Vanusa denunciou violência e compôs música que se tornou hino feminista

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Eu, mulher dormente, na líquida noite
alargo a ramagem de meus cabelos verdes.
Sigo dentro desse cristal ondulante,
contida como o som nos sinos imóveis.” Cecília Meireles

Vanusa Santos Flores, mais conhecida como Vanusa, nasceu na cidade de Cruzeiro, interior de São Paulo, no dia 22 de setembro de 1947, e morreu na cidade de Santos, no dia 8 de novembro de 2020, aos 73 anos, após uma longa batalha contra a depressão. Cantora e compositora, ela foi criada nas cidades mineiras de Uberaba e Frutal. Aos 16 anos, tornou-se vocalista de um conjunto inspirado na Jovem Guarda. Em 1966, migrou para São Paulo, onde apresentou o programa “O Bom”, ao lado de Eduardo Araújo, na TV Excelsior.

O estouro veio com a canção “Pra Nunca Mais Chorar”, de Eduardo Araújo e Carlos Imperial. Em 1968, gravou o primeiro disco. O maior sucesso autoral aconteceu com “Manhãs de Setembro”, composta com Mário Campanha, de 1973. No mesmo ano lançou “Paralelas”, de Belchior, outro hit inconteste. Também gravou músicas ao lado do marido, o cantor e compositor Antônio Marcos, como “Namorada” e “Volte Amor”. O casamento terminou após quatro anos, e Vanusa iniciou um relacionamento com o ator Augusto César Vannucci.

“S.O.S. Mulher” (pop, 1981) – Vanusa
Em 1999, Vanusa lançou a autobiografia “Ninguém É Mulher Impunemente”, onde revelava agressões sofridas pelo pai e alguns de seus maridos. Casada seis vezes, a cantora paulista sempre levantou a bandeira da independência da mulher e do feminismo em suas canções. Uma das mais emblemáticas nesse quesito é, certamente, “S.O.S. Mulher”. A letra traça um retrato da violência diária a que as mulheres são submetidas no Brasil, muitas vezes presas em relacionamentos abusivos com a condescendência da sociedade, para, em seguida, conclamar as mulheres à luta: “Acorda pra vida e pede socorro/ Nada vale esse jogo/ No sufoco vale tudo/ Ah bota a boca no mundo/ S.O.S. mulher”.

“Ser Mulher” (MPB, 1980) – Vanusa, Augusto César Vannucci e Anamaria
Não é de hoje que as mulheres bradam na música brasileira. O clamor pela igualdade e contra práticas abusivas vem de tempos remotos e chega até os mais atuais. Ícones da cultura nacional influenciam e influenciaram nossas compositoras, como Leila Diniz, Elvira Pagã, Pagu e Luz Del Fuego, além de histórias cotidianas vividas por anônimas com as quais muitas se identificam. Em 1980, Vanusa criou, com Augusto César Vannucci e Anamaria, “Ser Mulher”, que se transformou em hino da causa feminista. “Esperam de nós tanta coisa/ Ninguém pode tudo o que quer/ Será que percebem/ Que temos desejos/ Como outra pessoa qualquer/ Ser mulher/ É ser mãe, amante, amiga/ Ser mulher/ É saber virar a mesa/ Ser mulher/ É encarar de frente a vida”, diz.

“Mudanças” (balada, 1979) – Sérgio Sá
A despeito de ter escrito os arranjos para clássicos do porte de “Lança Perfume” (de Rita Lee), “Festa do Interior” (com Gal Costa), “Palco” (de Gilberto Gil) e “Banho de Cheiro” (com Elba Ramalho), Lincoln Olivetti jamais deixou de despertar polêmicas. “Ele era acusado de ter pasteurizado a MPB”, informa o jornalista e crítico musical André Barcinski. A seu favor, Olivetti trazia no currículo tanto números quanto nomes expressivos. No ano de 1982, ele foi o responsável por nada menos que 360 arranjos. Maria Bethânia, Caetano Veloso, Jorge Benjor, Roberto Carlos, Vanusa, Fagner, Angela Ro Ro, Zizi Possi, Lulu Santos, Ed Motta e As Frenéticas foram alguns dos que passaram por suas mãos. Olivetti trabalhou com Sérgio Sá em disco de Vanusa, que, em 1979, lançou a balada “Mudanças”, em mais um petardo de temática feminista.

“Avôhai” (MPB, 1977) – Zé Ramalho
Filho de uma professora e de um seresteiro, Zé Ramalho perdeu o pai aos dois anos, quando ele se afogou em uma represa. Com isso, passou a ser criado pelo avô. Essa relação foi homenageada pelo compositor numa de suas músicas mais emblemáticas, místicas e misteriosas. “Avôhai” surgiu durante uma experiência de Zé Ramalho com cogumelos alucinógenos e, segundo ele, chegou de uma única vez. Em 1977, a canção foi gravada pela cantora Vanusa. Com várias referências à sua criação, o músico revela a união das palavras que formam o título da canção no verso: “Avôhai/ Avô e pai”. O próprio Zé Ramalho deu a sua versão para a música no ano seguinte ao lançamento.

“Congênito” (MPB, 1975) – Luiz Melodia
Ninguém sabia explicar direito o que tinha acontecido. A viagem deveria durar dez dias, mas se estendeu por mais de seis meses. Quando atendia aos telefonemas, Luiz Melodia (1951-2017) pedia a grana do adiantamento e a gravadora mandava. “Ele era um artista prestigiado na época, dizia que estava se inspirando na terra baiana para criar o novo repertório”, conta Toninho Vaz, autor de “Meu Nome É Ébano: A Vida e a Obra de Luiz Melodia”. Estourado nas paradas após um primeiro disco apoteótico, que revelou ao mundo sucessos como “Pérola Negra” e “Estácio, Holly, Estácio” na voz do compositor, Luiz Melodia continuaria em alta com o segundo disco da carreira, “Maravilhas Contemporâneas”, de 1976, que trouxe “Congênito”, lançada por Vanusa um ano antes, em 1975, no cultuado disco “Amigos Novos e Antigos”.

“Paralelas” (MPB, 1975) – Belchior
Quando o cantor e compositor Belchior (1946-2017) morreu, no dia 30 de abril de 2017, vários veículos respeitáveis de imprensa cometeram um equívoco imperdoável. A gafe, no entanto, fora provocada pelo próprio artista. Para tirar um sarro com jornalistas, Belchior costumava dizer que se chamava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, a fim de comprovar que era, de fato, o “maior nome da MPB”. Na certidão de nascimento, no entanto, ele era apenas Antônio Carlos Belchior, três nomes próprios que, juntos, formavam um só. Ironicamente também é triplo o número de documentários em curso que pretende se debruçar sobre a personalidade múltipla do autor de clássicos do cancioneiro nacional, como “Paralelas”, lançada pela cantora Vanusa em 1975.

“Sonhos de Um Palhaço” (MPB, 1974) – Antônio Marcos e Sérgio Sá
A origem da palavra palhaço vem de seu radical “palha”. Isso porque, na Itália, era dela que se constituía a roupa do palhaço. Em inglês, o termo é associado a camponeses e a seu meio rústico. De uma forma ou de outra, o palhaço é ligado à simplicidade, e o sentimento que desperta não poderia ser menos complexo: alegria. Daí por que a infância seja a morada do palhaço. No Brasil, além de palhaços célebres como Carequinha, Arrelia e Benjamin de Oliveira (o primeiro palhaço negro do país, natural de Pará de Minas), a figura mais carismática do circo foi cantada em verso e prosa por Lamartine Babo, Carlos Galhardo, Dalva de Oliveira, As Frenéticas, Chico Buarque e muitos outros. Em 1974, Vanusa lançou “Sonhos de um Palhaço”, de Antônio Marcos e Sérgio Sá.

“Manhãs de Setembro” (balada, 1973) – Vanusa e Mário Campanha
É com justiça que se argumenta que Vanusa não teve o reconhecimento à altura do seu talento. Ainda assim, ela recebeu alguns prêmios, como, por exemplo, ao participar do IV Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo, quando cantou “Namorada”, com o marido Antônio Marcos, e foi ovacionada pela plateia. Em 1974, ela foi escolhida a revelação feminina no festival de Piriápolis, no Uruguai. Na ocasião, interpretou um dos maiores sucessos de sua trajetória, “Manhãs de Setembro”, parceria com Mário Campanha lançada em disco no ano de 1973. Em 1980, Vanusa conseguiria o terceiro lugar no Festival de Seul, na Coreia do Sul, com a música “Mágica Loucura”, parceria com o então marido Augusto César Vannucci, mais um hit.

“What to Do” (rock, 1973) – Papi e Alf Soares
Em 1973, Vanusa estava no auge da criatividade artística, com músicas como “Manhãs de Setembro” puxando o seu quarto disco. Décadas depois, começou a circular uma lenda que ela mesma nunca levou a sério. “What to Do”, única música gravada em inglês pela cantora, teria sido plagiada pelo grupo de heavy metal britânico Black Sabbath. A cópia se daria na faixa “Sabbath Bloody Sabbath”, de riff, aparentemente, idêntico. “What do Do” foi composta pela dupla formada por Papi e Alf Soares. Colaborou para o boato o fato de os integrantes do Black Sabbath admitirem que enfrentavam um bloqueio criativo na época, pelo alto uso de drogas e substâncias alucinógenas. Reza a lenda que o histórico LP de Vanusa teria chegado às mãos dos metaleiros britânicos.

“Como Vai Você” (balada, 1972) – Antônio Marcos e Mário Marcos
Roberto Carlos vinha, aos poucos, de descolando do título de ídolo da garotada para se consagrar como o Rei da música brasileira. Um dos principais ativos nesse movimento foi apostar em canções mais maduras, que deixavam para trás o espírito juvenil e rebelde, em busca de declarações de amor capazes de acalentar corações de todas as idades. “Como É Grande o Meu Amor Por Você” destoa do repertório de “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, LP lançado em 1967, exatamente por esse motivo. Já em 1972, ele se valeu de “Como Vai Você”, dos irmãos Antônio Marcos e Mário Marcos. Vanusa também gravou esse clássico associado a Roberto Carlos, que vendeu 700 mil cópias.

“Pra Nunca Mais Chorar” (Jovem Guarda, 1968) – Carlos Imperial e Eduardo Araújo
A Jovem Guarda começou com uma proibição. E não foi o “É Proibido Proibir” de Caetano Veloso, nem o “É Proibido Fumar”, de Roberto e Erasmo Carlos. No segundo ano de instauração da ditadura militar no Brasil, em 1965, as transmissões de jogos de futebol ao vivo pela televisão estavam suspensas. Assim, com o horário vago, a TV Record de São Paulo colocou no ar o programa que trazia o nome de que se apoderou o movimento, ou, antes, tenha sido o contrário. Surgida de maneira espontânea no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, por um grupo de garotos aficionados pela influência da música norte-americana e dos Beatles, as baladas singelas e românticas foram rapidamente captadas por barões da indústria, entre eles Carlos Imperial, que assina, com Eduardo Araújo, “Pra Nunca Mais Chorar”, lançada por Vanusa.

“Neste Mesmo Lugar” (samba-canção, 1956) – Armando Cavalcanti e Klécius Caldas
Transformada em prefixo musical de Luiz Gonzaga, a toada “Boiadeiro” foi composta em 1951 por um coronel do exército. Se hoje poucos reconhecem o nome de Klécius Caldas, na época em que suas músicas alcançaram o sucesso tampouco era diferente. Autor do samba-canção “Neste Mesmo Lugar”, lançado por Dorinha Freitas em 1956, e consagrado na voz de Dalva de Oliveira, Klécius Caldas foi um grande criador de hits dos anos 40 e 50, ao lado do parceiro Armando Cavalcanti, vizinho de edifício e colega de farda. A letra do samba-canção se detém sobre o término de um romance, e, de lambuja, cita Noel Rosa. “O mesmo garçom se aproxima…/ Parece que nada mudou…”. Vanusa regravou esse clássico da canção popular brasileira no ano de 1973.

“Caminhemos” (samba-canção, 1948) – Herivelto Martins
Atravessando na época um período conturbado de sua vida sentimental, o compositor Herivelto Martins extravasava em sua música os problemas que o afligiam. Assim, não foi por acaso que saíram, em sequência, músicas como “Segredo”, “Caminhemos”, “Cabelos Brancos” e, por fim, as composições que marcaram a polêmica separação da mulher, a cantora Dalva de Oliveira. Lançada em novembro de 1947, por Nelson Gonçalves, “Caminhemos” firmou-se na preferência popular do país após o Carnaval do ano seguinte. Ao regravar esse clássico da dor de cotovelo, em 1969, Vanusa apostou em um arranjo pop, e transformou o samba-canção em uma balada cheia de suingue.

“Mensagem” (samba, 1946) – Cícero Nunes e Aldo Cabral
Um imbatível sucesso de Isaurinha Garcia foi o samba “Mensagem”, de Aldo Cabral e Cícero Nunes, lançado em 1946. No enredo, a história de uma mulher que recebe do carteiro o alento de um antigo amor. “Quanta verdade tristonha, a mentira risonha, que uma carta nos traz, e assim pensando rasguei, tua carta e queimei, para não sofrer demais”, diziam os versos finais da canção, que poderiam servir de fundo para o atribulado romance entre a cantora e o pianista e organista Walter Wanderley na década de 1950. Vanusa, que também viveria romances tumultuados, regravou a canção em seu disco de estreia, em 1968. Na capa do LP, surgia no auge da juventude, de cabelo curto e vestido verde.

“Estradas e Bandeiras” (balada pop, 1982) – Vanusa e Daltony
O Brasil ainda vivia sob o domínio de uma ditadura militar quando Gal Costa tornou-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira. “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, era uma das faixas do icônico álbum “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor” – paradigma do movimento tropicalista – e trazia em seu refrão o trecho “tente entender tudo mais sobre o sexo”. Decorridas décadas e até séculos dos acontecimentos descritos, o prazer da mulher, especialmente aquele sexual, parece ainda ocupar o lugar de tabu na prateleira dos costumes, mas há quem insista em mudar o curso dessa história. Em “Estradas e Bandeiras”, parceria com Daltony lançada em 1982, Vanusa não poderia ser mais clara nos versos: “Vida, eu quero mais é sair da mesmice/ Correr em busca de novos ideais/ Soltar meu corpo na alegria/ E poder dizer/ Eu quero e devo muito/ Ser feliz demais!”, diz.

“Compasso” (balada, 2006) – Angela Ro Ro e Ricardo Mac Cord
Criado pelo educador Paulo Freire (1921-1997) na década de 70, o termo “empoderamento” voltou à baila nos anos 2000. De acordo com uma pesquisa do Google, o primeiro pico de buscas pela palavra aconteceu em junho de 2013, durante protestos que marcaram o Brasil. Em 2016, “empoderamento” ficou em primeiro lugar na lista das palavras mais procuradas. Na música brasileira, o empoderamento feminino não é novidade. Antes da expressão alcançar a fama atual, Rita Lee, Angela Ro Ro, Vanusa, Dona Ivone Lara e outras esbanjavam atitude e coragem. Em 2015, Zeca Baleiro uniu Ro Ro e Vanusa ao produzir o disco “Vanusa Santos Flores”, em que Vanusa regravava “Compasso”, música lançada por Ro Ro em 2006, feita com Ricardo Mac Cord.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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