10 músicas para a falta d’água no Brasil

“Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.” Manoel de Barros

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O Brasil, um país de dimensões continentais, sempre atravessou situações inusitadas ao longo de sua história. Enquanto nas regiões norte e nordeste do país o problema da seca era uma constante, no sudeste se repetiam relatos de enchente e alagamentos. Enfim, as soluções encontradas por nossos compositores sempre foram mais inteligentes, divertidas e inspiradas que a dos governantes. Não por acaso frequentam essa galeria Caetano Veloso, Tom Jobim, Raul Seixas, Jorge Benjor, Gordurinha, Tito Madi, Jorge Mautner, Paquito, Romeu Gentil, Sebastião Fonseca, Cícero Nunes, Cassiano, Sílvio Rochael, Paulo Coelho e outros ilustres artistas que ao interpretar também contribuíram para criar estas canções. Já na política… Bem, é bom que chova canivete para uns e chuva de prata para os demais!

1 – Tomara Que Chova! (marchinha, 1951) – Paquito e Romeu Gentil
A falta d’água no Brasil já era um problema em 1951, quando Paquito e Romeu Gentil escreveram a marchinha “Tomara Que Chova!”. Vencedora do carnaval carioca naquele ano, a música recebeu gravações do conjunto ‘Vocalistas Tropicais’ e de Emilinha Borba, que a interpretou também no filme ‘Aviso aos Navegantes’, de Watson Macedo e protagonizado pelas então maiores estrelas da comédia nacional, Grande Otelo e Oscarito, além de contar no elenco com José Lewgoy, Ivon Curi, Elvira Pagã e Dalva de Oliveira. Com versos propícios ao momento, Emilinha reclamava de não ter água para se lavar e “nem pra cozinhar”. Ainda mandava um aviso aos políticos: “De promessa eu ando cheia”. À época o presidente do Brasil era Getúlio Vargas. Mudam-se os nomes nas cadeiras, e o recado continua atual. Por fim, o apelo era aos céus: “Tomara que chova/Três dias sem parar!/Tomara que chova/Três dias sem parar!”.

2 – Chove Lá Fora (valsa, 1957) – Tito Madi
Tito Madi utiliza a chuva como forma de expressar a solidão da valsa composta por ele em 1957. Um dos nomes de referência do elo da bossa nova com a música do final da década de 1950, representada por Lúcio Alves, Dolores Duran, Dick Farney, Johnny Alf, entre outros, o compositor usa essa imagem historicamente melancólica para combiná-la a acordes não menos tristes. Na ocasião há o fascínio não com a falta, mas a presença da chuva. “E a chuva continua mais forte ainda/Só Deus pode entender como é infinda”. Mal sabia Tito Madi que décadas depois essa condição infindável estaria arriscada, não pela natureza, mas pelo homem. E nem da chuva, mas da quantidade de água potável que também dependia da umidade de árvores desmatadas na Mata Atlântica. Há motivos para que a solidão e a tristeza de Tito Madi continuem…

3 – Cidade Lagoa (samba, 1959) – Sebastião Fonseca e Cícero Nunes
Em 1959 Sebastião Fonseca e Cícero Nunes denunciavam uma calamidade que desde cedo se tornou recorrente nas cidades brasileiras. A chuva que trazia enchentes e alagamentos. Lançada por Moreira da Silva e cantada com sua inconfundível e habitual divisão, a ritmada “Cidade Lagoa”, em referência aos problemas vividos à época no Rio de Janeiro, foi regravada por Jards Macalé no álbum dedicado ao ídolo. Se valendo da ironia e do humor rascante a dupla de compositores faz uma crítica sem precedentes aos governantes brasileiros, prova de que não sabem lidar nem com a falta e muito menos o excesso de água. Não estamos em boas mãos, felizmente há os versos e as vozes para nos alentar… “Quem tiver pressa, seja velho ou seja moço/Entre n’água até o pescoço/E peça a Deus pra ser girafa…”.

4 – Súplica Cearense (baião-toada, 1960) – Gordurinha
Gordurinha escreveu um dos hinos mais comoventes sobre a seca nordestina. O compositor baiano, que também atuou como humorista e cantor em rádios do Recife até alcançar êxito no Rio de Janeiro presta solidariedade aos irmãos cearenses nessa prece de versos simples e carregados de culpa católica. O ano era 1960 quando o baião-toada de Waldeck Artur de Macedo anunciou para todo o Brasil que o problema agora era outro, e denunciava a si próprio: “Oh, Deus!/Será que o Senhor se zangou/E só por isso o sol se ‘arretirou’/Fazendo cair toda chuva que há?/(…)Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe/Eu acho que a culpa foi/Deste pobre que nem sabe fazer oração…”. Além de se tornar um dos maiores sucessos da carreira do autor de “Chiclete com Banana”, “Mambo da Cantareira”, “Orora Analfabeta” e “Vendedor de Caranguejo”, a música foi regravada por Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Fagner, e o grupo ‘O Rappa’, comprovando o poder de seu sentimento.

5 – Chove, Chuva (samba-rock, 1963) – Jorge Benjor
Foi no consagrador álbum de 1963, “Samba Esquema Novo”, que Jorge Benjor lançou o estilo que parte da mídia definiu como “samba-rock” ou “sambalanço”, batismo que o próprio pai da cria jamais confirmou. Independente da nomenclatura, “Chove, Chuva” é parte deste disco e possui todos os elementos básicos da música mais autêntica de Jorge Ben. O enredo aparentemente simples narra um pedido, no qual se incute uma declaração de amor. É aquela cena clássica dos filmes de Hollywood, que algumas películas tupiniquins também mostraram. Quando a chuva arrefece ou mesmo incendeia o encontro do casal. Neste caso, Jorge Benjor não quer mais “chuva ruim”, que bem pode ser entendia como uma metáfora de desentendimentos na relação. A chuva novamente aparece como uma imagem simbólica, representativa da força da natureza e da interferência na vida do homem. É bom nos atentar para isto.

6 – Primavera (soul, 1970) – Cassiano e Sílvio Rochael
Tim Maia é daqueles intérpretes tão expressivos que ao cantar uma música tornava-a a sua, talvez só comparável a Elis Regina. Por isso não é estranho notar que “Primavera”, um soul de 1970 escrito por Cassiano e Sílvio Rochael esteja indiscutivelmente ligado à sua imagem, ou melhor, à sua voz. Mas é preciso fazer justiça aos compositores, principalmente a Cassiano, autor de pérolas desse gênero restrito no país, que encontrou em Tim sua expressão maior, mas que também contava com Hyldon, outro frequentemente relegado, autor do megassucesso “Na rua, na chuva, na fazenda”. A música, romântica, encontra seu ápice quando o vozeirão de Tim anuncia: “É primavera/Te amo!/É primavera/Te amo, meu amor!/Trago esta rosa/Para lhe dar/Meu amor/Hoje o céu está tão lindo”. E o coro interpreta sutil a glória da chuva. “Vai chuva…”.

7 – Águas de Março (MPB, 1972) – Tom Jobim
Por sua sofisticação melódica, pela inteligência dos versos e agilidade da interpretação, “Águas de Março” é um ícone da canção brasileira de todos os tempos, mas, sobretudo, pelo sentimento inebriante que transmite, pela sensação de algo novo e renovador estará eternamente guardada no coração de quem a ouvir uma única vez sequer. A função das chuvas que trazem “promessa de vida no teu coração” não poderia ser representada de maneira mais feliz por Tom Jobim, autor da letra e da melodia, e Elis Regina, que ao cantar em dueto com o maestro contribui para dar novos contornos à canção. Escrita inicialmente num pedaço de papel de pão, pela ausência de outros recursos, “Águas de Março” anuncia, numa análise mais minuciosa, o triunfo da vida sobre a morte, a importância fertilizante das águas, da chuva, para o recomeço, sempre. “São as águas de março fechando o verão…”.

8 – Chuva, Suor e Cerveja (frevo, 1972) – Caetano Veloso
Com seu projeto tropicalista Caetano Veloso revisitou e explorou os gêneros mais representativos e típicos da cultura nacional brasileira. Entre eles não poderia estar de fora o frevo. Composta em 1972, “Chuva, Suor e Cerveja” é um exemplo dos mais bem acabados da capacidade do compositor em unir instâncias, aparentemente distantes, como a modernidade e a tradição, e o que propõe, na letra desta canção, é a irrestrita liberdade de ser e estar. “Chuva, Suor e Cerveja” é uma música que brada contra toda e qualquer caretice, qualquer tipo de censura, costumes ou moralismo, e conclama para o prazer, à diversão, representados pelos itens líquidos que compõe este cenário, onde não poderia ficar de fora a água que se bebe, que se exala e que se recebe. A chuva aparece como graça, memória, folia e vida. “Acho que a chuva ajuda a gente a se ver…”.

9 – Chuva Princesa (tropicália, 1972) – Jorge Mautner
Jorge Mautner faz uso de sua poesia simbolista, concisa e consistente para alçar a chuva ao papel de musa de sua composição “Chuva Princesa”, uma peça tropicalista escrita em 1972. Afinal, todas as vertentes de seu trabalho no cinema, na música, no teatro e nas artes plásticas são veios para espalhar a sua literatura, como o próprio já declarou em diversas entrevistas. Nesta composição, aparentemente simples, e certamente singular, o artista alinhava versos singelos para transmitir a ética de sua conduta: é o amor, assim como a chuva, essa força da natureza, a quem se deve proclamar, assistir, e eventualmente transmutar, ou procurar esse contato mais próximo com a origem da existência humana, numa relação de respeito e não autodestruição. A música foi regravada no álbum “Pedaço de Mim”, por Zizi Possi, em 1979.

10 – Medo da Chuva (romântica, 1974) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Uma das composições mais sensíveis do inventivo Raul Seixas, “Medo da Chuva”, escrita em parceria com Paulo Coelho, é uma peça romântica em sua estrutura e na letra, que não se esquiva de roçar no melodrama para alcançar aquele poder de reflexão capaz de tocar toda e qualquer pessoa, pelo caráter da própria obra do baiano, entre o sofisticado e o popular. A história capta o momento de ruptura entre um casal, e as metáforas são precisas: enquanto as pedras são a imagem da covardia, do conforto, do costume, da segurança ineficiente e imóvel, da esterilidade, a chuva é a representação da mudança, da coragem, da renovação, do desafio, da vida em contínuo movimento. Algo tão real quanto místico. Afinal a mitologia grega se espelha na observação da natureza para erguer seus deuses. E a chuva é certamente uma das mais poderosas e mais temíveis. Como a da esperança. “Pois a chuva voltando pra terra/Traz coisas do ar…”.

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Raphael Vidigal

Segunda foto: Cena do filme “Cantando na Chuva”, de 1952, com Gene Kelly.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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