Centenários 2015: Édith Piaf, o canto que aplacou as dores

*por Raphael Vidigal

“Canto o que vejo mas antes
Canto o que a alma deseja.” Hilda Hilst

Édith Piaf talvez seja uma das primeiras cantoras a encarnar o ideal do mártir. Não é heresia detectar a sua influência no blues de Billie Holiday, na dor-de-cotovelo de Maysa e na música negra de Amy Winehouse. Com uma vida turbulenta e agitada, essas quatro personalidades jamais dissociaram a música de sua existência. Essa certamente é a maior contribuição de Piaf. A entrega total ao ofício proporcionou interpretações e “Hinos de Amor” que não guardam qualquer semelhança com uma atuação técnica ou cerebral. O coração de Piaf está em todas as letras que canta. Por isso até hoje pulsam suas canções.

Natural de Paris, filha de uma cantora de cabaré e um acrobata de rua, a pequenina Édith foi deixada aos supostos cuidados da avó materna, que não se importava com a criança. Mais tarde, levada de volta para a mãe morou em um bordel, onde se amigou das prostitutas que a salvaram de uma cegueira aos 8 anos, com orações no túmulo de Santa Teresinha, de quem Édith se tornou devota por toda a vida. Passou a acompanhar o pai nas ruas de Paris aos 14, onde cantou pela primeira vez em público, mas cansada da exploração e dos maus tratos, também o abandonou. Mãe aos 18, Édith perdeu sua única filha, Marcelle, fruto do relacionamento com o entregador Louis Dupont, que cuidou da criança até a morte, aos 2 anos, vítima de meningite.

A essa altura, Édith já havia transformado o canto na razão de sua existência, mesmo que não financeiramente. Albert, um dos muitos amores que teve, exigia parte do dinheiro, em troca de não obrigá-la a se prostituir. Mas quando sua amiga, Nadia, cometeu suicídio justamente para não ter que se tornar prostituta, o relacionamento acabou. Sempre perambulando pelos cantos escuros da “Cidade Luz”, em 1935 Édith foi descoberta pelo empresário Louis Leplée e finalmente se tornou Piaf, expressão francesa que significa “pequeno pardal”, em virtude de sua pequena estatura e da voz melodiosa. Quando este foi assassinado, a cantora foi interrogada e acusada como cúmplice, e, apesar de absolvida, a já em ascensão carreira sofreu um pequeno freio.

Nada que viesse a interromper, no entanto, o fluxo de emoções de sua vida, verdadeiro combustível do canto entregue de Piaf. As canções se sucederam como as tragédias pessoais. Piaf lançou “Milord”, compôs “La Vie em Rose”, cantou que não se arrependia de nada em “Non, Je Ne Regrette Rien”, atuou em peça de Jean Cocteau e no cinema ao lado de Yves Montand, assistiu à Segunda Guerra Mundial, foi considerada traidora em seu país, excursionou por toda a Europa, Estados Unidos e América do Sul, casou-se diversas vezes, perdeu o grande amor de sua vida, o boxeador argelino Marcel Cerdan, em um acidente de avião, quando este ia encontrá-la. No Brasil foi cantada de Bibi Ferreira a Cássia Eller. Viciada em morfina, morreu aos 47 anos. Na tentativa de aplacar as dores, a voz eternizou a mártir. Deixou a imagem da mulher em um vestido preto, com os olhos em clemência e as mãos abanando piedade.

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Fotos: Arquivo.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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