*Raphael Vidigal Aroeira
“animal em extinção,
quero praticar poesia
– a menos culpada de todas as ocupações.” Wally Salomão
A sensação era a de uma onda a tomar conta de tudo. Antes mesmo daquele dia, os batuques, os ritmos e as melodias viviam dentro dele como algo particular e imenso. Zé Ibarra se lembra com todos os detalhes de quando colocou os dedos em um piano pela primeira vez, aos 6 anos de idade, e da catarse provocada que, a partir de então, o revelou uma existência de dedicação ao ofício. “Nada na minha vida chega aos pés do que sinto com a música e pela música, é uma obsessão absoluta, para o bem e para o mal”, define, denunciando uma exaltação que se identifica na própria interpretação do artista. Nesta quarta (22), o músico apresenta a turnê “Afim”, fruto de seu mais recente disco, em Belo Horizonte.
“Acho que esse é o primeiro álbum em que eu começo a dizer, por mim mesmo, o que eu quero dizer de fato para o mundo daqui pra frente”, arrisca. Em comparação com o antecessor “Marquês, 256.”, de 2023, Ibarra avalia que, a despeito de sua personalidade estar presente, ele permanecia numa zona de segurança. “O ‘Afim’ tem mais coragem envolvida, aponta para vários lados que coexistem dentro de mim, e eu quis que todos esses lados dessem as caras nesse álbum. Eu queria e precisava muito renovar a imagem e a sensação que eu passava para o público, e acho que esse disco é o começo somente, ainda vejo ele como um álbum de transição”, observa.
Repertório. Assim como em sua estreia na carreira solo, o lançamento da vez apresenta oito faixas, mesclando autorais como “Infinito em Nós” e “Essa Confusão” (parceria com Dora Morelenbaum) com contribuições da lavra de contemporâneos, casos de “Segredo” (de Sophia Chablau), “Retrato de Maria Lúcia” (de Ítallo França) e “Da Menor Importância” (de Maria Beraldo), que evidencia o diálogo com a música de Caetano Veloso. Outro destaque é “Transe”, de Ibarra, indicada ao Grammy Latino na categoria de melhor canção em língua portuguesa. “Foi a faixa que mais me deu trabalho, e, ao mesmo tempo, a que mais me deu prazer”, confidencia o artista.
Definida como “difícil, de atmosfera neurótica e triste”, a composição colocou Ibarra em dúvida. “Tive medo que ninguém se conectasse com aquilo que para mim era muito possível”. Ele conta que a intenção era “pintar um filme nos ouvidos das pessoas”, o que demandou dois anos de tentativas e erros. “A música fala explicitamente sobre uma vertigem de solidão e paranoia, e tentei construir um arranjo que pontuasse cada palavra da melodia em som. Gosto do resultado final porque sinto que ficou original, com cara própria e livre”, orgulha-se Ibarra, sem esconder que a gravação do novo álbum foi “um tanto complexa”.
Criação. “Seria mais difícil se eu não soubesse que comigo é sempre assim, já estou acostumado. É sempre uma luta interna contra as mil vozes contraditórias que me guiam. No final das contas eu sofro mas amo, na verdade sofro porque amo”, conjectura. Afinal, o intérprete não sabe “fazer outra coisa que não criar”. “Desde sempre essa é a tônica da minha vida e quando não estou criando é como se eu estivesse morto, vendo o tempo passar na minha frente”. Sem saber precisar de onde vem a inspiração, ele a compreende como “lampejos de prazer e visão que acontecem internamente”. “Os sons me guiam, é como se eu estivesse sendo levado por eles para algum lugar que não conheço. É muito lindo criar, eu sinceramente acho que o ato mais bonito que pode existir dentro de uma vida é criar”.
Tanto que o artista empresta uma aura divina ao acontecimento. “Tenho a sensação de que não sou eu quem cria, mas algo maior, acima de mim, de que sou apenas o canal”. Quando surgiu com a banda Dônica em meados de 2014 ao lado de Tom Veloso, e, depois, integrou a incensada Bala Desejo, a perspectiva era mais carnal, numa dicotomia que comparece em sua própria relação com Belo Horizonte. “Amo passar um tempo pelas ruas de Santa Tereza tomando uma cerveja e sentindo o vento frio na cara, que não existe no Rio como tal. Mas para além disso, eu sempre tive uma relação forte com Minas, minha família teve um sítio em Itamonte quando eu era pequeno e isso me marcou muito. A fantasia das montanhas, o frio, os trens, todo esse universo mineiro está dentro de mim e eu não seria o que sou hoje se não fosse por ele”, afirma.
Farol. Nas duas últimas turnês de Milton Nascimento, Ibarra foi um convidado especial, intensificando essa conexão. Aliada a esta nítida influência, outras menos óbvias se juntam ao repertório mais recente a fim de dar liga ao show que aporta em BH, como “Someone to Watch Over Me”, clássico da canção norte-americana dos anos 1920 que recebeu vozes como as de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Barbra Streisand e Ray Charles, entre inúmeras outras. “Eu sentia que precisava fazer um aceno claro para minhas referências no jazz, e não pude escapar dos irmãos Gershwin”, conta Ibarra, em menção aos compositores do hit.
Do Brasil, o carioca pinça “Lobo Bobo”, ícone bossanovista de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, para exaltar o mestre João Gilberto, a quem dedica o aprendizado do “jeito de cantar e tocar”, só que em um estilo funkeado. “Enfim, são pequenas surpresas gostosas para mim de experimentar, e acredito que para o público também é interessante ter essa compreensão de onde viemos e quem escutamos”, arremata Ibarra, dando pistas que só à primeira vista revelam a ousadia de seu mergulho.
				
															

