*por Raphael Vidigal Aroeira
“Não faço a menor questão de fazer sentido. Basta o meu amor redivivo.” Torquato Neto
Muita gente não entende ainda que a canção “Cajuína” é uma homenagem do poeta Caetano Veloso a outro poeta, Torquato Neto, natural de Teresina, no Piauí, morto aos 28 anos, na capital Rio de Janeiro, um dia após aniversariar, por suicídio. Poeta porque Caetano Veloso, em especial nessa música, exprime uma veia lírica e doída, dessas que sangram indolentemente.
Indomável era o espírito de Torquato, autor de versos como “qualquer palavra é um gesto/e em sua orla/os pássaros de sempre cantam/nos hospícios”; “eu sou como eu sou/vidente/e vivo tranquilamente/todas as horas do fim”; “há urubus no telhado e a carne seca/é servida: um escorpião/encravado/na sua própria ferida/não escapa/só escapo pela porta da saída”.
Era o poeta marginal, o poeta concreto, o poeta novo, cinematográfico. Atuou em filme (“Nosferatu no Brasil”), de assistente (em “Barravento”), como jornalista. Torquato foi peça importante no movimento que desestruturou pilares na arte e na política, a Tropicália, e não se esquivava de criticar em carta a Hélio Oiticica, o principal nome das artes plásticas naquele cenário, o também poeta Capinam, por considerá-lo “mesquinho”. Como letrista afiado, legou às gerações seguintes canções repetidas frequentemente com Caetano, Gil, Edu Lobo, João Bosco, Jards Macalé, Luiz Melodia, entre outros. Torquato não era fácil. Mas ágil, e ácido.
“Veleiro” (canção, 1966) – Edu Lobo e Torquato Neto
A carioca Silvia Machete, que gravou um CD e DVD com homenagem a Eduardo Dussek (“Dussek Veste Machete”), também se sente “envolvida” pelo estilo tropicalista. “Me considero uma tropicalista do milênio, acho que a gente segue nessa onda de fazer o que quiser. Viva Chacrinha! Tem tanta coisa, desde a poesia do Torquato Neto até a sexualidade da Gal (Costa). Foi um momento que o Brasil estava se descobrindo e revelando sonoridades”, exalta. Em 1966, ainda antes da explosão do movimento capitaneado por Caetano, Gil, Hélio Oiticica, Tom Zé, Rogério Duarte, Capinam, e outros, Elis Regina gravou “Veleiro”, delicada canção da profícua parceria de Torquato e Edu Lobo.
“Pra Dizer Adeus” (canção, 1966) – Edu Lobo e Torquato Neto
Eduardo de Góes Lobo, mais conhecido como Edu Lobo, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 29 de agosto de 1943. Filho do compositor Fernando Lobo, ele começou a carreira tocando sanfona, mas logo passou para o violão e se tornou um dos principais representantes da nova fase da bossa nova. Ao longo da trajetória, Edu Lobo compôs com Chico Buarque, Ruy Guerra, Vinicius de Moraes, Paulo César Pinheiro, Ronaldo Bastos, Gianfrancesco Guarnieri, e teve suas músicas gravadas por Elis Regina, Maria Bethânia, Marília Medalha. Em 1966, Elis lançou “Pra Dizer Adeus”, a parceria de Edu com Torquato Neto.
“Vento de Maio” (canção, 1966) – Gilberto Gil e Torquato Neto
“Nara era muito mais do que a menina da bossa nova, do joelhinho bonito e da voz doce que tinha o apartamento do pai em Copacabana. Era uma mulher de vanguarda sem fazer barulho. Cacá Diegues diz que ela conseguia transgredir sem precisar de gestos chamativos ou grandes polêmicas. A maior transgressão dela foi como artista, gestando movimentos musicais e sendo decisiva para a criação deles, mas nunca se deixou engessar, por isso era uma artista tão singular”, detalha o biógrafo Tom Cardoso. Em 1967, Nara gravou “Vento de Maio”, de Gil e Torquato Neto, lançada por Wilson Simonal em 1966.
“Louvação” (canção, 1967) – Gilberto Gil e Torquato Neto
“Um poeta não se faz com versos. (…) Quem não se arrisca não pode berrar. (…) Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”, escreveu Torquato Neto em “Pessoal Intransferível”. Essa inquietação traduzida em versos motivou Eduardo Ades e Marcus Fernando a filmarem o documentário “Todas as Horas do Fim”, com depoimentos de parceiros célebres de Torquato, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, com quem ele compôs “Louvação”, lançada em 1967 e regravada por gente da tarimba de Elis Regina, Jair Rodrigues, Ney Matogrosso e outros.
“Mamãe Coragem” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome, no cinema por Glauber Rocha e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do cinema novo e do teatro oficina e de arena. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento por qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades no sul do país.
“Geleia Geral” (tropicalista, 1968) – Gilberto Gil e Torquato Neto
Para o poeta Torquato Neto (1944 – 1972) não havia limite entre vida e poesia e, muito menos, entre a poesia e outras formas artísticas. Lançado de forma independente, o álbum “Um Poeta Desfolha a Bandeira e a Manhã Tropical se Inicia” (1985), que traz um dos versos mais famosos de Torquato como título reúne canções que ele compôs com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e Jards Macalé, interpretadas por Elis Regina, Jair Rodrigues, Nara Leão e Gal Costa, além dos parceiros citados. “Geleia Geral” é um dos grandes destaques.
“Ai de Mim, Copacabana” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
Conta-se, à boca grande, que Rubem Braga reuniu os amigos – Moacyr Werneck de Castro, Otto Lara Resende e Edvaldo Pacote – em sua cobertura, no dia 17 de dezembro de 1990, dois dias antes de morrer, para beber uísque e trocar amenidades. Era a tácita despedida, que ocorreria num quarto de hospital solitário, vitimado por tumor na laringe que preferiu não tratar. Os mais próximos compreenderam. Sobre o estilo característico do autor de “Ai de Ti, Copacabana”, vertida por Torquato Neto em “Ai de Mim, Copacabana”, na canção tropicalista cantada por Caetano Veloso em 1968, Leusa Araújo reitera a mestria do autor em “escrever verdades universais como se fossem coisas passageiras e sem importância”.
“Marginália II” (tropicalista, 1968) – Gilberto Gil e Torquato Neto
Embora jamais tenha publicado um livro em vida, o autor piauiense, Torquato Neto, passou à eternidade reconhecido como um poeta. Para ele, o importante é que a poesia estivesse no dia a dia das pessoas, tanto que se dedicou a escrever versos para canções populares, como “Geleia Geral”, parceria com Gilberto Gil. Segundo álbum de estúdio de Gilberto Gil, o disco de 1968 foi escolhido pela revista Rolling Stone Brasil um dos 100 melhores da música brasileira de todos os tempos, no ano de 2007. Gravado com a participação de Os Mutantes, o trabalho apresenta a faixa “Domingo no Parque” e parcerias de Gil com o poeta Torquato Neto, caso de “Marginália II”, que alcançou destaque.
“Deus Vos Salve Esta Casa Santa” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
Em um de seus últimos ensaios o artista plástico Hélio Oiticica (1937 – 1980) chegou a uma conclusão reveladora: “Descobri q o q faço é MÚSICA, e que MÚSICA não é ‘uma das artes’, mas a síntese da consequência da descoberta do corpo”, escreveu o inventor do parangolé, que foi também responsável pela criação do monumento artístico que nomeou a Tropicália. Além de participar do disco “Tropicália Ou Panis et Circensis”, Nara Leão lançou, no mesmo ano, outro álbum dedicado ao estilo, em que cantava músicas de Caetano Veloso e Torquato Neto, como “Lindonéia”, “Mamãe Coragem” e a dramática “Deus Vos Salve Esta Terra Santa”, ultrapassando o título de musa da bossa nova.
“Let’s Play That” (vanguarda, 1972) – Jards Macalé e Torquato Neto
Essa é uma canção-símbolo do experimentalismo de Jards Macalé, em que o músico distorce imagens e fonemas a partir da letra do poeta Torquato Neto. A mistura de linguagens se dá no campo verbal, com expressões em inglês e português, e, sobretudo, pela metáfora da liberdade. “O Poema de Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade é o ponto de partida da parábola de “Let´s Play That”, e a banda não poupa esforços. Lançada originalmente no LP de 1972, em que Macalé atuou ao lado de Lanny Gordin e Tutty Moreno, ela foi revivida em 1983, quando batizou o álbum dividido com o percussionista Naná Vasconcelos.
“Sem Essa, Aranha!” (rock, 1972) – Torquato Neto e Carlos Galvão
Oscarito é Oscarito, Grande Otelo é Grande Otelo, Al Pacino é Al Pacino e Ronald Golias é Ronald Golias, independente do papel que eles representem. Assim foi com Jorge Loredo, refém e cúmplice de seu Zé Bonitinho. Não há como dissociar a imagem do ator de sua mais aclamada personagem. Loredo participou de filmes no auge das companhias Atlântida e Vera Cruz, representantes da chanchada no Brasil, e inclusive estrelou “Sem essa, Aranha!”, protagonista com nome no título. Dirigido por Rogério Sganzerla, o filme tornou-se símbolo de cult no Brasil, e foi mencionado nos versos de “Qualquer Coisa”, de Caetano Veloso, além de inspirar a canção homônima de Torquato Neto e Carlos Galvão, lançada pela roqueira Lena Rios em 1972, que, na capa desse cultuado álbum, mimetizava as expressões de Janis Joplin.
“Três da Madrugada” (canção, 1973) – Torquato Neto e Carlos Pinto
“Então, otários, o Carnaval passou. Estão satisfeitos?”. Assim começa uma das edições de “Geleia Geral”, coluna assinada por Torquato Neto (1944 – 1972) no jornal diário “Última Hora”, em 1971. O poeta, nascido em Teresina, cometeu suicídio um dia após o seu 28º aniversário, e foi um dos artífices da Tropicália. Em 1973, no ano seguinte à morte de Torquato, Gal Costa colocou voz em “Três da Madrugada”, com versos do poeta e melodia de Carlos Pinto, no disco “Os Últimos Dias de Paupéria”. Gal voltou à canção em outras homenagens a Torquato, como “Um Poeta Desfolha a Bandeira e a Manhã Tropical Se Inicia”.
“Go Back” (reggae, 1988) – Torquato Neto e Sérgio Britto
“Sempre tive um culto pela figura revolucionária e multifacetada do Torquato. Numa viagem que fiz a Teresina há três anos conheci o primo dele, George Mendes, que guarda o acervo completo do Torquato. Com fotografias, letras de músicas, colunas de jornal, revistas, desenhos, pinturas, tudo bem-cuidado. Fiquei contaminado por esse amor”, assegura o poeta Marcelino Freire. Tal encantamento também tomou o titã Sérgio Britto, que, em 1988, musicou versos de “Go Back”, transformada em reggae e lançada pelos Titãs. A música se transformou em sucesso imediato e foi regravada pelos grupos Paralamas do Sucesso, Só Pra Contrariar e LS Jack, além da cantora Patrícia Marx.
“Começar Pelo Recomeço” (bolero, 1997) – Luiz Melodia e Torquato Neto
Filho do sambista Oswaldo Melodia, de quem herdou o sobrenome artístico e gravou o choro “Maura”, o garoto do Estácio, Luiz Melodia, teve no poeta Torquato Neto (1944-1972) um de seus “descobridores”, assim como em Wally Salomão (1943-2003), idealizador do icônico espetáculo “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor”. O caldeirão de referências musicais culminou no batismo de seu único filho, o rapper Mahal, segundo Vaz uma homenagem ao pianista de blues Taj Mahal. Em 1997, Luiz Melodia devolveu a recompensa a um dos padrinhos artísticos ao colocar melodia em versos de Torquato e gravar “Começar Pelo Recomeço”, em clima de bolero, para o cultuado álbum “14 Quilates”. Uma joia.
“Cantiga” (samba-canção, 1998) – Gilberto Gil e Torquato Neto
A música “Resposta ao Tempo” concentra uma poesia altamente existencial e reflexiva de Aldir Blanc, aliada à melodia sofisticada de Cristóvão Bastos e à voz de mormaço de Nana Caymmi. Esse conjunto, por si só, a justifica como obra-prima. Não bastasse isso, essa típica peça de bossa nova, tema de abertura da minissérie “Hilda Furacão” em 1998, tem como tema o “tempo”, um dos mais misteriosos ao ser humano, senão o principal responsável por suas dúvidas, esperanças e medos. No mesmo disco em que gravou a pérola, Nana deu voz ao samba-canção “Cantiga”, parceria póstuma de Gil e Torquato Neto.
“Dente no Dente” (tropicalista, 1998) – Jards Macalé e Torquato Neto
Amigos que se partiram continuam inquebrantáveis na memória de Jards Macalé, personificando materialmente alguns deles à sua frente. Poeta que suicidou, Torquato Neto é um: “Vejo na minha frente. Os gestos, aquela mão meio mole. O timbre da voz”. A abrangência da perspectiva tropicalista de Hélio Oiticica, cujo verso ‘o q faço é música’ batizou disco de 1998, lançado por Jards Macalé, pode ser percebida na miscelânea e pluralidade de discos emblemáticos do movimento que, há 50 anos, balançou as estruturas da música brasileira. Naquele disco de Macalé, constava “Dente no Dente”, poema de Torquato musicado por ele, que também compôs, com seu amigo, “Destino”.
“Destino” (samba-canção, 1998) – Jards Macalé e Torquato Neto
Antes de lançar seu primeiro CD de inéditas em 20 anos – o último era “O Q Faço É Música” (1998) – Jards Macalé teve outra oportunidade de ser redescoberto pelas gerações mais novas. Através do selo Discobertas, Marcelo Fróes compilou, em um box, quatro discos com gravações do músico em cima do palco (ou quase), justamente batizado como “Jards Macalé: Ao Vivo!”. A exceção fica por conta de “Let’s Play That”, registro em estúdio na companhia de Naná Vasconcelos (1944-2016), ao estilo de uma “jam session” e lançado originalmente em 1994. “Destino”, parceria com Torquato Neto, está nesse baú.
“Cogito” (MPB, 2014) – Torquato Neto e Rogério Skylab
No disco “Melancolia e Carnaval”, de 2014, Rogério Skylab estreia parceria com Torquato Neto, morto em 1972, ao musicar um de seus famosos poemas, “Cogito”, e realizar um dueto com Jards Macalé. “Foi Jards quem me iniciou em Torquato Neto, esse sim um tropicalista. Caetano Veloso chega a chamá-lo de ‘tropicalista ortodoxo’. E foi Macalé quem mais cantou Torquato. O seu suicídio é um enigma simbólico. O meu mergulho na MPB é radical. Por que tudo isso que te falei, samba, bossa nova, tropicália e pós-tropicália, é o fundamento da MPB”, considera Skylab.
“Quero Viver” (frevo, 2015) – Torquato Neto e Chico César
Chico César criou, em 2015, melodia para uma letra do poeta Torquato Neto (1944-1972). “Torquato é um ídolo que admiro desde a infância, foi uma oportunidade única que me chegou às mãos em um tributo que fizeram a ele, em que participaram Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Embora ele tenha se suicidado, a poesia do Torquato reivindica a vida, e a música é isso. Ela é tudo o que eu quero dizer, tanto que se chama ‘Quero Viver’. É essa a minha bandeira”, hasteia o compositor paraibano do eterno hit “À Primeira Vista”.
“O Poeta Nasce Feito” (MPB, 2017) – Torquato Neto e Joyce Moreno
A compositora Joyce Moreno, que foi amiga do poeta e o conheceu num encontro em que também estavam Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, tornou-se parceira póstuma de Torquato. “Por conta do documentário ‘Todas as Horas do Fim’, os diretores descobriram uma anotação na casa da família dele, em Teresina, onde ele dizia que queria fazer uma música comigo”, conta Joyce. “O Poeta Nasce Feito”, fruto da união entre os versos de Torquato e a melodia de Joyce, é uma das faixas do disco da cantora de 2017, “Palavra e Som”. “No canto esquerdo do riso?/ No lado torto da gente? Talvez/ O que mais forte preciso/ Não sei sequer se é urgente”, diz a letra.
Foto: Acervo pessoal/Divulgação.