“Num grão de areia ver um mundo
Na flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a eternidade num segundo.” William Blake
O sangue coagulado estava no teto, e continuava gotejando. Preso, duro, guardado, entregue às paredes do teto, era inexplicável que aquele sangue coagulado continuasse gotejando. Miriam está no chão. Atônita, não é capaz de chorar pela morte do irmão. Experimenta, ainda neste momento, dias após o enterro, uma sensação de incredulidade. Embora soubesse, desde o princípio, que o irmão estava fadado à morte, que esta morte viria, cedo ou tarde, e veio, de fato, mais tarde do que se esperava. Mas agora, neste momento, o sangue coagulado no teto continua gotejando. E Miriam está no chão. Atônita. Não é capaz de chorar a morte do irmão. Experimenta o sentimento de incredulidade.
O sangue não jorra. Ele segue lentamente gotejando. E Miriam está no chão, incapaz de aliviar esse sentimento através das lágrimas, que lhe escavariam os pulmões e, talvez, remotamente, essa possibilidade a salvaria da asfixia em que se encontra. Miriam está no chão, mas não está deitada. A impressão que se tem é que ali a jogaram. E talvez, não remotamente, esteja morta. Não é possível ouvir o som de sua respiração. Os olhos abertos estão roxos e inchados, com leves manchas amareladas, como as de um natimorto. É uma imagem desesperadora. Os braços estão abertos como os de um Cristo, e dos pregos de suas mãos o sangue jorra. O sangue no teto coagulado continua gotejando.
Do tecido roto que veste Miriam alguns buracos escapam. Nada emerge deles, nem é possível afirmar que há algo por dentro desses buracos. Existem dentro de mim os buracos, e no impulso de escavá-los, trago dormideiras-papoulas, essa espécie fantasiosa de planta que existe na Literatura, no Oriente Médio, no Extremo Oriente, e em regiões de Portugal. Dormem agora no umbigo do mundo essas papoulas, no umbigo de Miriam, santa, que já está morta. Destes buracos também recolho um arcabouço para analisar o sangue, coagulado, que está no teto, e gotejando. No entanto, para mim, não é possível alcançá-lo. O sangue está no teto, e eu com as palavras.
Há uma divisória intransponível entre o teto e essas palavras. Miriam está no chão, não está santa, mas está morta. O sangue está no teto, coagulado. Resta-me mudar de frase. Peço uma trégua, para as palavras. Peço uma trégua, para o sangue coagulado. Peço uma trégua, mas Deus é intolerante no aspecto da eternidade. Deus é intolerante. E com uma resoluta calma, triunfa. Desdenha do sofrimento das mulheres, dos homens e das crianças. Deus é intolerante, e implacável. A palavra se precipita, oca: “Só penso em oferecer coisas bonitas às pessoas”. Debruçadas as palavras, por pertenceram umas às outras, lambuzam-se com ameixas, jabuticabas, amoras, uvas e outras frutas roxas como os olhos de Miriam, esbugalhados, nas ameias da morte.
O sangue coagulado continua gotejando, mas no teto não há mais sua sombra. Do chão ele escorre pelos braços, pelos cabelos, a íris do olho, a língua da boca, os buracos do vestido roto, e há lá no teto, agora, uma vermelha papoula, dormideira, mas que abre os olhos para Miriam. Lembra-me o poder do vento. Sua saia rodada que um dia foi trapo hoje volta a resignar-se. Lembra-me o poder do vento. Sua pele vermelha que um dia fora exuberante pelo palor do sexo hoje volta a ajoelhar-se. E a conceder a dança da vaidade.
Raphael Vidigal
Imagens: pintura “Agonia”, de Arshile Gorky; e foto do artista, respectivamente.