*por Raphael Vidigal
“saber é pouco
como é que a água do mar
entra dentro do coco?” Paulo Leminski
Nascido há nove décadas em Belém do Pará, Ary Lobo morreu cedo, uma semana depois de completar 50 anos, vítima de câncer. Na ocasião, ele morava em Fortaleza e foi enterrado como indigente após gastar todo o dinheiro que tinha no tratamento contra a doença. O final melancólico, no ostracismo, em nada lembrava o cantor de cocos, rojões, xotes, baiões, arrasta-pés e até boleros que alcançou fama e sucesso no Rio de Janeiro dos anos 1960, quando a cidade era a grande meca cultural do país.
O primeiro convite para se transferir à capital carioca veio de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, que assistiu Ary em Belém. Mas ele só topou a aventura mais tarde, levado pelo compositor Pires Cavalcanti. O LP inaugural, de 1958, intitulado “Forró com Ary Lobo”, traz uma sequência de imagens do artista na capa, simulando uma dança, o que já deixa claro o caráter agitado das canções. “Pedido a Padre Cícero” e “O Criador” são inflexões que resgatam a forte presença da religiosidade no Norte do país.
Galáctica. É em “Cheguei na Lua” (1960), com um encarte originalíssimo, em alto relevo, e a imagem de Ary literalmente enxertada dentro do desenho, que ele ensaia aquele que viria a ser seu maior sucesso. A faixa-título é uma mistura perfeita entre a preocupação social e o machismo enraizado que caracterizaria sua obra: “Toda mulher na Terra/ Trata o seu marido com pudor/ Não existe traição, tudo é amor/ Lá não se conquista mulher alheia/ Quando abriram uma cortina/ Onde a verdade não erra/ Vi tanta mulher na Terra/ Que na Lua estaria na cadeia”, diz a letra.
Em outro trecho, ele canta: “Eles queriam saber/ Da nossa alimentação/ Eu disse na Terra todos comem/ O passadio na Terra é muito nobre/ A comida do rico é a do pobre/ Sobre isso ninguém lá se consome/ Quando me mostraram um quadro/ Fiquei parado sem ação/ Mostrando mais de 1 bilhão/ Que aqui na Terra morreu de fome”. O mesmo disco tem “Pimpolho Moderno”, uma das músicas menos conhecidas de Nelson Cavaquinho, regravada por João Nogueira, que exalta o espírito garanhão do filho homem.
Racismo. Já com o nome forte na praça, o álbum de 1962 foi batizado apenas como “Ary Lobo”, e trouxe a invocada “Eu Vou Pra Lua”, no rastro do êxito da outra composição galáctica. “Ninguém acredita na política/ Onde o povo só vive em agonia”, ensinava. A música ganhou registro de Zé Ramalho no ano 2000, para o CD “Nação Nordestina”. “Planeta Plutão” seguia a mesma toada, antes de o menor entre os corpos celestes do Sistema Solar ser rebaixado a planeta-anão. “Não suporto mais ver tanta ambição/ (…) Eu vou morar no planeta Plutão”.
“Cosme e Damião”, parceria com Luiz Boquinha, denunciava a violência policial, enquanto “Moça de Hoje” e “Mulher de Saia Justa” regressavam à pauta de costumes, ambas no bojo da malícia. “Poeira de Ritmos” (1963) procura justamente a diversidade de gêneros, primando pela matriz nortista. “A Cigana Mentiu” adentra o campo do racismo, a despeito da pele escura do intérprete, e não esconde a sanha do patriarcado: “Todo mundo ouviu quando ela falou/ Que eu ia me casar/ Com uma loira muito boa/ (…) Pra terminar/ Casei-me com uma neguinha/ Feia, magra, mal feita de corpo/ Sem nada de boa, coitadinha”.
Mulheres. “Coco da Juliana” vai em outra direção, com uma protagonista empoderada: “Juliana gritou para o povo/ Aqui ninguém briga porque eu não quero/ Passou a mão no trabuco/ Mandou o sujeito para o cemitério”. “Madame Paraíba”, “Rita Peneira” e “Vovó Olímpia” retomam a temática da mulher que é dona do pedaço e remetem ao matriarcado. As duas foram lançadas em “Zé Mané” (1965), que abre os trabalhos com uma das mais machistas faixas cantadas por Ary: “Cheiro de Gasolina” acusa o sexo feminino de somente se importar com dinheiro, simbolizado pelo automóvel.
Chamadas de interesseiras, as mulheres da música desprezam pai, mãe e irmão, “só pra olhar o chofer na direção”. O baião fez um sucesso tremendo naquele ano. “Pra Evitar de Lê Lê Lê” volta a retratar esse comportamento vigente: “Eu já censurei o seu modo de proceder/ Você persiste no erro/ Finge não me entender”. “Súplica Cearense”, de 1966, destacava no título a música de trabalho. Composta por Gordurinha, era um retrato da miséria no sertão, aliada à humildade do sertanejo, que, com o amparo da religião, se culpa por toda a desgraça acontecida.
Pátria. Revista inúmeras vezes, de Elba Ramalho a O Rappa, passando por Fagner e Sérgio Reis, ela ganhou a voz lamentosa de Ary. Da lavra de Gordurinha, entoou com igual fervor “Vendedor de Caranguejo”, nova reflexão a respeito das dificuldades sociais impostas por uma política de exclusão, que se via com nitidez em “Último Pau-de-Arara”, de Venâncio, Corumba e José Guimarães. Do ponto de vista histórico, Ary interpretou a trajetória da nação em “Grande Povo”, com citações a Castro Alves, Santos Dummont e Rui Barbosa. As raízes paraenses surgem em “Eu Sou de Belém” e “Bate Malva”.
Entusiasta do futebol, ele também deu trela a um certo ufanismo através do esporte mais popular do país. Torcedor do Botafogo, tinha em Garrincha seu ídolo supremo dos gramados. “O Balanço do Garrincha” e “Recordando a Copa de 58” revelam essa adoração, presente, sobretudo, na divertida “Patrulha da Cidade”, com um embate entre sogra e genro representado pela disputa de Garrincha com Pelé: “Outro dia minha sogra/ Quis me bater de colher/ Porque eu falei baixinho/ Que o bom mesmo era o Mané/ Mas a velhinha paulista/ Me chamou de jacaré/ Ela torce pro Pelé”.
Legado. Intérprete habilidoso, de emissão marcante e domínio rítmico similar ao de Jackson do Pandeiro, o paraense Ary Lobo dedicava salvas a si mesmo em “Quem É O Campeão”, de 1966, com indistinto orgulho: “Quem for o campeão que apareça/ Eu desejo somente aparecer/ Quero ter esse imenso prazer/ De quebrar este coco na cabeça/ Para que ele conheça/ Que esse coco é do Ary Lobo”. De fato, ele sabia domar a música até torná-la indissociável de sua figura.
Fotos: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.