“A cultura de massa (ou melhor seria dizer a política de massa) foi vista com toda a clareza por Borges como uma máquina de produzir lembranças falsas e experiências impessoais. Todos sentem a mesma coisa e recordam a mesma coisa, e o que sentem e recordam não é o que viveram.” Ricardo Piglia
O chocante assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018) completa neste mês de março um ano, sem ter sido solucionado. Defensora dos direitos humanos, feminista, negra, bissexual e vinda da periferia, a socióloga e ativista tornou-se tema recorrente de canções e manifestações culturais desde a sua morte, transformando-se em um símbolo da luta contra as opressões. MC Carol dedicou música à vereadora, Criolo a citou no videoclipe “Boca de Lobo”, e, em 2019, o samba-enredo da Mangueira fará menção a Marielle.
A vereadora voltou a ser lembrada nas imagens de “Rumos e Rumores”. Lançada pelo rapper Vitor Pirralho com participação de Ney Matogrosso, a música apela contra a destruição dos povos indígenas. Por sinal, Ney esteve no centro de uma polêmica em 2017, ao ser criticado pelo cantor Johnny Hooker, que acusava o veterano de “desdenhar da causa gay” após uma entrevista em que o antigo vocalista do Secos & Molhados rejeitava ter se tornado um representante das minorias e se definia como “um ser humano”.
A posição parecia ir na contramão de uma nova geração habituada a hastear suas bandeiras dentro e fora dos palcos e estúdios. Liniker e MC Linn da Quebrada, por exemplo, se associaram ao movimento MPBTrans, termo cunhado por Jean Wyllys, deputado eleito que se refugiou fora do país devido a ameaças. A identificação com temas urgentes ainda levou toda uma juventude a idolatrar Elza Soares depois do renovador álbum “A Mulher do Fim do Mundo” (2015).
Na opinião da crítica musical Débora Nascimento, a profusão se deve a uma “democratização dos meios de produção musical e divulgação”. “Foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e interpretadas por pessoas que vivem experiências relativas às suas condições no mundo”, analisa ela, que cita “Flutua”, de Johnny Hooker. “Se alguém quiser entender a homossexualidade no Brasil do final desta década, essa composição será referência”, diz.
“Nega Braba” (2018), por Lellêzinha
Trecho: “Bom dia, preta
Vem pra luta, o ouro é meu
Tô indo buscar
Fechou a cerca, vai lá e pula
A nega é braba tem que aturar”
“Coisa Mais Bonita” (2018), por Flaira Ferro
Trecho: “Não tem coisa mais bonita
Nem coisa mais poderosa
Do que uma mulher que brilha
Do que uma mulher que goza”
“Princesinha Underline 86” (2018), de Manu da Cuíca
Trecho: “Tem a sua amiga colorida
E um colega transexual
A barriga é quem compra a briga
Entre a birita e o abdominal”
“Hino da Corte Devassa” (2018), por Marcelo Veronez
Trecho: “Não sou bandida
Eu nasci puta, mas dou de graça
Nesse carnaval meu nome é corte devassa”
“Proibido o Carnaval” (2019), por Daniela Mercury & Caetano Veloso
Trecho: “Abra a porta desse armário
Que não tem censura pra me segurar
Abra a porta desse armário
Que alegria cura, venha me beijar”
“Rumos e Rumores” (2019), por Vitor Pirralho & Ney Matogrosso
Trecho: “Buraco da memória
Tortura 101, no meio da escória
Quem é você, mais um?”
Entrevista com a crítica musical Débora Nascimento:
1 – Temos visto a ascensão de uma nova geração da MPB muito ligada às pautas identitárias, defendendo bandeiras sobre sexualidade e contra o preconceito de toda espécie (como Liniker, Johnny Hooker, Não Recomendados, Letrux até a Elza Soares surfando nessa onda). Na sua opinião, essa é a era em que a música brasileira está mais próxima de um ativismo? Se sim, a que se deve isso? Qual é a diferença em relação a outras épocas?
Até os anos 1990, a música no país era muito voltada aos grandes nomes da sua MPB e do seu pop, que inspiravam e pautavam novos compositores. Não era incomum apontar que tal autor novato assemelhava-se a Caetano ou a Djavan, por exemplo. Os compositores medalhões funcionavam também como porta-vozes de seus personagens, fossem mulheres, negros, trabalhadores oprimidos, como é o caso de Chico Buarque, que dava voz, em suas letras, a essas minorias. Com a democratização dos meios de produção musical e divulgação, foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e/ou interpretadas por pessoas que vivem ou viveram as experiências relativas às suas condições no mundo. Acredito que o ponto de virada para essa nova referência de composições se deu com o sucesso de “Sobrevivendo no Inferno”, lançado de forma independente pelos Racionais MC’s em 1997. O disco ultrapassou os limites do mercado rap nacional, subverteu as regras do mercado fonográfico, alcançou um público maior, mostrou que um novo modelo era possível. Hoje, as pautas identitárias estão na ordem do dia também pela pressão popular nas redes sociais.
2 – Esse ativismo na canção popular tem produzido boas canções? Porquê?
Sim, esse ativismo tem produzido boas canções. Um dos exemplos, é “Flutua”, de Johnny Hooker, uma composição que representa bastante os tempos em que estamos vivendo. A letra retrata, do começo ao fim, o que passa um relacionamento homoafetivo nesse contexto de perseguição aos LGBTQ+s no país. Em meio a isso, o compositor reafirma, em suas palavras, que os gays não vão voltar para o armário. Daqui a algumas décadas, se alguém quiser entender a homossexualidade no Brasil do final desta década, uma composição como essa será uma referência, um documento. Assim também como “Maria da Vila Matilde”, lançada por Elza Soares em 2015, que representa a mulher (empoderada) desta década, amparada na Lei Maria da Penha e que não vai admitir ser vítima de violência doméstica. O sucesso de muitas músicas lançadas por essa geração não se deve apenas às letras, mas ao pacote que soma boas melodias a ótimos músicos e produtores.
3 – Em que pontos arte e ativismo se encontram e se separam, em sua opinião?
O ativismo LGBTQ+, por exemplo, pode estar presente na letra, mas também na simples existência de artistas como a drag Pabllo Vittar e a transsexual MC Linn da Quebrada. Vale lembrar também de artistas que surgiram antes, como Angela RoRo, Cazuza, Renato Russo, Marina Lima, Cássia Eller, Ney Matogrosso, que pavimentaram o terreno para que essa nova geração quebrasse as portas do armário.
4 – É possível separar a arte de um artista da posição política dele? Por exemplo, Wilson Simonal, Chico Buarque, Roger Waters, etc?
Isso vai depender mais do público do que da crítica. É inegável a importância de Roger Waters e de Chico Buarque, mas muitos fãs se sentiram decepcionados pelo posicionamento político de ambos: o primeiro, por conta da adesão à campanha #elenão, e o segundo, da defesa de Dilma Rousseff e de Lula. Por outro lado, Wilson Simonal, um dos maiores cantores do país, passou a ser ignorado pela esquerda devido ao seu comportamento adesista durante a ditadura militar. Para além desses casos específicos, o artista deve estar sempre do lado dos direitos humanos e da democracia. Pela sua essência libertária, a arte não deve compactuar com o autoritarismo, a homofobia e o racismo. Os Beatles, em sua turnê nos EUA em 1964, não admitiram a divisão do público entre brancos e negros, quando a segregação racial nas plateias era algo comum em muitos estados norte-americanos. Em alguns deles, era a primeira vez que jovens brancos e negros assistiram a shows lado a lado. No palco, o grupo cantava canções de amor (heterossexual), mas começava a promover uma revolução musical e de costumes, que mudaria a música e o mundo para sempre. Sim, é possível separar a arte de um artista da posição política dele, mas é bem melhor gostar de um artista que, além de um repertório relevante, tenha um comportamento empático com as grandes questões que afetam a humanidade.
5 – Há quem diga que muitas pessoas se aproveitam desse momento e levantam bandeiras sem produzir algo que seja interessante esteticamente, como a polêmica envolvendo Nego do Borel recentemente. O que pensa a respeito?
O artista que não é sincero com o que defende, em algum momento de sua carreira, vai ser desmascarado e desacreditado. É importante saber qual o seu terreno, para não ganhar a fama de oportunista. Isso é diferente, por exemplo, do comportamento artístico de Caetano Veloso, que, desde o Tropicalismo, vem buscando abraçar diversos gêneros musicais e temáticas variadas. Mas, se um artista não compreende aquela bandeira que levanta ou não se sente à vontade com ela é melhor não ingressar na onda. Foi o caso da dupla Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, que não se sentiu à vontade para compôr músicas de protesto durante a Ditadura Militar.
Raphael Vidigal
Fotos: Célia Santos/Divulgação; e Leopoldo Castro/Divulgação, respectivamente.