Crítica: Teatro de bonecos do Giramundo leva “Alice” à magia e ao sonho

“Pois, vejam, tantas coisas estranhas tinham acontecido nas últimas horas que Alice começava a pensar que bem poucas coisas eram realmente impossíveis.” Lewis Carroll

Giramundo-Alice

O texto de Lewis Carrol é o maior trunfo de “Alice no País das Maravilhas”. E é interessante notar que tanto no cinema quanto no teatro essa força se mantém. Preservar essa força não significa diminuir o tamanho das adaptações, mas ao contrário, demonstra habilidade em transpor uma linguagem e extrair do clássico o que ele tem de melhor. Em “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, do grupo Giramundo, os diálogos confusos e irônicos propostos pelo autor, com charadas matemáticas que desafiam a lógica e reflexões existenciais a partir da ótica de uma aparentemente ingênua e curiosa criança, estão bem amarrados. Apresentar esse mundo lúdico e irracional não é fácil, e seria praticamente impossível no teatro não fosse a possibilidade do uso de recursos visuais que fazem parte da mais recente tecnologia. Mas o mérito é saber usá-la em favor da história, do que se quer contar, do sentimento que se deseja transmitir, e estes são muitos, da magia à nostalgia, da tristeza ao sonho. Não há firulas gratuitas ou virtuosismo estéril. A estética surreal da obra encontra ressonância nos movimentos de luz, figurino e cenário, e na direção de elipses e cambalhotas. Nesse contexto o personagem que se destaca é o do narrador vivido por Beto Militani – outra escolha acertada da direção – em tese o próprio Carrol, que encontra o ponto certo entre o maneirismo e a precisão, e encanta ao cantar e interpretar seus números.

Desde sempre, “Alice” é uma história das mais controversas. Primeiro por apresentar uma narrativa com protagonista infantil, mas recheada de alusões que cabem, em sua maioria, ao universo adulto, além das deliciosas incorreções, calcadas no uso de substâncias que alteram a percepção dos sentidos. Se tudo começa com simples garrafinhas e bolinhos, ao final apresentam-se cogumelos e uma lagarta que fuma seu narguilé tranquilamente. Portanto não é novidade dizer que o espetáculo muitas vezes atende mais a adultos do que crianças. Por alguns instantes, no entanto, o conteúdo sai um pouco prejudicado. A escolha por uma abertura com falas em inglês, assim como a utilização de palavras do idioma estrangeiro no cenário, nada acrescenta ao público. Já quando colocadas em português fixam ainda mais o brilhante texto de Carrol e provocam uma reflexão mais efetiva. A trilha sonora, composta por John Ulhoa, do grupo Pato Fu, e cantada por Fernanda Takai e outros atores da montagem, apresenta números irregulares, uns mais, outros menos inspirados, principalmente nas letras, que por vezes se contentam em relatar e descrever os fatos. Algo que depõe contra o conjunto de valores estimulados pela leitura do clássico.

Mas o desempenho de Fernanda ao dublar “Alice” é admirável. Ela confere nuances aos sentimentos da menina, através da sutileza presente tanto na voz da cantora quanto no caráter visual da personagem. Arnaldo Baptista, que dupla o “Chapeleiro Maluco”, parece ter nascido para o papel. Sem dúvidas um caso de descoberta de alter-ego tardio. Os bonecos, como sempre, em variadas formas e tamanhos, são a cereja da companhia, a estrela grávida, feitos com a sensibilidade de quem esculpe sentimentos e palavras carregadas de sentido, não apenas números, madeiras ou marionetes. E aos manipuladores cabem aplausos entusiasmados, pois são eles que, por movimentos de raiva, amor e graça, conferem vida aos materiais. Outra escolha interessante é a de deixar que os manipuladores dos bonecos apareçam, explicitando esse universo fantástico. Pois não se trata aqui de convencer adultos e crianças ser o teatro uma verdade, muito pelo contrário, é tudo inventado, tudo fantasioso, tudo mágico, como no sonho de Alice, que nem por isso é um conto de fadas.

Giramundo-Alice-Critica

Raphael Vidigal

Fotos: André Carvalho.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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