Um grande sertão em Guimarães Rosa e em Guel Arraes: impressões de leitura

*por Fábio Brasileiro
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O bom leitor, tradutor, intérprete e crítico literário é aquele que se empenha em parceria do escritor na tarefa social, educativa, de tornar sua história compreendida pelos diferentes públicos de um país, de uma região, do planeta. A ‘licença poética’ é bem-vinda quando empregada nessa missão humana de elevação do nível intelectual de um povo, de uma sociedade, a partir das possíveis interpretações e releituras de uma obra de arte. Nesse sentido, o leitor, o crítico ou o tradutor ajudam o escritor na compreensão de sua obra, alargando suas fronteiras e possibilidades de interpretações, de suas visões de mundo, isto é!, se sua visão-de-mundo também se puser num caminho permeado pelo diálogo, sempre amoroso, empático, responsável.
 
No 29 de junho de 2024 fui ao cinema em companhia do amigo Celso Adolfo assistir a versão de Guel Arraes feita para Grande Sertão : Veredas, de Guimarães Rosa, em Belo Horizonte. O filme é um vislumbre de um possível futuro à trama jagunça que o romance desvela. A produção fílmica é formidável, bem-acabada, belos diálogos e cenas grandiosas que nos fazem pensar o romance nessas possibilidades de futuros, atualizações da temática.  
 
A quem também leu Os Sertões de Euclides da Cunha, livro em três atos ou três grandes painéis da brasilidade – a terra, o homem e a guerra –; ou que tenha lido a poesia de João Cabral de Melo Neto e suas histórias sobre retirantes; ou que conheça os retirantes na pintura de Cândido Portinari; ou mesmo tenha assistido a versão teatral de Pedro Paulo Cava de Morte e Vida Severina; conhece bem esse tema das migrações internas brasileiras (do sertão para o litoral, do Nordeste para o Sudeste, da roça para a cidade, etc.) e não tem como escapar às comparações entre essas referências e a obra de Guel Arraes. Dessa tríade euclidiana o filme assumiu, porém, o tema da guerra somente. Nem os oásis entre chapadas e veredas dos amplos gerais ou a poesia que há nas ‘belezas sem dono’ nos olhos verdes de Diadorim aparecem no filme. Tudo é guerra, disputa, conflito.
 
O filme começa com uma cena externa ampla, panorâmica, aérea, onde a imagem que temos é de um lugar típico do semiárido brasileiro, do agreste no interior da caatinga nordestina: sem vegetação, sem água, sem animais, onde vida alguma há e um solo seco rachado pelas marcas da última chuva se estende até onde se ergue – como nos tempos dos castelos medievais ou dos presídios de segurança máxima – um enorme e alto paredão de concreto, uma muralha que circunda e isola toda a favela, separando-a do seu entorno. A favela é um enclave e um muro alto separa o agreste e rural (nordestino?) do urbano e periférico (carioca?). Em Euclides, Cabral ou Portinari temos retratos desses êxodos nordestinos e certamente falam de algo que em Guel Arraes é biográfico, afinal o cineasta é pernambucano. Sabemos que aqueles que sobreviveram ao extermínio de Canudos no final do século XIX, época em que se erguia a cidade de Belo Horizonte, foram dar origens às primeiras favelas cariocas, a exemplo do Morro do Castelo, que existiu no Rio de Janeiro até 1922 e que na época de Machado de Assis (em Esaú e Jacó) ou de Lima Barreto (As Aventuras nos Subterrâneos do Morro do Castelo) por volta de 1904, já era uma favela.
 
Na favela do futuro de Guel Arraes, Joca Ramiro e Diadorim lideram uma facção de traficantes em disputa pelo controle territorial e da economia do que parece ser cocaína, vendida em sacos plásticos com uma estrela amarela de símbolo no rótulo. A mesma estrela tatuada na nuca de Diadorim. A guerra se dá de modo bipolar, maniqueísta: de um lado estão as forças policiais que fazem pelo Estado a segurança pública e, do outro, temos a facção de traficantes que dominam o lugar onde Riobaldo, quando era professor, dava aulas às crianças da comunidade. Toda trama acontece em dois espaços: a favela fortificada e o batalhão, onde Zé Bebelo organiza seu exército de policiais. Do mesmo modo, a história é contada em dois tempos sincrônicos (como acontece no romance): o tempo do narrado está contido no tempo da narrativa das memórias de Riobaldo, e as histórias ele narra muito tempo depois dos conflitos acontecidos nos quais re-conheceu Diadorim ferido, em fuga de um embate.


 
No romance rosiano os jagunços são de grupos diferentes e nem sempre atuantes nos mesmos bandos ou unidos em torno das mesmas razões, e as forças policiais que invadem para guerrear o sertão em busca de expandir a fronteira agrícola brasileira muitas vezes até mesmo elas estão em discordância e litígio aos objetivos do Estado no controle daquela porção geográfica limitada entre Minas Gerais, Bahia e Goiás, já que alguns pretendiam ali estabelecer o Estado dos Gerais, o Estado do Norte. A questão separatista, das fronteiras internas brasileiras e de Minas Gerais, é tema do romance e os conflitos nele são multipolarizados (menos binários como se dá no filme) onde o bem ou o mal podem estar em todos os polos em divergentes perspectivas e proporções. Até os tempos atuais ainda encontramos no Sul do país ou no Pará esses movimentos internos separatistas emergindo à superfície das relações políticas e econômicas nacionais. O Brasil como país é um continente!
 
A versão fílmica de Guel Arraes faz de Zé Bebelo (um dos líderes jagunços no romance) o líder da polícia que chega na favela para impor a ordem do Estado e, ao mesmo tempo, ele faz dessa condição o mote para aglutinar apoios para se lançar candidato na política. Esse Zé Bebelo não luta contra o Estado como lemos no romance acontecer. Dele e de seu batalhão de soldados, sua tropa, temos imagens e cenas propostas por Guel Arraes que evocam qualquer coisa de um futurismo que re-conhecemos em Fahrenheit 451, romance distópico de Ray Bradburye que ganhou sua versão fílmica em 1966 por Ramin Bahrani, ou ainda, no filme Tropa de Elite de José Padilha, por causa de sua vontade de entrar para a política pela exploração de conflitos em favelas e periferias, nos territórios dominados pelo narcotráfico, pelas as milícias, pelo pentecostalismo ou pelo jogo de bicho.
 
Os olhos verdes o Diadorim só os têm em sua fase criança, quando do primeiro encontro com Riobaldo (personagem interpretado por Caio Blat). No segundo encontro, dentro da sala de aula onde Riobaldo já é adulto e professor, Diadorim tem olhos castanhos escuros como são os olhos de Luíza Arraes no real, a atriz que faz o personagem no filme dirigido pelo pai. Mesmo disfarçada de homem, na cena em que Riobaldo está em cima de Diadorim, podemos ver as silhuetas dos seios de Luísa por debaixo da camisa preta, já denunciando sua condição feminina.
 
Na versão de 1963 de Grande Sertão : Veredas, de Geraldo Santos Pereira, sabemos que Diadorim é um disfarce masculino de uma mulher (Deodorina) que entra para a guerra ao lado do pai – não por causa de sua morte como é no romance – mas pela tentativa de um estupro quando ela vai se banhar num rio e, na versão de Guel Arraes, a revelação é propiciada por uma meretriz, Nhorinhá (com quem Riobaldo se enamora), que se enamora de Diadorim, e assim ficamos sabendo que Diadorim, como mulher, namora mulheres também. Ambas as versões desconsideram em termos de crítica e criação romanesca aquilo que foi expresso como intenção nas formas de leitura do livro em torno de Diadorim, seja pelo autor, seja pelo narrador-protagonista. No livro, quem descobre o gênero de Diadorim, já morta, é a esposa do Hermógenes, o algoz da ‘donzela guerreira”.
 
O livro Grande Sertão : Veredas, publicado em 1956, foi originalmente pensado para ser uma das novelas de Corpo de Baile e, no seu desenvolvimento, acabou ganhando tamanho mais robusto e independência em relação ao projeto inicial de ser também uma novela. As estórias pensadas para integrar Corpo de Baile, hoje em número de 7, mantém entre si em termos de conteúdo e forma uma série de relações que cabe ao leitor, desafiado pelo escritor, seguir os seus rastros até alcançar por completo o entendimento de suas tramas e inter-ligações. Por exemplo, em ‘Uma Estória de Amor’ durante a Festa de Manuelzão, publicada no livro Manuelzão e Miguilim, uma das anedotas re-contadas por Joana Xaviel dá uma dessas pistas que une as estórias. Durante a festa Joana descreve a estória de um Príncipe que tinha ido guerrear gente ruim, três longes da porta de sua casa, e fora ficando gostando de outro guerreiro, Dom Varão, que era uma moça vestida disfarçada de homem. Mas Dom Varão tinha olhos pretos, com pestanas muito completas, o coração do Príncipe não se errava, ele nem podia mais prestar atenção em outra nenhuma coisa. Vai daí, foi perguntar ao Pai e à Mãe dele, suplicar conselhos: – “Pai, ô minha Mãe, ô! Estou passado de amor… Os olhos de Dom Varão é de mulher, de homem não!”. A Rainha ensinava ao filho seguidos três estratagemas, astúcia por fazer Dom Varão esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia esse final, o Príncipe e a Moça se casavam, nessas glórias, tudo dava acerto. 


 
Das mulheres sabidas mulheres por Riobaldo e com as quais ele se envolve, além de Nhorinhá, no filme também aparece Otacília, que protagoniza a história de uma mãe de comunidade que tem sua filha morta por bala perdida durante um dos confrontos entre a polícia e traficantes. Pelas falas e diálogos, pela trilha sonora do momento, a quem viu e tri-leu Morte e Vida Severina, as cenas nos despertam reminiscências da primeira versão musical, da trilha sonora, feita para o Grupo Triângulo por Chico Buarque na montagem do poema de Cabral. É um ponto alto do filme em termos de composição de cena e fotografia, já que no longo poema longo de Cabral muitos são os enterros daqueles que morrem por morte morrida e por morte matada (como no caso do filme), e ficamos com a sugestão de que Guel trouxe para dentro do filme todas essas muitas vozes e temas da prosa e da poesia modernista, sobretudo nordestina.  
 
Que o futuro do sertão no real e no romance – onde se tem vaqueiros, fazendeiros, jagunços, policiais e governos – seja a favela e a pobreza como possibilidades é uma possibilidade dentre outras tantas, e é muito interessante esse exercício projetivo, futurista, de pensar e imaginar o Brasil, desde que não haja determinismos à moda de um Nina Rodrigues. O romance em si já é um tipo de projeção em relação ao real, a matéria movente de que ele se serve para ser ficção. Do ponto de vista do real e da história nacional, aquele sertão de que falou o livro Grande Sertão : Veredas suas personagens não terminaram nas periferias das cidades, como se deu com os sobreviventes de Canudos, nem em termos de deslocamentos territoriais e nem do ponto de vista da luta de classes. Muitos dos fazendeiros, em termos de real, estão por exemplo no Congresso Nacional, na Faria Lima ou no Mato Grosso do Sul, e talvez tenham ficado mais ricos do que eram seus antepassados. Na versão fílmica de Arraes Joca Ramiro, fazendeiro no romance, se torna líder do tráfico na favela do futuro. Soa distopia, determinismo iluminista que, embora fale de futuro, a perspectiva parece se alinhar a um futuro de um pretérito cartesiano típico do século XIX que fomentou as visões de Euclides da Cunha sobre a força do sertanejo, sobre o êxodo rural e sobre muitos dos deslocamentos humanos pelo Brasil adentro.
 
O Grande Sertão : Veredas que antecedeu em meio século ao filme Os Segredos de Brokeback Mountain em termos de tematizar o amor entre dois jagunços homens, sertanejos, propunha – ainda que no literário – um ideal de república brasileira. Na versão de Guel, o diretor desvela um Diadorim descoberto mulher lésbica e/ou bissexual, dialogando mais com essa tradição do identitarismo contemporâneo da pós-modernidade que diz do personagem ser um homem transexual, uma visão em face dos compromissos que alguns insistem em impor entre arte e política, ideologia, estabelecidos como modelo interpretativo da ficção literária, muitas vezes desconsiderando a obra, o autor, sob razões da ‘licença poética’, ou pelas visões do que seria uma ‘arte engajada’.
 
É curiosa a leitura que nasce da crítica literária e da tradução entre linguagens artísticas que não se atenta ao fato de ser o romance um longo monólogo polifônico, já que a única pessoa que fala no livro é o Riobaldo e as falas das demais personagens se aparecem sempre estão espelhadas nas falas do protagonista de cabo a rabo, que re-conta suas lembranças a um interlocutor em seu senil tempo de ‘range-rede’. E o leitor pode ou não acreditar no que lhe diz o narrador. No romance tudo é sobre Riobaldo. Situação que é análoga por exemplo a Dom Casmurro de Machado de Assis, afinal, no romance carioca só Bentinho é quem fala, e tudo ali é sobre ele. A dúvida parece presidir no conteúdo e na forma dois dos principais romances da literatura brasileira e, curiosamente, quem lê as duas histórias não se atém aos narradores (postos em observação e à apreciação dos leitores como se estivessem num divã freudiano), sempre querendo responder às dúvidas que eles fazem nascer, numa fina ironia, plantadas na curiosidade do leitor. Capitu traiu Bentinho? Nunca saberemos…

*Fábio Brasileiro é professor de geografia e literatura brasileira, viajante, crítico literário, cineclubista, músico, poeta, ceramista, produtor cultural e cozinheiro. Leitor de Guimarães Rosa desde 1995. Leu o Grande Sertão : Veredas por 14 vezes. Mantém em Belo Horizonte desde 2017 um Ponto de Cultura, a Fuá de Quintal.

Foto: Helena Barreto/Divulgação  

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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