Silvio Tendler, o ‘cineasta dos vencidos’ afirma que ‘Lula é um vitorioso’

*por Raphael Vidigal

“O livro aberto nos joelhos
o vento nos cabelos
olho o mar.
Os acontecimentos de água
põem-se a se repetir
na memória.” João Cabral de Melo Neto

Engana-se quem pensa que o documentarista se fia no passado. Silvio Tendler acaba de finalizar um e-book, essa espécie de livro-virtual, que termina no futuro. O começo é a Pangeia, continente que teria abarcado todo o mundo durante 200 milhões de anos. Também deu forma a um web-doc., segundo ele, “a forma mais moderna de se fazer documentário, que não se encerra nunca”. A interferência das pessoas que frequentam a plataforma é constante, com liberdade para acrescentar informações e discordar do que está posto. “Sou um vulcão de criatividade e pensamentos”, resume o entrevistado, um senhor de 73 anos que, prestes a completar cinquenta anos de carreira ininterrupta dedicada ao cinema, está longe de perder o entusiasmo. “Não vejo outro destino pra mim”. Silvio é um vocacionado, com mais de 70 filmes no currículo.

“Esquadrinhei a história desse país através das histórias de Marighella, Jango, Juscelino Kubistchek, Tancredo Neves, Milton Santos, Castro Alves, Josué de Castro”, enumera. A relação de personagens deixa transparecer o viés do documentarista. “Arte e política são irmãs xifópagas, elas caminham juntas”, assinala. Em 1974, Silvio estava na França, a bordo de seus 24 anos, quando tomou uma decisão que mudaria toda sua vida. “Via todas as polêmicas entre o Partido Socialista e o Partido Comunista, que brigavam por um punhado de poder, então eu disse a mim mesmo que não iria agir na sociedade pelo viés da militância política, mas através da militância artística, e tem dado certo”, assegura. “São formas de falar da política e, ao mesmo tempo, fazer política através da arte”. Nos anos 1960, se enturmou com o Movimento Cineclubista…

Formação. Na ausência de escolas dedicadas à sétima arte, os cinemas de rua eram o principal ponto de encontro e discussão sobre o tema. “A minha infância foi no bairro de Copacabana, que era coalhado de cinemas de rua”, recorda Silvio. Em frente à sua casa, na rua Raimundo Corrêa, havia o Metro-Goldwyn-Mayer, dedicado aos “grandes espetáculos”, e, nas proximidades, amontoavam-se ainda o Art Palácio, o Copacabana, “mais pra lá um pouquinho o Ryan, o Roxy, o Bruni, o Condor, e o Ricamar”. Desde a mais tenra infância, ele tomou contato com Chaplin, O Gordo e o Magro, Tom & Jerry e os desenhos de Walt Disney. “Tudo que era reservado a uma criança com uma infância sadia”. O encontro com os documentários começou a ser traçado com uma experiência mais problemática, com “Kirongozi, Mestre Caçador”, de 1957.

Dirigido pelo brasileiro Geraldo Junqueira de Oliveira, o filme acompanha a saga de Jorge Alves Lima em sua caçada a elefantes na África. “Na época, eu não compreendia a perversidade do ato, mas achei o filme importante e a partir daí, com 10 anos, o documentário entrou definitivamente na minha vida”. A infância, povoada pelos personagens das chanchadas brasileiras como Grande Otelo, Oscarito, Cyll Farney e as grandes cantoras do rádio representadas por Emilinha Borba, Marlene, Elizeth Cardoso, dentre outras, logo se abriria, no começo da adolescência, para as influências de Glauber Rocha, Leon Hirszman, Jean Rouch e Chris Marker, com quem ele chegou a trabalhar como assistente de direção, documentando a eleição de Allende e o golpe militar no Chile. A lista abarca ainda os italianos Ettore Scola, Francesco Rosi, Rossellini.

Caminho. “Tenho grandes mestres, a começar por Vladimir Carvalho, esse grande paraibano que eu reputo como o João Cabral de Melo Neto do cinema brasileiro. Não estou me restringindo ao documentário, estou falando de cinema. É um criador incrível, com a estatura de um João Cabral”, elogia, em referência ao cineasta que acompanhou Eduardo Coutinho nas filmagens do histórico “Cabra Marcado para Morrer”, iniciado em 1964 e finalizado vinte anos mais tarde. Coutinho, aliás, é outra de suas referências, ao lado de Joaquim Pedro de Andrade, “que começou fazendo documentário com ‘Garrincha, Alegria do Povo’, e depois filmou ‘Macunaíma’ (protagonizado por Grande Otelo e Paulo José), mostrando que é possível navegar em todas as águas”. A mesma imagem é usada por Silvio ao metaforizar sobre ficção e documentário.

“A ficção é uma reconstrução ficcional pelo olhar de um autor, que vai trabalhar apoiado em atores, atrizes, cenógrafos, figurinos, fotografia, luz, texto, e vai dirigir um grande transatlântico, em que se você não tiver tudo muito organizado, se você não tiver um roteiro, um ponto de partida, um argumento forte e um texto claro, você corre o risco de naufragar diante do primeiro rochedo”, aponta. “Três dias depois de iniciadas as filmagens, as pessoas já estão batendo-cabeça no set. Cabeleireiro não se entende com cenógrafo; figurinista com iluminador, coreógrafo, e o filme tem toda chance de fracassar”. Silvio parece acreditar estar lidando com um terreno menos movediço ao documentar a realidade. “O documentário é a realidade bruta burilada por um olhar autoral. É a viagem do navegador solitário que sabe o ponto de partida e sabe o ponto de chegada. Sabe de onde está saindo e aonde ele quer chegar”.

Estruturas. No entanto, ele mesmo admite que “a rota de navegação vai ser determinada pelo movimento dos mares, dos ventos, o documentarista vai se basear na realidade para construir seu produto”. “Hoje em dia, o documentário não tem mais roteiro, porque ele tem um ponto de partida, mas, no meio do caminho, vai encontrar enclaves, barreiras, questionamentos, vai ter que modificar a rota para chegar aonde deseja”. Silvio se enxerga como documentarista, e não esconde que considera o trabalho “muito mais rico”. “A gente improvisa o tempo todo, interpreta, reconstrói. Mas ambos são igualmente importantes e eu não tenho nenhum desprezo por nenhuma das duas formas de linguagem”, pondera, antes de apontar que existe ainda uma terceira forma, “a híbrida, o documentário com elementos ficcionais”. O que Silvio deseja mesmo é “vida longa ao cinema, seja da forma que for”. Pois luta.

“O cinema é o grande veículo de comunicação até hoje. Ele interage com as outras tecnologias, está muito ligado ao Streaming, vemos muitos filmes pela televisão, pelas plataformas, mas a gente não abandona a ideia do espetáculo amplo, coletivo, em que participamos de um movimento de convivência, de rir e chorar juntos. O cinema é esse espaço de multidões que assiste a uma obra, debate e constrói outra realidade. Eu sou um fã incondicional do cinema”. É nesse ímpeto de retomar a característica coletivista do cinema que Silvio tem se dedicado a forjar uma nova plataforma, no município de Maricá, Rio de Janeiro. “Espero que dê certo e a gente consiga unir forças para ter um grande projeto de comunicação alternativo, completamente diferente desse que é proposto pelas grandes empresas Blockbuster. Vamos fazer o cinema que nos interessa com a realidade que nos toca, sobretudo para ajudar a transformá-la”.

Espírito. A rebeldia de Silvio não é inocente. “Não adianta dar murro em ponta de faca, ser rebelde contra uma realidade que já está instalada no mundo inteiro. Eu convivo com uma realidade necessária, à qual estamos submetidos. Hoje, a plataforma cinematográfica veio pra ficar. O que podemos fazer é construir plataformas nossas, que sejam expressivas e nos deem espaço nesse concerto de arte, para que possamos apresentar nossos filmes em igualdade de condições”, afirma. Segundo ele, toda essa discussão já havia sido antecipada por Glauber Rocha em 1980, quando ele lançou “A Idade da Terra”, seu derradeiro filme, no Festival de Veneza, e, como de hábito, causou polêmica. “Espero que, com o tempo, as pessoas percebam que o sequestro dos cinemas de rua pelos shoppings foi proposital para acabar com os cinemas de terceiro mundo e as realidades locais do povo brasileiro, africano, italiano…”.

Silvio ecoa, de maneira bem mais serena, as palavras e as atitudes de Glauber. “Essa crise atual do cinema já estava naquele grito de revolta do Glauber, quando ele fez aquela discurseira toda e as pessoas não entenderam. Ele alertava que a realidade estava mudando e que terminaríamos sufocados por essa nova arte que se faz agora nas salas Blockbuster”. Em 2003, Silvio lançou “Glauber o Filme, Labirinto do Brasil”, focando a intempestiva trajetória do principal artífice do Cinema Novo, revolução cinematográfica responsável, sobretudo, por “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. “Glauber sacolejou as estruturas do cinema brasileiro, foi um inventor de linguagens”, resume. Os dois tiveram um breve contato em 1973, quando Glauber filmava na Itália. A diferença de idade era grande, mais de dez anos que já colocavam Silvio de fã.

Futuro. “Glauber era uma figura muito devoradora, ocupava todos os espaços. Sempre digo que faço cinema para aprender, e não para ensinar. Ter feito esse filme sobre Glauber me ajudou muito a fazer um outro cinema”, constata. Os sonhos não param na maleta de Silvio, que ele carrega para todos os lugares com sua cabeça cheia de histórias, aberta ao futuro e ao passado. “A gente sonha fazendo filmes e, depois de muitos anos, retomei um projeto antigo. O que é do homem, o bicho não come”, invoca Silvio, repetindo um velho ditado. Com uma linguagem nova, ele tem filmado uma peça teatral sobre a relação entre Luís Carlos Prestes e Olga Benário, dois ícones da história política nacional, e que depois será transformada em documentário. Paralelamente, prepara um filme sobre Leonel Brizola, criador do PDT, previsto para setembro.

Impulsionado pelo teatro de Brecht, Arthur Miller, Dalton Trumbo e pela obra literária de Graciliano Ramos, Jorge Amado e Darcy Ribeiro, Silvio Tendler sempre se postou ao lado dos que “acreditam nas grandes transformações que a arte pode oferecer à vida, da arte praticando política com “p” maiúsculo”. Apesar disso, foi vítima de um processo judicial movido pelo fotógrafo Sérgio Falci que, decorridos dez anos do documentário “Tancredo – a Travessia”, entrou com uma ação pedindo indenização pelo uso de fotografias feitas por ele. “Faço documentários há mais de 50 anos e nunca tive nenhum problema. Essas são as primeiras quatro fotos que me são cobradas pela Justiça. Evidentemente, trata-se de uma injustiça com um guardião da memória nacional. Eu tenho interesse em preservar essa memória e o doutor Tancredo (Neves) não pode ser excluído dela porque um fotógrafo pede, intempestivamente, que o filme seja retirado de circulação”, defende-se Silvio…

Disputa. A decisão deve ser tomada nesta terça (9), pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. “Essas fotos pertencem à Fundação Tancredo Neves de São João Del-Rei. Foram doadas em documento escrito, confirmado por e-mail. Apenas fiz o que qualquer documentarista faria: usei as fotografias”. Silvio acrescenta que todos os seus filmes estão disponibilizados gratuitamente no YouTube, e não possuem fins lucrativos. “O cinema tem uma função educativa e cultural”, afirma. O crédito do fotógrafo foi incluído ao final do filme que motivou o imbróglio. As quatro fotografias de sua autoria ocupam, ao todo, 11 segundos de um longa-metragem de quase duas horas de duração. “Não são fotos fundamentais para a história. Se o fotógrafo pedir, retiramos as fotografias. Irei às últimas instâncias em defesa da história e da memória nacional. Espero que todos compreendam: a história do Brasil está sendo questionada, linchada e cancelada. Minha luta pela memória é eterna”, garante.

Esse espírito de luta e o caráter aguerrido com que se entrega às utopias rendeu a Silvio o epíteto de “cineasta dos sonhos interrompidos”. Ou “cineasta dos vencidos”. Não é sem ironia do destino que ele define o presidente Lula como “incontestavelmente um vitorioso”. “É o único na história do Brasil que chegou à Presidência da República três vezes pelo voto do povo. Lula é muito hábil e inteligente, é um grande jogador de xadrez que nunca revelou o movimento das peças dele”. Na visão de Silvio, o perfil de presidente que mais se assemelha ao de Lula é o de Juscelino Kubistchek. “À semelhança de JK, foi perseguido pela ditadura e depois pela (operação) Lava-Jato. Mas conseguiu o que JK não conseguiu. Provou sua inocência e ganhou a eleição”. Versado em retratar esse tipo de figura, Silvio não pretende biografar Lula. “Como ele é suficientemente inteligente, já está preparando a própria biografia com o (fotógrafo) Ricardo Stuckert, que acompanha o Lula diuturnamente”, diz.

Esperança. Silvio conta que, nos momentos que antecederam a prisão de Lula, em abril de 2018, o presidente e o fotógrafo dividiram o mesmo espaço no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, berço-político do petista. “O Lula dormiu encostado no sofá, e o Ricardo Stuckert numa almofada no chão”. O que Silvio não abre mão é de assistir a essa epopeia cinematográfica como espectador. “Lula tem a seu lado o Ricardo Kotscho, um dos maiores jornalistas desse país. E outros grandes escribas, como o Chico Buarque. A trilha sonora já está pronta”, arremata, num misto de divertimento e esperança.

Foto: Gabriela Nehring/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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