*por Raphael Vidigal
“Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei. É a de não ser ela uma ave canora. Pois que só grasna – como quem rasga uma palavra.
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem esculturas no ar.
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?” Manoel de Barros
Observando garças pantaneiras, o poeta Manoel de Barros (1916-2014) lembrou-se de Modigliani (1884-1920). Como as aves, as pinturas do italiano morto há 100 anos, que se criou em Paris, eram esguias, compridas, lânguidas na medida de um felino se espreguiçando em um ambiente macilento. Hoje reconhecido como um dos maiores artistas da história, Modigliani costumava trocar suas obras por pratos de comida, consagrando-se como o príncipe dos vagabundos. A vida de privações começou ainda no ventre, mas, ironicamente, foi o fato de a sua mãe estar grávida dele que impediu os credores de tomarem todos os bens da família, graças a uma lei da época que proibia a retirada da cama de uma mulher gestante ou com o filho recém-nascido. Logo, o que era um local destinado ao sono tornou-se um depositário de tudo o que eles tinham.
A infância pobre, no entanto, cobraria seus custos. Com uma saúde precária que o acompanhou até a morte, Modigliani não teve educação formal, recebeu aulas da mãe e iniciou-se na pintura justamente para preencher essa lacuna. De espírito arisco, ele nunca se filiou a nenhuma escola ou movimento artístico, criando um estilo próprio, facilmente reconhecível. Modigliani acreditava no sofrimento como válvula criativa, o que certamente não lhe faltou, e era um leitor assíduo das provocações do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). A principal influência no campo da imagem talvez tenha sido o grupo conhecido como Macchiaioli, que pregava o rompimento das convenções. Além deles, admirava Toulouse-Lautrec (1864-1901) e Cézanne (1839-1906) e tinha uma relação ambígua com o Cubismo de Picasso (1881-1973), cujo prestígio confrontava-se com a miséria de Modigliani.
Na capital francesa a boemia, regada a abusos de haxixe e álcool, intensificou-se. Os episódios em que o italiano subia nas mesas dos bares parisienses para recitar versos considerados heréticos tornaram-se lendários. Esse comportamento errático rendeu a ele a alcunha de “maldito”, a exemplo do poeta simbolista Arthur Rimbaud (1854-1891). Em 1909, sua pintura “O Violoncelista” causou impacto no Salão dos Independentes, o que abriu a possibilidade para a sua primeira e última exposição individual, idealizada pelo poeta polaco Leopold Zborowski (1889-1932), que se tornou seu grande amigo. Porém, o feito converteu-se em fracasso. A polícia atendeu a pedidos da burguesia francesa escandalizada com os nus femininos pintados pelo artista e fechou a mostra no mesmo dia. Ao dedicar-se à escultura, mirou-se no vanguardista romeno Constantin Brancusi (1876-1957). O flerte foi interrompido para retornar às tintas.
Homem de perfil galanteador, dotado de formas harmônicas e suaves, com um ar de certa rusticidade, Modigliani sucumbiu à tuberculose e morreu aos 35 anos. Os hábitos hedonistas, dizem, eram uma maneira de disfarçar a doença. Jeanne Hébuterne, mãe de sua única filha, nascida dois anos antes, estava grávida de nove meses quando cometeu suicídio pulando do quinto andar de um prédio, na manhã seguinte ao sepultamento do pintor. Ele a retratou em inúmeras pinturas, mantendo a marca de seu estilo intacta: uma arte figurativa que não fotografa a realidade, mas a ultrapassa, com rostos ovais e alongados feito as primitivas e ritualísticas máscaras africanas do Gabão e Congo, preenchidos por olhos espessos e vítreos, cuja opacidade do marasmo prefere a palidez ao rubor. Talvez um reflexo oblíquo de quem estava por trás do cavalete, numa ausência consentida.