“O resto do corpo a onda limpa,
Cor de pérola.
Na fissura da rocha
O mar suga obsessivamente
Essa fenda, eixo do mar inteiro.” Sylvia Plath
Um dos temas preferidos da música brasileira, de esguelha ou indo direto ao ponto, sempre foi o corpo, de mulheres e de homens. Na maioria dos casos o corpo feminino era o motivo da admiração e do orgulho, afinal a música, tal como a sociedade, também se via sob o domínio do patriarcado. No entanto, mesmo essa perspectiva recebeu interjeições ao longo do tempo, nas interpretações, por exemplo, de Ney Matogrosso, Angela Ro Ro, Chico Buarque e Caetano Veloso, que se colocavam, ora no lugar da mulher, outra no lugar do homem, e algumas vezes em um espaço híbrido que a arte e a liberdade proporcionam. Que o corpo seja livre e a música continue tocando para que ele dance.
Falsa baiana (samba, 1944) – Geraldo Pereira
Em 1944 Geraldo Pereira escreveu um samba que depois seria gravado por Gal Costa, Roberto Ribeiro, João Gilberto e muitos outros. Lançada por Ciro Monteiro após a recusa de Roberto Paiva a canção se tornou sucesso já na década de 1940. Com versos característicos da prosa sincopada de seu autor, a música segue o ritmo do corpo da protagonista, de seus quadris, chamados pelo apelido consagrado em terras tupiniquins, famosas “cadeiras”, e não se faz de rogado em aludir ao charme e provocação da baiana verdadeira, aquela que deixa “a moçada com água na boca”. Uma ode ao corpo feminino e seu poder de sedução condensado por metáforas e expressões populares.
Amendoim torradinho (valsa, 1955) – Henrique Beltrão
Não é por acaso que a valsa “Amendoim torradinho”, de 1955, recebeu esse ritmo. O langor da melodia atende perfeitamente aos versos que procuram captar o prazer que um corpo é capaz de oferecer a outro, ou a perturbação que emite. Composta por Henrique Beltrão, a música foi lançada por Vera Lúcia, e regravada por Sylvia Telles, Ângela Maria, Waleska, Marília Pêra, e muitas outras mulheres, sempre em interpretações derramadas. Ivon Curi, ao contrário, salpicou a canção com suas malícias pontuais. Mas foi Ney Matogrosso quem garantiu ao tema sua mais provocativa conotação, ao derramar sobre a música a libido e sensualidade híbrida de sua personagem.
A cara do pai (xote, 1957) – Pedro Rogério e Lombardi Filho
Em 1957 Ivon Curi lançou um xote feito sob medida por Pedro Rogério e Lombardi Filho para sua interpretação cômica e satírica. O tema, pouco abordado na música brasileira, era a gravidez, os perrengues que a mãe enfrenta e sua parcela de sacrifício, em geral, muito superior à do pai, pela natureza do parto. Ao final, é lançada uma sentença absurda, destilada por Ivon Curi: “Quem devia ter o filho era o pai”. Tudo por que, após todo esse trajeto dificultoso para a esposa é o pai o premiado com uma criatura que em tudo lhe lembra, nos olhos, na boca, no nariz, em todas as partes do corpo, inclusive no sexo do pai. A música não recebeu regravações posteriores.
Banho de Lua (versão, 1960) – Fred Jorge
Celly Campello lançou em 1960 uma versão escrita por Fred Jorge que ampliou ainda mais o seu enorme sucesso àquela altura. Precursora do rock feito para a juventude, depois apelidado por “Jovem Guarda”, a musa dos adolescentes da década de 1950 e início dos anos 1960 sempre cantou músicas que aludiam ao corpo feminino e à sensualidade de maneira disfarçada. Em “Banho de Lua” não acontece o contrário, embora sem citar nominalmente nenhuma parte do corpo é possível imaginá-lo, em sua plenitude e à escolha do ouvinte, pela palavra banho. A maneira leve de cantar, perpassada por gemidos cheios de inocência aparente, completam esse cenário.
Garota de Ipanema (bossa nova, 1963) – Vinicius de Moraes e Tom Jobim
“Garota de Ipanema” é, ainda hoje, a música brasileira mais executada em todos os tempos dentro e fora do país. Uma típica peça de bossa nova, composta por dois dos maiores nomes da cena, o poeta Vinicius de Moraes e o maestro Tom Jobim, em 1963, a música segue o “doce balanço” da garota em versos e melodias, num ritmo parecido ao do mar, distante e sereno em sua força, seu poder de síntese e ebulição. Assim, as imagens do corpo feminino ganham na natureza, e através dela, seu ideal de perfeição. “Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema, o seu balançado é mais que um poema, é a coisa mais linda que eu já vi passar”. Foi regravada, entre outros, por Frank Sinatra.
Eu te amo (MPB, 1980) – Chico Buarque e Tom Jobim
Também ao lado de Tom Jobim, em outra parceria consagrada, Chico Buarque escreveu, em 1980, os versos para a música “Eu te amo”, incluída no rol dos maiores sucessos da MPB. A música serviu como trilha sonora para o filme de mesmo nome dirigido por Arnaldo Jabor um ano depois, protagonizado por Sônia Braga e Paulo César Peréio. Com sua habitual habilidade poética Chico conduz o ouvinte pelos meandros da relação a dois, em suas desavenças e reencontros, que tem no corpo o espaço em que se infiltra e explode, e combinou imagens de pura sensualidade a lamentos típicos da dor de cotovelo. “Se na bagunça do teu coração (…)/Teus seios inda estão nas minhas mãos…”.
Todo amor que houver nessa vida (rock, 1982) – Cazuza e Roberto Frejat
Em “Todo amor que houver nessa vida”, lançada pelo grupo “Barão Vermelho” em seu disco de estreia, no ano de 1982, Cazuza delimita bem os espaços de conflito entre o corpo e a mente. Na ânsia de possuir o parceiro em toda a sua plenitude, agilmente faz uma ressalva. “E se eu achar a tua fonte escondida/ Te alcanço em cheio o mel e a ferida/ E o corpo inteiro feito um furacão/ Boca, nuca, mão, e a tua mente não”. E completa a metáfora com mais uma imagem poderosa que liga o corpo aos prazeres da carne. “Ser teu pão, ser tua comida”. Lançada como um rock, foi regravada por Caetano Veloso em clima menos hostil, mais sereno, incorporado na gravação solo de Cazuza em 1988.
Morena Tropicana (forró, 1982) – Alceu Valença e Vicente Barreto
Para exprimir as delícias e promessas de prazer que lhe causa o corpo feminino e sua imagem, Alceu Valença adere ao universo das frutas, no forró composto em parceria com Vicente Barreto em 1982. “Morena Tropicana” consolidou-se como um dos maiores êxitos da carreira do compositor pernambucano. O rico e diverso cenário cultural brasileiro, na cor e exuberância das frutas, é utilizado com maestria nas metáforas que pincelam a imagem da musa. As palavras são nitidamente escolhidas pelo desejo e sensualidade que exprimem através de seu som, num ensinamento da poesia simbolista incorporado por Alceu Valença aos costumes e sotaques nacionais.
Eu sou neguinha? (rap, 1987) – Caetano Veloso
Sempre provocador e inventivo, desde os tempos da “Tropicália”, Caetano Veloso, que nunca para quieto, compôs, através do rap, mais um manifesto contra as desigualdades sociais no Brasil e no mundo. Lançada em 1987 a música “Eu sou neguinha?” também provoca no sentido moralista, ao ter Caetano interpretando uma voz feminina. Feminina, negra, pobre, excluída. “Bunda de mulata, muque de peão”, afirma num dos versos mais contundentes. Experimental em sua forma e conteúdo, a música busca esgarçar os limites que se impõe nas sociedades arraigadas em preconceitos. É uma ode ao ser humano, à vida, e ao respeito inalienável a seu corpo e alma. Foi regravada por Cássia Eller.
Raphael Vidigal
Imagens: Desenho de Carlos Zéfiro para a capa do disco de Marisa Monte; e foto de Luiz Fernando Borges da Fonseca para a capa do disco de Ney Matogrosso.