*por Raphael Vidigal
“Devo, outra vez, lembrar-te deste fato:
Um cão é um cão, porém UM GATO É UM GATO.” T. S. Eliot
Desde os anos 30 não há uma década na música brasileira que passe sem falar dos nossos bichos de estimação preferidos. O tipo de relação pode variar, mas há sempre um denominar comum a uni-las: o afeto. Se uns ainda reclamam ao serem tratados como cachorros é isso exatamente o que alguns outros querem. De madame, vira-lata, ou sem vergonha, muitos já disseram sobre ser o melhor amigo do homem, ao que Vinicius de Moraes completou: “o uísque é o cachorro engarrafado”. O gato não fica atrás, mesmo esguio e menos sociável está sempre nas rodas de samba, de choro, no rock e na Jovem Guarda a lamentar amores desfeitos. Tornou-se expressão de afeto e do galanteio: “gatinha”. Entre cachorros e gatos sai da tuba a música brasileira!
Cachorro vira-lata (samba-choro, 1937) – Alberto Ribeiro
Ao popularizar a expressão “complexo de vira-lata” para se referir ao deslumbramento com o exterior e falta de confiança em si do brasileiro após a derrota sofrida na final da Copa do Mundo de futebol disputada em território nacional em 1950 contra o Uruguai, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues cometeu um erro histórico. O vira-lata, na verdade, é a expressão maior da força do povo brasileiro, mestiço, mulato, que se adapta às dificuldades e sabe tirar delas o maior proveito possível. Aquele que faz do osso uma escultura. É o que se vê no samba, no cinema de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, no teatro de Augusto Boal e José Celso Martinez Corrêa, nas artes plásticas de Lygia Clark e Hélio Oiticica e na literatura de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, e tantos outros. Por isso Carmen Miranda canta o samba-choro de Alberto Ribeiro, lançado em 1937, com orgulho indistinto. A música seria ainda gravada por Maria Alcina e Baby do Brasil. Além de tudo, é um hino à libertação. “Eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão…”.
Tem gato na tuba (marchinha, 1948) – João de Barro e Alberto Ribeiro
Alberto Ribeiro e João de Barro criaram aquela espécie de episódio que seria cômico se não fosse trágico, isso para o gato que adentra a tuba e o dono do instrumento em questão, o “pobre do Serafim”. Valendo-se de onomatopeias no decurso da letra da música, a dupla constrói uma das mais divertidas canções brasileiras, que não por acaso ganhou interpretação do “Balão Mágico”, formado exclusivamente para e por crianças. Originalmente, a música foi interpretada por Nuno Roland, e seu lançamento se deu em 1948. Nessa marchinha, o gato entra, literalmente, pelo cano, mas o final é feliz. Para Braguinha, o tal João de Barro, e todos aqueles que têm a possibilidade de curtir essa preciosidade do nosso cancioneiro. Foi também regravada por Chico Science, na época à frente da “Nação Zumbi”, e Nara Leão.
Cachorro de madame (samba, 1954) – Denis Brean e Osvaldo Guilherme
Uma outra “espécie” de cachorro foi cantada por Isaura Garcia na metade da década de 1950, e que exemplifica bem a desigualdade social no Brasil, que abriga o vira-lata e a raça “pura”. Denis Brean e Osvaldo Guilherme são os autores do samba lançado em 1954, em que a cantora enumera os privilégios do “cachorro de madame”. “Há um poste só pra ele lá nos fundos do quintal”, diz em determinado momento da letra. Outra música de mesmo nome foi lançada pelo “malandro” Moreira da Silva em 1961, parceria com Wilson Pires.
Gatinha manhosa (Jovem Guarda, 1965) – Roberto e Erasmo Carlos
A dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos enveredou por um caminho mais sentimental e através de metáforas para abordar a relação com os animais de estimação. No auge da Jovem Guarda, em 1965, os dois criaram uma das mais românticas e sensíveis canções do gênero, em que o adjetivo para se referir à protagonista se impregna em cada verso da letra. “Gatinha manhosa” utiliza-se da visão do próprio animal, normalmente dolente e vez ou outra atrás de um afago, e do sentido de galanteio que a expressão recebeu com o passar dos anos. “Um dia gatinha manhosa eu prendo você no meu coração…”. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto e repetiu o sucesso de seu lançamento.
Negro Gato (Jovem Guarda, 1966) – Getúlio Côrtes
Um gato bem mais arisco e esperto foi inventado por Getúlio Côrtes em 1966. Novamente o animal serve de metáfora para a peripécia humana. E também como estímulo ao orgulho negro, que levanta a bandeira através do felino. Não por acaso recebeu uma regravação primorosa de Luiz Melodia, versão que ficaria até mais conhecido que a de Roberto Carlos por seu caráter crítico, incisivo, e dotado daquele suingue característico. A música foi lançada pelo grupo “Renato e seus Blue Caps”, e também recebeu regravações de Marisa Monte, Reginaldo Rossi e Wanderléa. Desta vez é o gato que identifica o dia a dia árido da maior parte da população brasileira. “Sete vidas tenho pra viver, sete chances tenho para vencer… (…) Eu sou um negro gato…”.
Eu não sou cachorro não (bolero, 1972) – Waldick Soriano
No caso de Waldick Soriano a relação com o cachorro é diferente, e vem através do reclame. Habitualmente, levar uma “vida de cão”, não era expressão favorável. Como Waldick pertence à tradição da música e dos costumes brasileiros, esse bolero de 1972, um dos mais repetidos no repertório romântico de qualquer cantor, adere à causa perdida e pede clemência. O amor desfeito é novamente o mote da canção. De tão forte, o título se impregnou ao vocabulário brasileiro e ganhou a força de ditado popular. “Eu não sou cachorro não, pra viver tão humilhado…”, repetem os que são abandonados pelo amor.
Rock da cachorra (rockabilly, 1982) – Léo Jaime
Muito já se falou do intérprete que combina tanto com uma canção e a contorna de sentidos que praticamente torna-se dono dela. Mas poucas misturas deram tão certo nesse caso quanto o “Rock da cachorra”, de Léo Jaime. Até mesmo pelo inusitado da situação. Eduardo Dussek sempre foi, habitualmente, mais compositor do que intérprete, por isso é de se espantar que a música em questão tenha sido composta por outro, mas entregue com todo o direito e rigor da circunstância ao adotivo pai. É difícil encontrar duas personagens mais irônicas, irreverentes e debochadas do que Léo Jaime e Eduardo Dussek na música brasileira, por isso o resultado não poderia ter sido outro. É uma crítica social sempre temperada com muito humor, sem cara feia, sem cara de cão. Entre as preciosidades da letra, destacam-se: “Troque seu cachorro por uma criança pobre”; “Esse é o rock despedida pra minha cachorrinha chamada Sua Mãe, é pra Sua Mãe, é pra Sua Mãe…”. Foi também regravada pelos intrépidos “João Penca e seus Miquinhos Amestrados”, da qual Léo Jaime fez parte no início da carreira.
Gatinha de rua (rock, 1985) – Cazuza e Frejat
A dor-de-cotovelo foi o grande referencial na formação de Cazuza como letrista. Não por acaso tocavam em sua vitrola regularmente os discos de Lupicínio Rodrigues, inventor do termo, mas também Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Maysa e outras divas. Dessa mistura com o rock brasileiro da década de 1980, Cazuza criou um jeito próprio, único, facilmente identificável de composição. Seu estilo situa-se entre a ironia, a crítica, o distanciamento, e a total entrega aos sentimentos mais comuns, perenes e mundanos. “Gatinha de rua” desliza nesse ínterim, nesse terreno escorregadio das paixões que não deram certo e seguem torturando os donos de seus corações. Nesse caso, a gatinha de rua “agora já trocou de dono, abandonou o meu sonho…”, canta com Marcelo neste dueto lançado em 1985, uma parceria com Roberto Frejat.