*por Raphael Vidigal
“Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo.” Charles Bukowski
Com a morte de Gerson King Combo, aos 76 anos, a música soul brasileira perdeu o seu mais fiel representante. O epíteto de “James Brown brasileiro” era pouco para seu imenso talento. Irmão de Getúlio Côrtes, o autor por trás do sucesso de “Negro Gato”, Gerson soube criar um estilo único para si. A performance, a dança, o visual, eram preponderantes. Com roupas exuberantes, coloridas, combinando chapéu violeta com óculos escuros independentemente de ser dia ou noite, ele animou os bailes das favelas cariocas em plena ditadura militar, influenciado pela militância dos Panteras Negras e a música dos negros norte-americanos. Esteve no auge da Black Rio e, com sua figura imponente, encarnou o orgulho e a insubordinação da cultura negra. Determinado, soube enfrentar o ostracismo, e jamais abandou a crença na irmandade. A música da alma ficou tatuada na pele de Gerson King Combo, um autêntico Rei tupiniquim.
“Nem Vem Que Não Tem” (samba-soul, 1967) – Carlos Imperial
Regravada pela musa do cinema francês Brigitte Bardot em uma adaptação feita por Pierre Cour, “Nem Vem Que Não Tem” foi composta pelo controverso artista multimídia Carlos Imperial – que era produtor, ator, apresentador de TV, compositor e jurado carnavalesco –, como forma de apresentar o movimento criado por ele e intitulado de “Pilantragem”. Na prática, era uma versão malcriada e irreverente da Jovem Guarda. Não por acaso, Wilson Simonal foi escolhido por Imperial para representar o estilo. Sempre cercado de belas mulheres e acostumado a uma vida de deleites, Simonal, ainda por cima, era dono de uma voz de dar inveja até ao Rei Roberto Carlos. Ao utilizar ditados populares, a canção rapidamente caiu na boca do povo. O arranjo foi concebido em meio a apresentações do “Show em Si… Monal”, que o cantor comandava na Rede Record durante a década de 1960.
“BR-3” (música soul, 1970) – Antônio Adolfo e Tibério Gaspar
A inclusão da música “BR-3”, um soul de 1970 de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, no rol daquelas que marcaram o período de contestação à ditadura militar no Brasil, está muito mais ligada à postura de seu intérprete do que propriamente à letra. Tony Tornado estourou nos palcos naquele mesmo ano e, acompanhado pelo Trio Ternura, transformou a canção em um símbolo não apenas da música, mas do movimento negro no país. Apresentada no V Festival Internacional da Canção, logo arrebatou o público, que se detinha muito mais na figura imponente e vigorosa de Tony do que em seus atributos como cantor. Expressando-se através das gírias e da dança dos negros norte-americanos, o intérprete estabeleceu um confronto com todos aqueles que insistiam no preconceito e iam contra as liberdades individuais e coletivas. Dois anos depois, ele seria preso pelo regime militar, ao repetir no palco, num show de Elis Regina, a famosa saudação dos Panteras Negras, movimento de origem marxista.
“Primavera” (música soul, 1970) – Cassiano e Sílvio Rochael
Tim Maia é daqueles intérpretes tão expressivos que ao cantar uma música tornava-a a sua, talvez só comparável a Elis Regina. Por isso não é estranho notar que “Primavera”, um soul de 1970 escrito por Cassiano e Sílvio Rochael esteja indiscutivelmente ligado à sua imagem, ou melhor, à sua voz. Mas é preciso fazer justiça aos compositores, principalmente a Cassiano, autor de pérolas desse gênero restrito no país, que encontrou em Tim sua expressão maior, mas que também contava com Hyldon, outro frequentemente relegado, autor do megassucesso “Na rua, na chuva, na fazenda”. A música, romântica, encontra seu ápice quando o vozeirão de Tim anuncia: “É primavera/Te amo!/É primavera/Te amo, meu amor!/Trago esta rosa/Para lhe dar/Meu amor/Hoje o céu está tão lindo”. E o coro interpreta sutil a glória da chuva. “Vai chuva…”.
“Black Is Beautiful” (música soul, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano Elis Regina, como era de costume quando interpretava qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black is beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, os estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor, um Deus negro, do Congo ou daqui, que se integre no meu sangue europeu…”.
“Não quero dinheiro [Só quero amar]” (música soul, 1971) – Tim Maia
Seguindo a mesma linha e ideologia de Martinho da Vila, o eterno síndico da música brasileira, Tim Maia, despreza em seu poderoso soul “Não quero dinheiro [Só quero amar]” o valor do primeiro em relação ao segundo. Nessa ode ao amor e ao desapego, Tim demonstra, mais uma vez, o poder de sua voz e dá mostras do porquê de a sua figura ser, até hoje, uma das mais reverenciadas na música brasileira. Porque sempre colocou a paixão em primeiro lugar, nunca a mesquinharia. A música foi regravada, em ritmo de axé, por Ivete Sangalo e uma pegada mais roqueira por Roberto Frejat. O refrão alegre e descontraído segue como um dos preferidos para embalar festas e comemorações de todo tipo.
“Chocolate” (música soul, 1971) – Tim Maia
Desde que se tem notícia do seu aparecimento ainda na era pré-colombiana dos países da América Central, o chocolate não serve apenas como alimento. Claro, a sua função principal é essa, até por ser difícil negar suas qualidades tão atrativas ao paladar. Mas é, sobretudo, por outros sentidos como visão, tato e olfato, que o chocolate atende a diversas intenções. Não por acaso está associado a celebrações como a Páscoa e o Dia dos Namorados. No universo da cultura popular é difícil uma arte que tenha escapado ao seu charme. Na música, o jingle criado por Tim Maia cujas alusões ao uso de entorpecentes são frequentemente comentadas é, sem dúvida nenhuma, a de maior impacto. Até mesmo pelo peso que o “Síndico” imprimia às suas canções. O maior cantor de soul do Brasil era seco e claro ao dizer que nada mais servia além de “Chocolate”, na música de mesmo título regravada por Marisa Monte.
“Podes Crer, Amizade” (música soul, 1972) – Tony Tornado e Major
Tony Tornado foi um estouro para os palcos de todo o país ao invadir a casa das pessoas pela televisão no Festival Internacional da Canção empunhando a música “BR-3” e dançando de maneira eufórica e entusiasmada, com o molejo próprio dos negros. Um ano depois, em 1971, invadiu com o punho em riste a apresentação de Elis Regina, no mesmo festival, para saudá-la pela interpretação da música “Black Is Beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Saiu de lá algemado. Ícone da cultura negra, da resistência, do sucesso e da superação, Tony escreveu sua história na música, nas novelas e no cinema do Brasil. “Podes Crer, Amizade” confirma essa força do Tornado.
“As Dores do Mundo” (música soul, 1975) – Hyldon
Muita gente desconhece o baiano de pronúncia improvável, radicado no Rio de Janeiro, responsável pela fermentação de ritmo americano em terras tupiniquins, ao lado de Tim Maia e Cassiano. Bolo de influências revolvidas ‘na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê’. Hyldon é palavra simples, circunflexa, direta como flecha no alvo da matriz Soul Music. São dele os verbos, melodias e batidas de duas das mais repetidas canções dos últimos setembros, primaveris, de retomada, entoadas tanto bêbadas quanto sobriamente, em reuniões de dor de cotovelo e saudade: “E eu vou, esquecer de tudo/ As dores do mundo/ Não quero saber quem fui/ Mas sim o que sou”.
“Mandamentos Black” (música soul, 1977) – Gerson King Combo, Augusto César e Pedrinho
Gerson King Combo talvez tenha representado como ninguém a voz dos que não eram ouvidos naqueles idos de 1970. Num país amordaço pela ditadura militar e a censura prévia, os silêncios se faziam muitos, por toda parte. No entanto, havia uma parcela da população que, mesmo em tempos ditos, institucionalmente, democráticos, eram os últimos da fila. A periferia se apoderou, paulatinamente, dos meios de comunicação, até alcançar o rap e o funk carioca. No entanto, foi com Gerson King Combo, em 1977, que esses bailes começaram a ferver. “Mandamentos Black”, parceria com Augusto César e Pedrinho, fala, de maneira simples, o que o povo queria ouvir e dizer.
“Olhos Coloridos” (música soul, 1982) – Macau
Sandra de Sá surgiu no embalo da soul música brasileira capitaneada por Tim Maia, e que contava ainda com Cassiano, Hyldon e Lady Zu. Com sua voz rascante e interpretação visceral era chamada por Cazuza de “a nossa Billie Holiday”. As atitudes de Sandra dentro e fora do palco sempre foram indissociáveis, exemplo de artista que se entrega ao ofício e vive a vida em cada música. “Olhos Coloridos” encontrou a intérprete perfeita em Sandra. Essa música de Macau, lançada em 1982, tornou-se emblema e manifesto do orgulho negro, além de um puxão de orelhas aos desavisados. “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, avisa antes de entrar no refrão que exalta o cabelo sarará.
“Mandela” (música soul, 1990) – Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos
Em 1990, Sandra de Sá já havia acrescentado o “de” ao nome artístico, por uma questão de numerologia, e também era nome consagrado na cena da soul music brasileira. Com um histórico de canções que não cansavam de incensar o orgulho da cultura negra, a intérprete deu o seu pitaco na história de Nelson Mandela ao gravar no álbum “Sandra!” a composição “Mandela”, composta por Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos. Com a habitual agilidade e leveza Sandra conduz o ouvinte ao percurso de paz e liberdade plantado pelo líder sul-africano no continente da África e em outros lugares do mundo, como o próprio Brasil e Portugal.
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