*por Raphael Vidigal
“Tomo para mim uma tarefa inteira:
A de guardar um tempo, o todo que recebe
E livrá-lo depois de um jugo permanente.
Outros te guardarão. Não eu que só pretendo
Libertar na alegria o coração e a mente.” Hilda Hilst
Ela imitava Sandy e Simony e ouvia Daniela Mercury, não necessariamente ao mesmo tempo. Entre as faxinas da mãe “escutava uma gama imensa de música de um determinado estilo”, sucesso na época, como a dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano. “Não nasci Clarice Lispector por pouco”, confessa ela que, ao ser questionada sobre o nome artístico, responde como a autora de “A Maçã no Escuro”. “É segredo, só as crianças sabem”, ri-se. Assim Jhê Delacroix, natural de Niterói, no interior do Rio de Janeiro, e residente em Belo Horizonte há quatro anos mantém o mistério e não entrega pistas de parentesco com o pintor francês famoso por telas políticas, de que é o maior exemplo “A Liberdade Guiando o Povo”. Mas deixa claro que com seus 28 anos e alma lavada sem ter onde secar – para parafrasear Cazuza – navega entre a irreverência e a preocupação histórica. De volta à meninice Jhê recorda seus primeiros tempos. “Sempre amei escutar música e como também tinha essa aptidão imitava os artistas pros meninos mais velhos pra poder enturmar”.
Daí, ela já parte para o futuro. Cantora, atriz, bailarina, assistente social, artista plástica, contadora de histórias, escritora e tudo o mais que englobe a arte, como se verá a seguir, Jhê é um dos destaques do carnaval de Belo Horizonte. Venceu este ano o Concurso de Marchinhas Mestre Jonas, com a canção “Baile do Cidadão de Bem”, como intérprete e coautora. Detalhe: é a primeira compositora mulher a levar o prêmio. “Acho importante ter uma mulher num concurso de marchinha, acho importante ter a mulher em qualquer espaço porque não é só homem que faz música de qualidade, que faz letra de qualidade, e a gente está aí pra provar isso”, sentencia. A música premiada, que tira sarro daqueles que foram às ruas pedir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, é uma parceria com Helbeth Trotta que, de acordo com Jhê, já havia pensado na letra e na melodia. “Ele me chamou para ser intérprete e numa conversa a gente começou a perceber que poderia colocar algumas outras coisas na letra, mudar outras, e acabou virando uma parceria”, relembra.
MÚSICA PRA QUEM?
Atualmente Jhê toca vários projetos, mas assume um “carinho e amor especial” pela iniciativa Kriol, em que ao lado do músico Paulim Sartori interpreta canções de origem crioulo cabo-verdianas. Não há economia nos elogios para o parceiro. “Paulim é um multi-instrumentista maravilhoso, um músico extraordinário, dedicado, e, além de tudo, o melhor amigo”, afiança. As músicas “Tchápu na Bandera”, “Dispidida”, “Batanga”, “Febri Funaná” e outras podem ser conferidas nas redes sociais e nas plataformas digitais. Tendo se apresentado na Virada Cultural da cidade no Viaduto Santa Tereza e com clipe gravado, os integrantes já receberam retorno, inclusive, de pessoas naturais do país inspirador, marcado por lutas pela independência e autossuficiência. “A África é um continente tão nosso irmão, então a nossa tentativa é de aproximar mais Cabo Verde do Brasil, afinal de contas tem muito cabo-verdiano aqui. É um projeto muito bonito que procuramos fazer com aquela pitada, por assim dizer, o nosso tempero brasileiro”, conceitua. Em breve tudo deve sair num CD.
Além disso, haverá “músicas autorais que também conversam com o estilo cabo-verdiano”, pontua Delacroix. E não para por aí, pois Jhê também quer “jogar no mundo outras canções minhas”, promete. Influenciada por “Björk, música brasileira e com uma queda pela eletrônica”, a artista iniciou o motim que culminou na insólita aclamação popular à cadela da raça rottweiler Raissa, que assistia da sacada de sua casa ao desfile do bloco “Manjericão” na Quarta-Feira de Cinzas, quando Jhê decidiu cantar “Carinhoso”, de Pixinguinha, na língua do animal, a fim de que ela entendesse o recado (no caso, “AU AU AU AU”). Começou sozinha e terminou acompanhada por todos em vídeo que se tornou viral da internet. “Sou apaixonada pelo carnaval de Belo Horizonte, diferente de todos os outros que eu já presenciei e tive a oportunidade de participar”, declara. Por isso ela se questiona sobre alguns rumos que ele e o país têm tomado. É aí que a política entra. E também a música, fértil e de sola. Não foi a toa que Jhê desfilou em vários blocos feministas neste carnaval. Pois.
MÚSICA PRA CACHORRO
Ativa nas redes sociais, Delacroix estende os seus movimentos até a vida das pessoas. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense, ela trabalha com artes plásticas na saúde mental para a prefeitura de Belo Horizonte, no Centro de Convivência César Campos, e detecta a “precariedade de material para a gente poder dar uma oficina. A cultura no Brasil, de forma geral, precisa e necessita mudar pra melhor”, avalia. Porém as dificuldades estão longe de imobilizar a artista, que, dentre feitos diários, incentivou Roberto Nascimento, antigo morador de rua, a se tornar poeta, com o lançamento da coleção de cordel “O poeta ambulante I e II”, em 2015. “Sou contadora de histórias e isso é uma coisa que me fascina. Tenho histórias autorais que valorizam as frutas brasileiras, o Brasil, palavras brasileiras, e eu gosto muito disso, pra mim é envolvente, é emocionante contar histórias para crianças e adultos”, orgulha-se. Longe de ficar parada na pista, Jhê também faz parte da Orquestra Mineira de Brega, que canta “músicas de raiz que alegram”.
Militante e ativista em várias frentes, ela não descola o seu tempo de sua arte. “A política influencia no meu trabalho a partir do momento que eu, como artista, percebo a carência de cultura. Eu vejo que a cultura, por exemplo, abarca determinado tipo e nicho musical e segrega outros. E a preferência é preponderantemente para os que estão na grande mídia, os comerciais. Exemplo é quando a gente tem uma festa aqui, realizada pela prefeitura, e para as bandas locais de BH é pago um valor mínimo, quando para outros grupos, desses enormes, sertanejos universitários, enfim, esse nicho comercial, é uma fortuna. Para mim é fundamental discutir essa disparidade. Estou no movimento, como artista, de levar a música para o público e de questionar e repensar essa política. Música pra quem?”, indaga. Outras diferenças históricas de tratamento também estão no radar de Jhê para serem minadas. Como está nítido nessa história toda, no amplo arco entre a irreverência e a preocupação histórica, Delacroix não acede aos incautos. Não passarão. Vem mais carnaval.
CONTRAGOLPE
Uma mulher foi agredida a cada quatro minutos no Carnaval. Esses são dados da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Na capital mineira, o efetivo registrou que houve apenas um caso, amplamente divulgado nas redes sociais. Entre a aparência oficiosa e a verdadeira impõe-se a realidade. Enquanto articulistas políticos tiram troça do termo feminicídio, em BH um grupo de mulheres, como a jornalista Renata Chamilet, lançou a campanha “Tira a Mão – É Hora de Dar um Basta”, contra o assédio à mulher. A iniciativa recebeu de presente a música “Marchinho”, composta e interpretada por Brisa Marques, e apoio expressivo e fundamental da população, principalmente mulheres. 86% delas já foram vítimas desse crime. “Enquanto tem várias campanhas contra assédio surgindo, inclusive essa, que fala que mulher não é mercadoria, que ‘não’ é ‘não’, chega um idiota e, num jornal, transforma até a beleza da mulher num produto de mercado, o que acaba influenciando na vinda das pessoas para o carnaval daqui atrás desses atrativos, dessa coisa mulher, como se a mulher fosse entretenimento. Sendo assim o papel da arte, de nós artistas mulheres é mostrar que a gente não é mercado, a gente não é entretenimento”, rebate Jhê.
A alusão é a texto publicado pelo portal BHAZ que sugere, entre outras pérolas, a beleza das mulheres mineiras, “geneticamente modificadas”, como atrativo para se passar o carnaval na cidade, em contraposição aos homens mineiros, “mais feios que o normal”, afirma a lista que conta com mais 14 itens dessa natureza. Desde os tempos de Manuel Bandeira os versos da Brisa soam melhores, pois ela canta na atual marchinha: “sem boa noite cinderela/sem piadinha de machão/meu corpo na passarela/não é o seu corrimão”. Jhê completa o grito. “Essa onda mercadológica de transformar tudo em produtos descartáveis me entristece. Um exemplo é o carnaval de BH virar um produto, quando ele na verdade é uma luta, é uma revolução diária, é uma manifestação contínua da população, das pessoas que querem ter direito à rua, que querem ter direito ao espaço público. Quando transforma isso num mercado, privatiza isso, aí o buraco começa a ficar mais embaixo. O negócio começa a ficar feio. E a convivência começa a ficar deturpada”, reflete, ao relembrar que a volta da folia na capital teve início quando, em 2010, o então prefeito Márcio Lacerda tentou proibir festas na Praça da Estação com uma lei.
LIBERTINAR & LIBERTAR
Contra a medida autoritária da prefeitura, veio o contragolpe da população, que, a partir de 2011 passou a tomar as ruas, inicialmente com a chamada “Praia da Estação”, e, na sequência, com blocos de resistência formados inicialmente por trabalhadores da arte e universitários, até se tornar, finalmente, uma manifestação ampla e popular, que a ordem estabelecida, sem ter mais como conter, procurou, nas últimas edições, cooptar, praxe da política neoliberal. “Temos exemplos de grandes blocos de carnaval que pediram para parar uma manifestação espontânea por causa da conveniência mercadológica. Isso pra mim é um absurdo. O mercado é uma fonte de renda, para todos os músicos, inclusive. A gente não pode demonizar o mercado. Porém eu não acredito nessa pseudoconvivência em que o outro se anule e seja totalmente isento do que está acontecendo no mundo”, contesta Jhê. Se tudo começou com o “FORA LACERDA” e a bandeira colorida da “Alcova Libertina”, bloco carnavalesco, a mão segue erguida para solapar novas farsas.
“Vivemos um momento em que está tudo corrompido, tudo muito comercial, um momento político tenso, no contexto do golpe atrás de golpe, e o artista tem que se colocar na posição, como defensor da política pública, defensor de direito, o direito, inclusive, de ouvir uma música boa, e como artista expressar o que está acontecendo no Brasil, colocar o contexto histórico à tona, até de uma forma leve”, considera Jhê que, ainda no Rio de Janeiro, participou de espetáculos do “Teatro do Oprimido”, método concebido pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal, falecido em 2009, e que almejava, dentre os princípios, democratizar os meios de produção do teatro e promover o acesso das camadas sociais menos favorecidas, instando à transformação da realidade através deste diálogo, tal como Paulo Freire pensou para a educação. Algo que a realidade virtual talvez tenha oferecido na forma, mas ainda não, de maneira essencial, em seu conteúdo. Sendo assim pode ser que o caminho mais curto, ou melhor, mais interessante, não resida na técnica, pois, ao contrário, no bojo.
ARTE
“Tive a oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas e a cada dia eu me surpreendo com BH, que precisa valorizar mais os seus artistas, valorizar os artistas locais, porque são eles que fazem a cidade girar, a nossa cultura, eles que botam a cara no sol e realizam a festa na cidade. Aqui tem artistas incríveis. Eu pude ter acesso a determinado tipo de qualidade musical e qualidade artística ímpar. Belo Horizonte tem muito potencial”, derrete-se Jhê antes de finalizar. Na verdade o mais apropriado é dizer que ela abre uma nova janela, outra porta, destrava os cadeados que se insurgem contra a fruição. “A arte é essencial, porque é a beleza, tem o dom de salvar vidas. Trabalho com saúde mental fazendo arte. A arte salva, a arte cura, a arte envolve, a arte dá significado. E a arte alegra. A arte faz sorrir. E se a gente não sorrir a vida é só trabalho. E uma vida só de trabalho, de meritocracia, não tem sentido. A vida não é isso. A vida é pra fazer arte”. Nem Clarice é tão libertária como Delacroix.
Imagens: Obras de Jhê Delacroix, respectivamente: “Nem se deu conta que se vestia de música”, e “Costela de Adão”.