*por Raphael Vidigal
“Vamos tocando assim mesmo,
Nosso dia há de chegar.
A terra e a gente são boas…
Deus até nasceu aqui.” Murilo Mendes
Na terra que tem palmeiras onde canta o sabiá também cantaram portugueses, índios, negros, mulatos e mamelucos. De toda essa mistura, desde que aspira à sua independência, o Brasil já teve também diversos ritmos, passou pelo samba, o forró, o rock, foi da exaltação à crítica, da esperança ao desconsolo. Porém não se pode negar a riqueza de seu povo, quanto mais musical, não é qualquer país que pode se gabar de ter um Ary Barroso, Assis Valente, Carmen Miranda, Clara Nunes, Paulo César Pinheiro, Cazuza, Milton Nascimento e Renato Russo, além dos “Novos Baianos”. Por sorte e por graça a música das palmeiras onde canta o sabiá depende deles, e de seu som puro.
Aquarela do Brasil (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso
Dois dos maiores defensores da música brasileira romperam laços por conta da “Aquarela do Brasil.” Tudo porque o samba-exaltação composto por Ary Barroso em 1939 não venceu o concurso promovido pelo maestro Heitor Villa-Lobos no ano seguinte. A música urdida ao piano em uma noite chuvosa do Rio de Janeiro logo recebeu as críticas do cunhado de Ary, que questionou qual coqueiro não dava coco, e revelou-se em seguida carro-chefe da caravana cheia de balangandãs e reis congos que percorreu os Estados Unidos. Por ocorrência da “política de boa vizinhança” promovida por seu país, o cineasta Walt Disney veio parar em terras brasileiras e descobriu por aqui o balanço do samba. Encantou-se com a miscelânea de Ary Barroso e a escolheu para trilha sonora do filme que tinha Zé Carioca no papel principal, a animação “Alô, Amigos”.
Brasil Pandeiro (samba, 1941) – Assis Valente
Acarajé, cuscuz e abará, todos esses pratos preparados com o molho da baiana, fazem com que o Tio Sam do samba de Assis Valente não resista ao sabor da comida e do samba brasileiro. Composto em 1941, “Brasil Pandeiro” dedica seus versos a cantar as delícias do Brasil, como seu samba, seu terreiro, sua gente bronzeada e sua rica culinária, que desperta até o interesse dos distantes norte-americanos. A música havia sido feita para Carmen Miranda, espécie de amor platônico de Assis Valente, que acabou recusando, supostamente por possuir versos que exaltavam a ela própria. Por conta disso, foi lançada pelos “Anjos do Inferno”, grupo vocal que emplacaria diversos êxitos da lavra do compositor, e mais tarde renovada na interpretação dos “Novos Baianos”, em 1972.
Isto aqui o que é? (samba, 1942) – Ary Barroso
Antes de ser eleito vereador do Rio de Janeiro, pela UDN em 1946, Ary Barroso já travava disputas políticas. Tornou-se um dos primeiros presidentes da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores da Música, e encampou desde cedo a luta pelos direitos autorais. Já instituído no cargo, brigou com Carlos Lacerda, único vereador com votação superior à sua, para que fosse construído o estádio do Maracanã. Aliou-se aos comunistas, maioria da bancada, e como era de seu feitio, conseguiu o que queria. A tragédia presenciada naquele estádio, na final da Copa do Mundo de 1950, abafava os versos de uma canção composta por Ary Barroso em 1942. Mas o palco verde que ele desejara ainda cederia espaço muitas vezes para a alegria, a raça, as morenas e as sandálias, de uma “raça que não tem medo da fumaça, e não se entrega não”. “Isto aqui, ô, ô, é um pouquinho de Brasil Iá, Iá…”.
Aqui é o país do futebol (samba, 1970) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Convidados pelos diretores Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite para compor a trilha sonora do filme “Tostão, a Fera de Ouro”, Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram canções que ultrapassaram aquele período específico. “Aqui é o país do futebol”, samba moderníssimo em sua estrutura e com letra que exalta o poder de atenção do esporte sobre os brasileiros, embalou não só a Seleção Brasileira em 1970, quando conquistou o Tricampeonato Mundial no México com uma equipe considera das melhores de todos os tempos, como seguiu emocionando e contagiando plateias mesmo após o encerramento da competição. Além do registro de Milton Nascimento no disco “Milton” a música também foi gravada por Elis Regina, no álbum ao vivo “Trem Azul” e Wilson Simonal, um dos embaixadores daquela seleção, amigo íntimo de Pelé e outras estrelas do escrete canarinho.
Brasil Mestiço, Santuário da Fé (samba, 1980) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
A mineira Clara Nunes, natural de Caetanópolis, no interior do estado, foi, sem dúvida alguma, a principal voz do sincretismo religioso no Brasil. Ao aderir à umbanda e ao candomblé, cravou sua marca no nosso samba já de tantas intérpretes e interpretações. Além dos adereços, das danças, e do cabelo, Clara se portava como uma autêntica filha da influência africana no país. Interpretava as músicas com esse sentimento. O samba “Brasil Mestiço, Santuário da Fé”, composição feita especialmente para ela pelo marido Paulo César Pinheiro e o parceiro Mauro Duarte em 1980, comprova essa tese. O batuque da Cabala, da Umbanda e da Luanda se integram no canto de Clara.
Que País É Este? (rock, 1987) – Renato Russo
1987 foi um ano profícuo de canções com referência à política brasileira. Nenhuma delas elogiosa. Um dos que estendeu a bandeira com maior propriedade e relevância foi o compositor e vocalista da banda “Legião Urbana”, Renato Russo. O protesto tornou-se tão simbólico que é hoje praticamente um ditado popular: “Que País É Este?”. A música aborda de forma direta e narrativa episódios de corrupção e violência na política brasileira, e ainda chama a responsabilidade a todos, antes de chegar ao início do processo que teria se dado logo na “apropriação” do país pelos portugueses, quando o autor clama aos que aqui estiveram primeiro. “Quando vendermos todas as almas/Dos nossos índios num leilão”.
Brasil (rock, 1988) – Cazuza e George Israel
Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta versos tão sintéticos quanto rascantes, um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. “Brasil, mostra a tua cara!/Quero ver quem paga/Pra gente ficar assim!/Brasil, qual é o teu negócio?/O nome do teu sócio?/Confia em mim”. Após enumerar uma série de abusos e privações sofridas pela população brasileira, Cazuza deixa claro que o protesto e a indignação são, na verdade, uma declaração de amor. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”.
Imagens: Montagem com fotos do grupo “Novos Baianos”, Carmen Miranda, Clara Nunes, Cazuza e Milton Nascimento, de cima para baixo e da esquerda para a direita; e obra da pintora Tarsila do Amaral, respectivamente.