A Porta de Todos os Mistérios

“Se as portas da percepção forem abertas, as coisas surgirão como realmente são, infinitas…” William Blake

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Trancada a porta. Gira a maçaneta uma, duas, três, quatro, cinco, incontáveis vezes, inutilmente. Todo o esforço de bíceps e tríceps comprimidos, avermelhados, músculos estouram. Suores chegam a formar pastosas babas de vacas ou dragões da Indonésia, o peso do volume embarga como náusea, ânsia de vômito. Olho caminha ao buraco da fechadura. Pálpebras apertam, depois afrouxam. Cílios caem como gotículas de neve na tempestade. Sobrancelhas reagem pelo barulho imediato. Teto, paredes e piso impõem a posição covarde. Ouve-se do outro lado. O amplo vazio da visão preenchido por solas de sapato no assoalho, talvez tamancos, arrisca o salto.

A esperança é uma abertura constituída de cabeça e tronco, porém agoniza: à falta de auxílio. Não há o manejo dos braços, o aconchego das mãos, o toque dos dedos, o equilíbrio das pernas, a firmeza dos pés, o fraco do calcanhar, nada se estende. O rosto opaco, lustroso e calvo. A nulidade dos membros. Veludo azul encobre a luz. A massa abarca órgãos vitais intermitentes. Respirar, bater, respirar, bater, respirar, bater, respirar. Sopra o tecido, a secura da boca cravada de fendas a oscilar, para cima e para baixo, e cor pálida, um leve esmorecer, pois permanece tapando a paisagem. Veludo grosso, escuro, ondula e mantém-se firme. Amar é do coração como trancar pertence às portas. A esperança uma abertura, uma porta escura, um coração. E está moldada às chaves.

O veludo detém a resposta e impede a passagem. Azul de uma escuridão, nobre indiferença ante o apelo mudo. Furos na maciez do pano, unhas munidas de agulhas não o alcançam. O veludo indevassável. Penetra o olho. Somente a íris, pupila, globo. Tornozelos bambos, joelhos cedem, peito acata o pranto. Espasmos o invadem como barbatanas de peixes capturados: velozes, inocentes, rumo ao destino trágico. Sal invade os lábios, lépidos insetos minúsculos e raros escondendo-se em nodosas rochas, testas de idosos, centenárias, devastadas e resistentes árvores. O líquido abundante embaça o espaço. Projetado, mistura-se ao azul distante: sonho e realidade copulam.

O cheiro, o gosto, o banho oriundo dos olhos resseca a garganta de choro e lágrimas, na impossibilidade da luz. O veludo detém a resposta e impede a passagem. Força, astúcia ou coragem mal revelam o horizonte. Tentativa espúria, regenerar o assunto. Não fosse talvez o veludo o umbigo do mundo? O veludo: azul de uma escuridão, eterno, imponente, núcleo. O veludo: a própria luz, o nada. Pior o nado em águas pardas ao mergulho em cristais seráficos? Gira a maçaneta, despenca lento o pedaço, o todo, leve ao longe plana. Após o movimento o olho ainda caça. Lança o atento lume, e então se espanta. Atrás do veludo azul: insiste o vermelho da ameaça.

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Raphael Vidigal

Pinturas: obras de Marc Chagall.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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