Vander Lee recebe homenagens com Orquestra, disco de inéditas e shows

*por Raphael Vidigal

“Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
Ou o pressentimento ou a ânsia” Carlos Drummond de Andrade

No dia do aniversário de 55 anos de seu pai, Laura Catarina responde perguntas sobre ele, e agradece a oportunidade. A primeira vez que o repórter entrevistou Vander Lee foi para uma matéria a respeito de uma homenagem a Ataulfo Alves, que o sagaz autor de “Românticos” definiu em três palavras: “cultura matuta mineira”. Vander Lee morreu em 2016, vítima de um aneurisma no coração, mas na data em que comemoraria mais uma primavera, voltou a cantar. A música inédita “A Vida Não São Flores” foi resgatada de um baú de inéditas que começa a ser aberto ao longo desse ano de 2021. Feita em um gravador caseiro no formato voz e violão pelo próprio compositor, a música recebeu produção de Felipe Fantoni e orquestração de Enéas Xavier. Ao final, é possível ouvir a “canção nua” original. “Essa é apenas uma das dezenas de canções que ele deixou”, comenta o irmão Marcos Catarina, que também é músico e compositor.

Os versos, escritos há cerca de uma década, parecem se comunicar diretamente com os tempos atuais, o que comprova a perenidade de obra de Vander Lee: “A vida não são só flores, baby/ São dores também/ Pra toda delícia, há censura/ Pra toda entrada, há saída/ Pra toda razão, há loucura/ Pra todo peso, há medida”. “Essa é uma canção que me agrada muito. A princípio, pensamos em gravá-la, mas achamos melhor que a abertura desse baú fosse apresentada pelo próprio Vander Lee”, revela Marcos Catarina. O single é parte de um disco de inéditas que chega ao público ainda em 2021, e que contará com interpretações de Chico César, Zeca Baleiro, Maurício Tizumba, Paulinho Moska e outros artistas presentes no show de lançamento do DVD póstumo “Vander Lee: 20 Anos”, incluindo o irmão e os filhos do homenageado: Laura, Lucas e Clara. Outro álbum está previsto para o segundo semestre, e será feito pela filha Laura.

Conexão. Com alguma dificuldade, Laura Catarina elege “Sonhos e Pernas” como “a mais linda” do repertório do pai – que contém pérolas como “Esperando Aviões”, “Onde Deus Possa Me Ouvir” e “Estrela” –, e adianta que ela estará em “Canta Vander Lee”, nome, até aqui, provisório. “Selecionei um repertório que tenho muita identificação. Por enquanto, vou deixar o restante ser surpresa”, disfarça. “Não perca o resto do tempo que ainda te resta/ Não perca tempo pensando que a vida não presta/ Certas canções duram pouco, outras são eternas/ Por que carros e aviões, se tens sonhos e pernas”, diz o refrão. Mas houve um tempo em que Laura, ainda criança, “cantava tudo sem entender o verdadeiro sentido das letras”. “Esse projeto vai além de uma releitura, é muito profundo para mim cantar as músicas do meu pai. Me sinto mais próxima de sua história, me reconheço em sua poesia e cantar sua obra me engrandece enquanto intérprete”, diz. Laura estreou no mercado fonográfico em 2018, cantando 12 faixas em “Amor de Si”.

Além de dar voz à própria lavra, ela contemplou a clássica “Amor de Índio”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Agora, porém, ela admite que o desafio é outro. “É um pouco diferente de cantar músicas de outros autores, porque conheço um pouco mais sobre o autor, tenho uma conexão muito forte com meu pai, muitas de suas canções fizeram parte da minha vida intensamente. Pude perceber o quão intensa era essa conexão ao cantar suas músicas quando ele faleceu. A cada dia aprendo algo novo com esse trabalho. Me sinto em contato com um portal musical que nos liga eternamente”, sublinha. Tanto ela quanto os irmãos foram incentivados pelo pai a “seguir a direção que nos fazia felizes”. “O que ele fez foi dar o exemplo, ao fazer o que amava e ter persistência no sonho, construindo sua trajetória dia após dia. A música me escolheu ainda bem pequenina. Mal falava e já gostava de repetir tudo que ouvia nas rádios e na televisão, fazia apresentações com playback para minha família”, rememora ela.

Orquestra. Maestro da Orquestra Ouro Preto, Rodrigo Toffolo cultivava o desejo de dedicar um concerto a Vander Lee há mais de três anos. A hora de realizar chegou e marca uma estreia na vida da trupe. “Vem ao encontro de algo novo na nossa história, que é fazer um disco na íntegra, algo que sempre quisemos levar ao público”, conta Toffolo. Ele costuma brincar que possui uma lista com sete discos que o “marcaram profundamente”, e, entre eles, está “No Balanço do Balaio”, lançado por Vander Lee em 1999, tema da apresentação da orquestra agendada para abril, na abertura da série “Domingos Clássicos”. “Esse álbum é uma ode à Belo Horizonte e à mineiridade. Sempre me encantou”, elogia Toffolo, que pretende dar continuidade ao projeto de adaptar para a Orquestra Ouro Preto um disco da música brasileira na íntegra anualmente. A ideia é receber um público reduzido no Sesc Palladium e transmitir o espetáculo nas redes sociais.

“Vander Lee tem um fã-clube espalhado pelo Brasil todo”, aponta o regente. Marcos Catarina e Laura foram chamados para cantar. “A questão familiar toca todo mundo, é uma homenagem muito bonita, vamos saudar o Vander Lee de corpo e alma”, sustenta Toffolo. Os arranjos ficaram a cargo de Marcelo Ramos. “O disco ‘No Balanço do Balaio’ tem uma diversidade rítmica enorme, cada faixa é muito especial e o Marcelo tem trabalhado com a ousadia e versatilidade que só a Orquestra Ouro Preto é capaz de proporcionar”, ressalta. Fã de carteirinha de Vander Lee, o maestro não teve a sorte de conhecer o músico pessoalmente, apenas da plateia. E foi de lá que se deparou com “Românticos”, a música mais emblemática do referido álbum. “O compositor toma decisões sobre harmonia e melodia, e, nessa canção, Vander Lee tomou as melhores decisões possíveis. A música tem uma singeleza que fala por si, é a beleza em seu estado mais puro”.

Romântico. Saulo Laranjeira ficou tão emocionado que não segurou as lágrimas quando Vander Lee cantou “Românticos” em “Arrumação”, programa que ele comanda desde 1987 na televisão. A canção foi ganhando uma dimensão que, aos poucos, alçou Vander Lee ao estrelato. “Ele ainda não era muito conhecido e durante um tempo a canção ficou mais conhecida do que ele. Anos depois é que ele vem a ficar mais conhecido, tendo ‘Românticos’ como carro-chefe”, conta Marcos Catarina. Na opinião do irmão, o segredo do sucesso da música está na simplicidade e no poder de identificação, “sobretudo com a Belo Horizonte dos anos 90, aquele universo dos bares e do amor romântico, dos relacionamentos que nascem na poesia da rua, nas calçadas e nos espaços públicos”. “Belo Horizonte ainda tem muito isso, é uma canção que faz muito sucesso em Minas”. Mineiro da capital, Vander Lee foi criado na periferia da cidade, em Olho D’Água.

Antes de investir na música, trabalhou como office-boy, gandula e goleiro no Atlético Mineiro, seu clube de coração, que, aliás, inspirou a divertida “Galo e Cruzeiro”, onde ele aborda um relacionamento afetivo sob a ótica do futebol: “Ela finge que não/ Mas no seu coração/ Ainda sou artilheiro/ Só faz isso porque, meu irmão/ Eu sou Galo e ela é Cruzeiro”. Posteriormente, Vander Lee obteve a honra de ser gravado por Maria Bethânia, Elza Soares, Daniela Mercury, Cida Moreira e Mariene de Castro, “intérpretes que, por si só, cristalizaram a obra dele no mais alto pedestal da música brasileira”, celebra Marcos Catarina. Em 2014, Vander Lee fundou o “Baile dos Românticos”, atração das terças-feiras de Carnaval em que convidava amigos ao palco. Desde que partiu, a iniciativa passou a ser levada adiante por Marcos. A quinta edição acontece nesta sexta (5), às 20h, com público reduzido no Maria das Tranças e transmissão via YouTube e Facebook. Dimas Martins e Lucas Rasta, filho de Vander Lee, serão convidados.

Legado. Uma equipe de TV de Nova Lima vai filmar o espetáculo na Pampulha. “O maior objetivo do ‘Baile dos Românticos’ neste ano é a transmissão ao vivo, a música do Vander Lee alcança o Brasil inteiro e chega até a outros países”, comemora Marcos. Ele destaca que as devidas precauções foram tomadas, inclusive com mecanismos de isolamento entre palco e plateia. “Para quem perde um familiar tão íntimo e um irmão que era, acima de tudo, meu amigo, é muito reconfortante poder resgatar essa afeição através da obra, é uma forma de ele continuar vivo e próximo da gente”, garante. Músico e compositor, Marcos se vê como um agente em missão dupla, com a tarefa de se desdobrar entre mostrar o próprio trabalho e guardar a memória artística do irmão. “Eu contribuo para isso. O público do Vander Lee é muito afetivo e fiel. Pela força da poesia, o legado dele sobreviverá ao cancioneiro brasileiro, como o de Noel Rosa”, avalia.

O “Poeta da Vila” é um dos exemplos de músicos que partiram cedo, mas gravaram seus nomes na historiografia da música popular, como Dolores Duran, Cazuza, Sidney Miller, Maysa, Taiguara, Gonzaguinha, dentre outros. Laura Catarina compartilha da visão do tio. “Meu pai deixou sua autenticidade eternizada nas canções. Por onde sua música passa, corações se inebriam de inspiração, romance, sinceridade e verdade. Suas letras revelam sentimentos universais, que fazem com que várias pessoas, de todas as idades, se sintam tocadas por sua mensagem, carinhosa e original, pela voz maravilhosa, o canto firme e terno”, afiança. “Sua poesia é muito bela e profunda, e suas composições contêm muita sabedoria espiritual, inspiração de amor, de humor, de leveza e de ancestralidade. A musicalidade original é muito marcante, suas músicas trazem mensagens para todas as gerações. Vander Lee compôs obras atemporais que ainda farão parte da vida de tantos e tantas, pelo mundo afora”, finaliza a filha.

Foto: Fundação Padre Anchieta/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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