10 músicas de João Donato para reconhecer a diversidade brasileira

*por Raphael Vidigal

“Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.” Manoel de Barros

Um som característico e inventivo. Assim pode ser definido o estilo único criado por João Donato na música brasileira, a partir da mistura de ritmos latinos, especialmente da canção cubana, com o jazz. O músico morreu nesta segunda (17), aos 88 anos, no Rio, após enfrentar uma série de problemas de saúde, incluindo uma infecção pulmonar.

Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato esteve a vida toda associado à bossa nova, embora fosse muito diferente de seus pares. Sua personalidade era diametralmente oposta à do outro Papa da Bossa. Enquanto João Gilberto era introspectivo, Donato era pura expansividade.

Filho de um major da aeronáutica, Donato cresceu em um ambiente musical. A mãe adorava cantar, assim como a irmã mais velha, que tinha aspirações ao piano, e o próprio pai tocava bandolim. Aos 11 anos, ele mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, já íntimo do acordeom, o seu primeiro instrumento, aprendido na infância. Na década de 1950, chegou a ser namorado de Dolores Duran.

Logo, passaria para o piano, onde comporia expressiva parte de seu repertório. O irmão, Lysias Ênio, foi responsável pelas letras de alguns de seus clássicos, como “Até Quem Sabe”, sucesso arrebatador na voz de Gal Costa, e “Café com Pão”, que ganhou a densa interpretação de Nana Caymmi.

Os tropicalistas também captaram o talento incomum de Donato. Caetano Veloso colocou letra em “A Rã”, e, com Ronaldo Bastos, completou em versos a melodia triste e melancólica da balada “Naquela Estação”, regravada com primor pela gaúcha Adriana Calcanhotto, virando trilha da novela “Rainha da Sucata”, na Rede Globo.

Gilberto Gil levou para multidões e até para o Papa, no canto doce de Zizi Possi, a comoção de “A Paz”, um hino que demonstra todo o rigor melódico de Donato, aliado a uma sensibilidade rara. O baiano também angariou sucesso para “Lugar Comum” a partir de sua letra. Donato ainda se responsabilizou por um dos grandes hits de Angela Ro Ro, a sentimental “Simples Carinho”, feita com Abel Silva.

Nunca foi fácil criar um texto para as melodias de Donato, que assumidamente privilegiavam o ritmo. Encaixar palavras em notas que escorregavam feito répteis e anfíbios é um feito que merece destaque para os parceiros deste compositor que sempre primou pela criatividade, e cujo último ato foi um álbum de inéditas com jovens músicos da nova geração, que celebrava o prazer e o amor, após um disco em conjunto com Jards Macalé, outro irrequieto da canção popular, em que ambos apareciam nus na capa, como a síntese de uma música marota e libertária.

“Até Quem Sabe” (MPB, 1973) – João Donato e Lysias Ênio
“Meu gosto sempre foi exclusivamente pela música, nunca me interessei por outras artes. Na música clássica eu admiro muito os impressionistas, Ravel, Debussy”, confessa o compositor cujas melodias clássicas – num sentido mais abrangente que a definição erudita – de “A Paz”, “Bananeira”, “A Rã”, “Café com Pão”, e outras, foram letradas por Gilberto Gil, Caetano Veloso e o irmão Lysias Enio. Com Lysias, João Donato compôs a belíssima “Até Quem Sabe”, uma canção de despedida lançada por Dóris Monteiro, em 1973, e regravada por Gal no disco “Cantar”, de 1974. E a música também foi gravada por Maysa.

“Não Tem Nada Não” (rumba, 1973) – Marcos Valle, João Donato e Eumir Deodato
Em 2018, o produtor Rafael Ramos reeditava, para a coleção “Clássicos em Vinil”, o LP “Previsão do Tempo”, de 1973, cultuado pelos fãs de Marcos Valle. “O ‘Previsão do Tempo’ tinha duas características marcantes. Musicalmente, ele foi calçado nos grooves do meu piano e do Fender-Rhodes (teclado que virou mania nos anos 70); por outro lado, trazia uma conotação política muito forte, em função da ditadura e da censura que a gente vivia. As letras carregavam essa implicação política e social”, observa Marcos Valle. O repertório trazia músicas como “Nem Paletó, Nem Gravata”, “Os Ossos do Barão” e “Samba Fatal”, parcerias com Paulo Sérgio Valle. Outro destaque era “Não Tem Nada Não”, rumba que reunia Valle, João Donato e Eumir Deodato.

“Lugar Comum” (MPB, 1974) – Gilberto Gil e João Donato
O baiano Gilberto Gil e o acreano João Donato resolveram dar cores brasileiras ao mito da bruxa. Tanto que na canção de 1975, lançada no disco “Lugar Comum”, de Donato, ela aparece como “A Bruxa de Mentira”. A dupla voltava a repetir parceria que já havia alcançado sucesso com “A Paz” e “Bananeira”. Os versos se aproveitam da sonoridade da melodia para brincar: “A bruxa de mentira/Bombom de rapadura/Esdrúxula figura/Bruxinha gostosa/Neném rapadoçura”. Pouco conhecida, a canção ganhou novo lançamento em 1977, no álbum “Satisfação: Raras e Inéditas”, de Gil. Lançada em 1974, a balada “Lugar Comum” mostrava toda a dolência da música de João Donato.

“A Rã” (MPB, 1974) – Caetano Veloso e João Donato
Uma frase dita por Caetano Veloso não é qualquer coisa, afinal de contas, o baiano de Santo Amaro da Purificação é um dos maiores nomes da música brasileira. De tanto repetida, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” se tornou um clichê e, aos 80 anos, podemos dizer que Caetano Veloso entende melhor do que ninguém essa frase. Com seu projeto tropicalista, que incluía escrever um capítulo definitivo na história da cultura nacional, o músico, cantor e compositor criou clássicos atemporais, com os quais subiu aos palcos em recente espetáculo ao lado dos três filhos, como “Oração ao Tempo”, “O Leãozinho”, “Alegria, Alegria”, “Trem das Cores”, “Reconvexo”, “Gente”, “Força Estranha”, e muitos outros. Em 1974, ele compôs versos para a sinuosa melodia de “A Rã”, numa inventiva parceria com João Donato.

“Bananeira” (MPB, 1975) – Gilberto Gil e João Donato
O silêncio não é algo comum para João Donato. Apesar disso, ele ficou 15 anos sem entrar em estúdio para gravar um disco cantado de músicas inéditas, justamente a idade com que se apresentou, em 1949, no programa de Ary Barroso (1903-1964) e foi prontamente rejeitado, já que o apresentador não hesitava em afirmar seu desgosto por “meninos prodígio” e tocar o gongo da reprovação. Difícil saber se o autor de “Aquarela do Brasil” e “No Tabuleiro da Baiana” desconfiava que, anos mais tarde, um já senhor octogenário enfileiraria clássicos cantados por multidões durante décadas. Em 1975, Emílio Santiago lançou a irresistível “Bananeira”, parceria de Donato e Gilberto Gil.

“Café com Pão” (MPB, 1981) – João Donato e Lysias Ênio
Dinahir Tostes Caymmi, mais conhecida como Nana Caymmi, nasceu no berço esplêndido da música popular brasileira, no dia 29 de abril de 1941, no Rio de Janeiro. Filha do baiano Dorival Caymmi e irmã dos cariocas Dori e Danilo Caymmi, ela iniciou a carreira artística em 1960, ao gravar com o pai a canção “Acalanto”. Em 1963, lançou o seu primeiro disco-solo. Ao longo de uma bem-sucedida carreira, Nana Caymmi se tornou uma das mais requisitadas cantoras da música brasileira, gravando canções para trilhas de minisséries e novelas da Rede Globo. Em 1981, Nana lançou “Café com Pão”, de João Donato com seu irmão Lysias Ênio.

“Simples Carinho” (samba-canção, 1982) – João Donato e Abel Silva
Intérprete do sucesso “Simples Carinho” (parceria de João Donato e Abel Silva), Angela Ro Ro conta, aos risos, em seu documentário “Eu Sou Insana?”, que certa feita teve de “fugir de um João Donato excitado”. “Essa história é só brincadeira dela, Ro Ro é impossível”, garante o pai de Donatinho. A música foi lançada em 1982, no disco de mesmo nome, em que a cantora aparecia na colorida capa com um papagaio na mão e os cabelos e o corpo molhado pela água onde ela está imersa. “Simples Carinho” tornou-se um dos maiores sucessos da carreira de Angela Ro Ro e parte indispensável de seu repertório.

“A Paz” (MPB, 1987) – Gilberto Gil e João Donato
Em 1982, Zizi Possi ganhou o seu primeiro disco de ouro pelas milhões de cópias vendidas com o disco “Asa Morena”, puxado pela toada de Zé Caradípia que conquistou todo o Brasil. Ela voltaria a bater recordes de vendagens em 1997, 1998 e 1999, no auge de sua aclamação popular, com “Per Amore”, “Passione” e “Puro Prazer”. Outro momento definitivo de sua carreira aconteceu em 1987, quando gravou uma versão atemporal para a inebriante “A Paz”, de Gilberto Gil e João Donato, cantada até para o Papa. A música integrou a trilha da novela “Mandala”, da Rede Globo, protagonizada por Vera Fischer, Felipe Camargo e Nuno Leal Maia.

“Doralinda” (MPB, 1989) – Cazuza e João Donato
“Doralinda” é uma das últimas composições de Cazuza, lançada postumamente, em 1991. Nesta sensível parceria com João Donato, o poeta reflete sobre a existência e propõe para a sua amada as riquezas materiais da vida, que disfarçam o que se quer mostrar de verdade, o real sentimento e sua impalpabilidade. Por isso ele afirma: “Eu queria te dar a lua, só que pintada de verde/ Te dar as estrelas, de uma árvore de Natal/ E todo o dinheiro falso do mundo, eu queria te dar”. Ou seja, prova de que o dinheiro em si, como símbolo, não provoca as desilusões humanas, mas como tudo o que é manipulado, é do seu uso que dependerá a conotação boa ou ruim. Ao fim, Cazuza vaticina: “Eu queria te dar o amor que eu talvez nem tenha pra dar…”. A música foi regravada por Nana Caymmi, o próprio João Donato e Emílio Santiago, e, com singeleza, revela e esconde o real espírito natalino.

“Naquela Estação” (MPB, 1990) – Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos
João Donato e Caetano Veloso estavam enrolados com um verso de “Naquela Estação”, quando Ronaldo Bastos chegou e resolveu a pendenga. Nascia, assim, a parceria tripla, lançada por Adriana Calcanhotto em 1990, e logo puxada pra trilha de “Rainha da Sucata”, novela da Rede Globo, onde era tema da personagem de Renata Sorrah. Triste, melancólica, quase deprimente, “Naquela Estação” conserva uma beleza que afoga o ouvinte na singeleza de seus versos sobre despedida, um sentimento que, certamente, todos já experimentaram. “E o meu coração embora/ Finja fazer mil viagens/ Fica batendo parado naquela estação…”. A música ganhou versões de Emílio Santiago e da cantora Claudya, mas permaneceu associada à voz de Adriana.

*Bônus
“Coco Taxi” (mambo, 2021) – João Donato e Jards Macalé
João Donato e Jards Macalé estão entre os mais inclassificáveis compositores da música brasileira, com uma obra absolutamente autoral e inconfundível. Em 2021, eles resolveram unir as personalidades irreverentes e lançaram o álbum “Síntese do Lance”, protagonizado pela dupla, que aparece nua na capa, protegida apenas pela folhagem. “Coco Taxi”, composto por Macalé e Donato, é um mambo que revolve os ares de Cuba, inspirado no conhecido meio de transporte utilizado pelos turistas na ilha, que costuma ser bastante inseguro. Em meio a um cenário de trevas e opressões, esses dois coringas da MPB vêm nos lembrar de que alegria e rebeldia são armas para revolucionar a vida.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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