“o coração está como que varrido” Tchékhov
A decadência é uma ampola dúbia na visão do dramaturgo russo Anton Tchékhov, cuja peça “Tio Vânia” foi adaptada pela mais famosa companhia teatral de Minas Gerais, o Grupo Galpão. Com direção de Yara de Novaes, o enredo destrincha os êxodos no plano imaterial que levaram os habitantes de um casebre – caindo aos pedaços – ambientado na zona rural do século XIX, a enterrarem-se num espaço de adequação. É essa mesma estagnação prontificada por decadentes vidas que levará os corpos dessas almas a se chocarem.
De início, um silêncio incômodo leva os espectadores a se questionarem sobre a realização. A luz na cara afere a nudeza, auxiliada por uma esquálida árvore negra que serve de cenário, e nos confronta com uma intrigante característica da condição humana. Se o barulho e a escuridão escondem o podre de legumes e frutas, o mesmo se dá aos animais. E as vespas logo se animam ao induzirem a putrefação da carne. Revelar que ali habita um coração cardíaco, veias entupidas e o amolecimento dos ossos, só em raros momentos de silêncio e luz.
O subtítulo inventado pela companhia, “Aos Que Vierem Depois De Nós”, repete o jogo sublinhado demasiadamente em cena. Se não existe salvação para o presente, para nós mesmos, somente um desejo altruísta de legar ao próximo uma melhor moradia poderá nos salvar da total devastação exterior e interna. A referência ao plantio de árvores, a ambições literárias e cultivo da terra, disfarça a egoísta espera de reconhecimento e retribuição, contida no âmago de cada atividade. Quando ele não vem, abandona-se o trabalho, o amor e os sonhos. No entanto, nada está posto, definido e circundado por uma bola de fogo da qual não se escapa salvo alguns enganos.
Antonio Edson interpreta Tio Vânia com todo o enjoo e exagero do protagonista. Arildo de Barros expõe a velhice em sua face intransigente e amarga. Eduardo Moreira compõe, com Fernanda Vianna, o casal onde se joga certo intuito, menos alarmante que o som de uma gaita abafada, mas que está lá, sob a chuva, e tilinta. Paulo André nos livra de imaginar que a ingenuidade esteja imune ao sofrimento. Teuda Bara propicia o riso, para que o cérebro se alague após instantes. E Mariana Lima Muniz, encurvada, é toda hesitação diante de mundo áspero que se nega ao contato do pano, úmido e desfiado, de suas jovens mãos calejadas. Em todos o rancor ressoa. Entre as estratégias utilizadas o cinismo, a ironia, a agressão física ou moral em palavras e gestos.
Resiste na cena a dança de Helena, com os olhos a piscarem em sintonia contrária a do desanimado Tio Vânia, prostrado em uma cadeira caquética que assemelha-se ao próprio estado emocional. A comparação que ele faz a um esforço excessivo, imbuindo-lhe de cansaço, acopla-se ao vapor do clima como a fumaça do café procura o bule sobre a mesa miserável. A animada sugestão do alcoólatra Dr. Ástrov a Teléguine para que cantem juntos, e a recusa, deixando-o abandonado é outro momento forte. Tal qual o movimento do cenário ao arredar espaço em nós para que recebamos o “não” de Serebriákov, referente ao humilde pedido de Sônia para que Helena toque. O cartaz afetivo nos alcança em cheio quando, com flores na mão, Tio Vânia observa o impensado. E o planeta, alheio, entope-se de surpresas desagradáveis. Talvez por isso a rotina acene à estrada.
Mas afinal de contas, o que nos traz a adaptação do Galpão para o clássico de Tchékhov? Uma pergunta particular e universal, atribuição inerente a textos que sobrevivem à usina nuclear do deus tempo, dono exclusivo da ampola, aquele ao qual se encolhem as personagens ao buscarem o conforto debaixo de asas cálidas. Ao aceitarem o destino – trapaceiro, avarento e indigesto – a luz baixa pequenininha a alcançar o rosto dos que permaneceram até o fim dos acontecimentos, desistindo somente das próprias vidas, não de vivê-las. E no escuro o silêncio é capaz de urdir sons imaginários, mais que à igreja, a procissão, as promessas. O silêncio, ponto crucial da montagem, abarrota-nos em redenção.
Tio Vânia – Encenada a primeira vez em 1897. Escrita por Anton Tchékhov, já foi apresentada um sem número de vezes ao redor do mundo. Considerada um clássico da dramaturgia universal. A primeira apresentação em Moscou, capital russa, país de origem do autor, foi em 1899, com direção de Constantin Stanislavski. Entre as peças mais famosas de Tchékhov estão “A Gaivota”, “As Três Irmãs” e “O Jardim das Cerejeiras”.
Raphael Vidigal
4 Comentários
Adorei, meu genrinho preferido! Um abraço
O Filme é maravilhoso!!
Pude sentir o desafino do silêncio novamente… que descompassa sem querer as alegrias insonsas.
Comentários poéticos! vc escreve muito bem Raphael Vidigal, parabéns!