10 músicas de Tom Zé para redescobrir o Brasil

*por Raphael Vidigal

“Não sou convencido assim./ Não penso que sou gigante,
Colosso impávido e belo./ Mas também não sou minhoca.
Não fico assim assombrado/ Com o progresso dos outros.
Eles são muito mais ricos,/ Mas trabalham muito mais.” Murilo Mendes

Tom Zé abre o violão e de lá retira repiques e passarinhos. Abre a saia e retira de si uma moça prendada, aquela da música “Menina, Amanhã de Manhã”, referência à ditadura. Ironias à parte, o mais ácido dos tropicalistas, como cansaram de defini-lo, não se enquadra. “Só posso ser útil se eu apenas oferecer aberturas”, explicou ele melhor que ninguém e do que qualquer um. A performance do artista guarda íntima ligação com o discurso. “Cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante”, definiu certa vez. Baiano de Irará, octogenário, prestes a comemorar outro aniversário em outubro, Tom Zé é escorregadio como as utopias, o que nos ajuda a redescobrir o Brasil.

“Namorinho de Portão” (tropicalista, 1968) – Tom Zé
Lançada por Tom Zé em “Grande Liquidação”, primeiro álbum do autor, a composição se vale de uma abertura incidental da música de domínio público “Cai, Cai, Balão”, para, em seguida, incluir outros elementos caros à Tropicália, como a mistura sonora e a fluidez discursiva. “Namorinho de portão/ Biscoito, café/ Meu priminho, meu irmão/ Conheço essa onda/ Vou saltar da canoa”. A música foi regravada com grande sucesso por Gal Costa, no conceituado álbum que trazia, ainda, “Não Identificado” e “Baby”. A versão de Tom Zé data de 1968, o mesmo ano em que veio ao mundo o fundamental álbum “Panis Et Circenses”, que definiu as diretrizes da Tropicália de Caetano, Gil, Gal, Os Mutantes e outros.

“São, São Paulo, Meu Amor” (tropicalista, 1968) – Tom Zé
Tido como o mais tropicalista entre os tropicalistas, o baiano Tom Zé venceu o 4º Festival de Música Brasileira promovido pela TV Record, em 1968, com a música “São, São Paulo, Meu Amor”, uma ode às avessas para a cidade que ele migrou em busca de oportunidades no showbiz nacional. Os versos ácidos captam a agonia da metrópole de “oito milhões de habitantes/ de todo canto em ação/ que se agridem cortesmente/ morrendo a todo vapor/ e amando com todo ódio”. O santo que dá nome à cidade é, também, o mascote do clube São Paulo.

“O Riso e a Faca” (tropicalista, 1970) – Tom Zé
Depois de estrear no mercado fonográfico com “Grande Liquidação”, que trazia a música “São, São Paulo”, vencedora do Festival da Record de 1968, Tom Zé colocou no mercado um segundo álbum, batizado apenas com seu nome na capa. Ele aproveitava a ocasião para reclamar, no encarte, da falta de pagamento pelo prêmio conquistado pela prefeitura de São Paulo. Sexta faixa do álbum, “O Riso e a Faca” seria regravada em “Todos os Olhos”, álbum da mais polêmica capa da discografia de Tom Zé. Investindo nos paroxismos tanto na letra quanto na estrutura, a canção une uma parte ácida a outra mais lírica, entendida como refrão. “Eu sou a raiva e a vacina”, definia ele numa das estrofes.

“Menina, Amanhã de Manhã” (tropicalista, 1972) – Tom Zé e Antônio Perna
Inspirado no slogan da ditadura militar, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o irreverente Tom Zé compôs, em 1972, ao lado do parceiro Antônio Perna, “Menina, Amanhã de Manhã” dentro do espírito tropicalista que sempre o guiou. A sagacidade do baiano de Irará consistia em combater o nefasto regime lançando mão de ironias sutis e tendo, como arma, justamente a felicidade, valor sufocado por torturas e assassinatos institucionalizados pelo Estado. Na versão de Tom Zé, a felicidade oferecida pela ditadura era enfiada goela abaixo dos cidadãos, imposta de maneira pasteurizada e falsa. Dada a amplitude de interpretações sobre composições abertas como as do baiano, a canção ganhou sentido oposto ao cair na boca do povo e com o decorrer dos anos, virando mantra de esperança.

“Pecadinho” (frevo, 1972) – Tom Zé e Tuzé de Abreu
O mais recente álbum de Tom Zé foi colocado na praça em 2017, com “Sem Você Não A”, onde ele aborda o universo infantil com uma perspectiva própria. Antes, gravou o não menos provocativo “Canções Eróticas de Ninar” (2016). “Tem uma música que se chama ‘Curiosidade’ (do disco ‘Defeito de Fabricação’). Para mim, é a descrição perfeita da essência de Tom Zé e, de alguma forma, é o resumo da história da humanidade. Tudo que o homem fez foi por curiosidade. É genial”, destaca Pietro Scaramuzzo, autor da biografia de Tom Zé. Da lavra antiga, ele elege “Pecadinho”, presente no seminal LP de 1972. “A primeira música que aprendi a amar foi ‘Frevo’, mais conhecida como ‘Pecadinho’. Fiquei impressionado não só pela música em si, que remete com força ao Nordeste, mas também pela poética sagaz. Gostei do pecadinho como ideia de libertação”.

“Aburguesar” (tropicalista, 1972) – Tom Zé
A cantora e compositora Juliana Linhares, da banda Pietá, lança em 2021 “Nordeste Ficção”, o seu primeiro disco solo, em que apresenta parcerias com Zeca Baleiro, Chico César e nomes de sua geração, e também regrava as clássicas “Tareco e Mariola” e “Bolero de Isabel”, além de cantar, com Letrux, a irônica “Aburguesar”, canção escrita por Tom Zé em 1972, que permaneceu inédita. Nascida em Natal, no Rio Grande do Norte, a potiguar aproveita o disco para questionar os estereótipos em torno da população nordestina. Ironicamente, “Aburguesar” foi considerada fora de moda por Tom Zé quando redescoberta pelo produtor Marcus Preto em 2014, durante a feitura do disco “Vira-Lata na Via Láctea”, com participações de Mallu Magalhães, Tim Bernardes, Criolo e outros expoentes da nova geração da nossa música popular.

“Augusta, Angélica e Consolação” (tropicalista, 1973) – Tom Zé
Quando David Byrne redescobriu Tom Zé numa loja de sebos pouca gente desconfiava que ali estavam presentes dois dos princípios básicos do Tropicalismo. Além da confluência entre nações, a sofisticada obra do baiano encontrava-se no mais popular dos espaços. A tardia aclamação não impediu o compositor de canções tornadas clássicas, como “Augusta, Angélica e Consolação”, “Menina, Amanhã de Manhã (O Sonho Voltou)” e “Tô”, de revelar-se como o mais persistente proclamador dos princípios tropicalistas. Sempre, também, o mais tropical de todos eles, tanto na postura quanto nas vestimentas, reforçando o caráter performático das apresentações daquele que se diz “cantor que não sabe cantar, instrumentista que não sabe tocar e compositor que não sabe compor”, ao sublinhar a transformação das próprias misérias e precariedades em fonte de inspiração e motor criativo. Pois Tom Zé é pura arte.

“Tô” (samba, 1976) – Tom Zé e Elton Medeiros
Elton Medeiros (1930-2019) tinha fama de difícil, genioso. Suas melodias também não eram das mais fáceis. Inquieto, Elton foi além dos parceiros habituais. Já em 1976, topou o convite do tropicalista Tom Zé para participar do álbum “Estudando o Samba”. Elton não se fez de rogado e entrou na onda experimental do baiano, com quem deu luz a duas pérolas, a aguda “Mãe Solteira” e a provocativa “Tô”: “Eu tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”. Com outro espécime raro da MPB, o encontro se deu em 2011, quando Jards Macalé e Elton realizaram dueto em “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares.

“Amarração do Amor” (tropicalista, 2012) – Tom Zé
Na música “Amarração do Amor”, do álbum “Tropicália Lixo Lógico”, de 2012, Tom Zé canta: “A cartomante me garantiu/ Quando o baralho se abriu/ Que você vai me pedir perdão/ Com os joelhos arrastando no chão…”. Mas, sem uma bola de cristal confiável, que ninguém se atreva a conjecturar os próximos passos de Tom Zé. Em outubro de 2020, uma compilação com gravações obscuras foi editada sob o nome de “Raridades”, em que se sobressaem o registro ao vivo de “Jeitinho Dela” e uma versão da valsa “A Dama de Vermelho”, sucesso de Francisco Alves em 1943. Recém-saída do forno, segue como a novidade mais fresca, embora haja notícias de que o músico anda enfurnado preparando outras.

“Papa Francisco Perdoa Tom Zé” (rock, 2014) – Tom Zé e Tim Bernardes
“Nunca vi uma pessoa tão sinceramente interessada pelo mundo e pela natureza humana”, exalta Pietro Scaramuzzo, autor da biografia italiana de Tom Zé, cuja versão em português chega agora ao Brasil. Justamente por isso, o escritor está, nesse momento, “literalmente apaixonado” pelo disco “Vira Lata na Via Láctea”, lançado por Tom Zé em 2014, em que o anfitrião canta com Caetano Veloso. Nomes da nova geração também comparecem, como Criolo, Silva e Tim Bernardes, que participa da irônica “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, um sarro direcionado aos críticos que achincalharam o compositor nas redes sociais após ele participar de um comercial da Coca-Cola durante a Copa do Mundo de 2014.

*Bônus
“Você É O Mel” (jazz, 2000) – Cole Porter em versão de Augusto de Campos

No primeiro ano do novo milênio, o letrista, produtor e jornalista Carlos Rennó colocou na praça um projeto ousado: músicas de Cole Porter e George Gershwin, dois dos maiores estandartes do jazz norte-americano, traduzidas para o português em versões interpretadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Mônica Salmaso, Jussara Silveira, entre outros. Coube ao tropicalista Tom Zé dar conta de “Você é o Mel”, versão para clássico de Cole Porter concebida pelo poeta concretista Augusto de Campos. Tom Zé, aliás, era íntimo do movimento Concreto, tanto que Décio Pignatari concebeu a mais polêmica capa de sua discografia. Sem fugir ao atrevimento que pautou sua trajetória, o baiano dá voz a essa desconcertante tradução dum amor romântico.

Ouça a playlist completa:

Foto: Lela Beltrão.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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