*por Raphael Vidigal
Bastava uma olhada, um único contato visual para se levantar suspeitas sobre o que aquele homem forte, grande, robusto era capaz. Mesmo os mais precavidos haveriam de tomar um susto, quando ele enchia o pulmão de ar e se preparava para o gesto.
Gesto simples, bonito, pequeno, mas que naquele ser imenso se transformava num verdadeiro rojão de festa: com brilhos explodindo no céu, azulando a nuvem branca e o sol poente. Marchas carnavalescas, versões de sucessos norte-americanos (até Charles Chaplin cantou), sambas-enredo, canções, exclusivamente sambas, tudo era motivo para seu palavreado bem distribuído colocar-se à serviço da música.
“Laura,
Um sorriso de criança
Laura,
Nos cabelos uma flor
Ô Laura,
Como é linda a vida!
Ô Laura,
Como é grande o amor!”
‘Cabeleira do Zezé’ provocou euforia. ‘Laura’ gerou comoção. ‘Exaltação a Tiradentes’ surrupiou o fôlego de muitos foliões. Pioneiro a gravar a letra de ‘Luzes da Ribalta’ no mundo todo, conquistou o coração de uma sedutora moça, também cantora. Com semblante de esfinge e alma angelical, Nora Ney e Jorge Goulart acompanharam-se na vida adulta, musical e nas convicções ideológicas, quando o comunismo em ebulição ainda parecia ter graça.
Mas uma rasteira do destino, invejoso da potência e retidão que tal ser imponente e viril despertava nas pessoas, apaziguou-lhe a fúria do canto. Permaneceu longos anos mantendo a força que elevou às alturas os tons e as notas de uma tradição. Nunca se calou. Apesar das dificuldades, seguiu passando seu recado. Aquele imenso homem, até calado, com pouca voz, quase nada, era todo um oceano musical. Bastava uma olhada, um único contato visual que se detivesse além do esperado, para ser ter ideia do que era capaz.
“Fim de Semana em Paquetá” (valsa, 1947) – Braguinha e Alberto Ribeiro
No final da década de 1940, Braguinha e Alberto Ribeiro captaram com sensibilidade o encanto do despertar do amor, ao retratar encontros no bairro carioca de Paquetá: “Esquece por momentos teus cuidados/ E passa teu domingo em Paquetá/ Aonde vão casais de namorados/ Buscar a paz que a natureza dá/ (…) Agarradinhos, descuidados/ Ainda dormem namorados/ Sob um céu de flamboyants”.
A música foi lançada por Nuno Roland, em 1947, e regravada com enorme sucesso por Jorge Goulart e, depois, Wilson Simonal, na continuação do álbum “Alegria, Alegria” (1967), que trazia o epíteto “Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga”. O álbum seria um estouro absoluto, e o bordão, que Simonal utilizava com frequência ao subir ao palco, seria pego emprestado por Caetano Veloso para batizar uma das canções mais famosas do Tropicalismo.
“Exaltação a Tiradentes” (samba-enredo, 1949) – Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado
“Exaltação a Tiradentes” nasceu de um sonho do sambista Mano Décio da Viola, que agregou aos versos recebidos durante a noite, outros propostos por Estanislau Silva e Penteado. Antes da consagração, Décio e Silas de Oliveira haviam oferecido três sambas com o mesmo tema para a Escola de Samba do Império Serrano. Passada a frustração, a música foi cantada na avenida em 1949, mas só chegou ao disco em 1955, na gravação de Roberto Silva. Outros intérpretes não menos tarimbados a registraram posteriormente, dentre os quais Jorge Goulart com seu vozeirão e a irrepreensível Elis Regina, além de Maria Creuza, Cauby Peixoto, Chico Buarque. Pioneiro, como o seu inspirador, é considerado o primeiro samba-enredo a ultrapassar os limites carnavalescos.
“Balzaquiana” (marcha de carnaval, 1950) – Nássara e Wilson Batista
A gíria criada por Nássara para denominar as “mulheres depois dos trinta anos” foi tirada de um conhecido romance de Honoré de Balzac. Fazendo uso de sua conhecida perspicácia, Nássara percebeu ponto aberto para brincar com divertida preferência amorosa. Seminal grão da celebrada parceria entre ele e Wilson Batista, a marcha ecoou na voz do iniciante Jorge Goulart em 1950, e garantiu ao cantor seu primeiro sucesso.
Dali em diante, Jorge se tornaria especialista em canções do gênero e gravaria novos sucessos da recém-formada dupla. A música alcançou tal proporção que foi traduzida pelo radialista e adido cultural da embaixada francesa no Brasil, Michel Simon. No país de origem do autor que dá nome ao título, a canção pôde ser ouvida em comemoração ao centenário do seu nascimento. Hoje, a versão francesa encontra-se na “Casa de Balzac”, museu que guarda as memórias do escritor francês.
“Sereia de Copacabana” (marcha de carnaval, 1951) – Nássara e Wilson Batista
Filho de libaneses, o carioquíssimo Nássara iniciou sua carreira de compositor vencendo concursos em que participavam Lamartine Babo, Ary Barroso e seu vizinho de Vila Isabel, Noel Rosa. Consagrado através das marchas, Nássara proporciona animada disputa, dessa vez entre mulheres de vários países, mas seu coração acaba se decidindo pela sereia brasileira, em parceria sua com Wilson Batista. “Sereia de Copacabana” foi recebida pelo público através da voz encorpada de Jorge Goulart, no carnaval de 1951.
“Mundo de Zinco” (samba de carnaval, 1952) – Nássara e Wilson Batista
Crescido em ambiente carnavalesco, Nássara ajudou a organizar em 1932 o primeiro concurso de escolas de samba do Rio de Janeiro. Frequentador do “Ponto de Cem Reis” e do “Café Nice”, locais de encontro da boêmia, em 1952 ele compôs ao lado de Wilson Batista, um samba para Mangueira, escola que contava com sua torcida. Visualizando a história do morro, os versos finais da música são em tom de despedida e deixam clara a intenção dos compositores de exaltarem o que admiram: a glória do samba, o céu de Mangueira, os malandros e as cabrochas.
Interpretada por Jorge Goulart, foi premiada como samba mais bonito do carnaval carioca daquele ano. De acordo com o jornal “Última Hora” da época, possuidora de “letra inspirada, bonita e ao mesmo tempo fácil de ser apanhada pelo povo; sua música é melódica, mesmo nas estridências necessárias do apito de trem, harmonizando-se em ritmo essencialmente vivo e vibrátil”.
“A Voz do Morro” (samba, 1955) – Zé Kéti
Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Kéti tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: “A Voz do Morro”, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravada por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme “Rio 40 Graus”, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e ganhou uma versão de Luiz Melodia em 1980.
“Marcha da Quarta-feira de Cinzas” (marcha-rancho, 1963) – Vinicius de Moraes e Carlos Lyra
O ato mais duro da ditadura, o AI-5, que fechou o Congresso e institucionalizou a censura e a tortura, ainda não havia sido promulgado pelo marechal Costa e Silva que, na ocasião, era Ministro da Guerra do ditador Castello Branco. Partiu de Costa e Silva e intenção de enquadrar Nara na Lei de Segurança Nacional para prender a cantora. A ameaça despertou uma mobilização da classe artística. Carlos Drummond de Andrade, consagrado como um dos maiores poetas brasileiros, escreveu em sua coluna o poema “Apelo”, que ficou mais conhecido pelo verso final: “não deixe, nem de brinquedo/ que prendam Nara Leão”. Em 1964, Nara gravou a “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, parceria de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra lançada um ano antes por Jorge Goulart, que captava bem o espírito daqueles tempos sombrios que se estendiam sobre o país.
“Cabeleira do Zezé” (marchinha, 1964) – João Roberto Kelly:
A música de Carnaval mais expressiva no que diz respeito à representação do homossexual na MPB é a marchinha “Cabeleira do Zezé”, de João Roberto Kelly. Gravada em 1964 por Jorge Goulart e sucesso por muitos outros Carnavais, a música trata o homossexual com deboche e certa agressividade, ameaçando-lhe cortar os cabelos. Jorge Goulart tornou-se um habilidoso intérprete de marchinhas, e chegou até a gravar um disco com Emilinha Borba.
3 Comentários
Que descanse em paz!
Os que gostam de carnaval, sobretudo os que cantam as marchas nos blocos e salões até hoje se ressentem da perda desse grande cantor.
Com toda certeza, Marcelo. Abraços
Eu tinha o Jorge como se fosse meu avô. A última aparição dele na TV foi no meu programa do Canal Brasil. Muita gente pensava que ele já tinha morrido porque desde 1984 ele não podia falar direito devido ao câncer na garganta. Mas eu peitei e disse que ele precisava estar no programa, então ele apareceu com legendas.