhã desliguem os seus aparelhos. É o que se fala, mas pode ser só um boato.

Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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