“Se a natureza não é contra nós, também não é por nós.” Herman Melville
Quando o especialista o avisou do fato não pôde conter as estribeiras. Teve vontade de arremessá-lo pela janela ou mesmo dentro da gaiola que guardava o animal. Cuidava daquela cobra desde os primeiros meses de vida, quando os dentes não eram tão visíveis e a coloração ainda se restringia ao amarelo ocre da placenta, o amarelo carente de sangue, mais próximo da morte que são os estreantes dias de qualquer ser vivo do que da existência madura. Com o passar dos anos estabeleceu massa, espessura, densidade e vícios. Atendia pelo nome sem demonstrar afeto. E era essa a principal teoria do especialista.
A cobra não desenvolve afeto por seu criador nem após anos de convívio. Incapaz, mesmo se quisesse, de amar, sofrer, ter consternação ou melancolia. Passam longe de sua rotina a angústia do vazio, da vida, tão comum aos homens, absortos em seus pensamentos quando as questões básicas de sobrevivência se estão resolvidas. A cobra não olha o homem como este, em muitos casos, para Deus. No que colide este paradoxo. Embora visível, tocável, de carne, osso, peles e braços, o criador da cobra não passa para ela nunca de um alvo no seu radar. Enquanto para o homem o invisível é perfeitamente passível de amar, embora desfeito de pernas e braços e peles.
Por isto quando ouviu o diagnóstico o impulso foi o do ataque. Mas por ser homem ao invés de cobra fora perfeitamente contido em sua consciência pelas noções de moral adquiridas ao longo de toda uma existência feita também de vitaminas, bananas e tripas. O bicho estava sem comer há quase uma semana. Não importava o que se jogasse dentro da gaiola, desde suas refeições preferidas como roedores, ratos, e de preferência pequenos mamíferos, até outras espécies de cobras, com a insólita necessidade de estarem sempre vivos, para que a assassina cumprisse seu papel predatório com o qual a natureza lhe condicionara. E de que serviria de vítima. Era uma excreção.
Aquele cenário, o especialista em sua branca impertinência, afirmando-lhe que não haveria padrões morais ou normas éticas diante daquele animal atingiu-lhe como uma estaca no estômago, de baixo para cima, e como o punhal de Brutus nas costas do Pai. O Império Romano do Criador desabava em ânsia de vômito e náuseas que se misturavam a antigas mágoas. Afinal de contas comprara aquele animal justamente para se livrar do passado, da solidão, enfrentar a desfeita do romance com a mulher à qual julgava, a partir deste momento, com os adjetivos do banal, do chulo, de ser idêntica, comum, a todas as outras da mesma espécie. Ao que se passava com a cobra o contrário.
Difícil de ser adquirida, especial, e única, e que lhe tornava, por possuidor da mesma, como por apropriação, dono de tais características. Não mais um homem comum, embora se tornasse, de hora pra outra, no radar de seu pupilo, tão suculento quanto um enorme rato de barriga amarela e com ânsia de vômito. De repente todos os sonhos cessaram, todas as esperanças, o especialista já fora levado até a porta, e restava em seu aposento uma enorme gaiola com um bicho vazio. Um bicho desfeito de sentimentos, de sangue frio, o bicho do qual cuidara noite e dia e que, pouco a pouco, começando pela cabeça, indo do tronco às pontas dos pés, calmamente o devoraria. E o devolveria ao vazio de um universo negro. Como no útero materno.
Raphael Vidigal
Pinturas: “Medusa”; e “O Martírio de São Mateus”, de Caravaggio, respectivamente.