“Como é frágil o coração humano —
espelhado poço de pensamentos.
Tão profundo e trêmulo instrumento
de vidro, que canta
ou chora.” Sylvia Plath
Uma noite distante, peregrina, antepassada, que nos vem aos ouvidos como uma flor na enseada, meio bamba, leme a passar os dedos por sobre a franja do mar, que trazem, e regam, e regem, qual ondas, jardim, maestros-mastros.
Apresentando-se no Grande Teatro, o Grupo de Choro Palácio das Artes ergueu pernas de bailarinos do corpo jovem da instituição, reverenciou a Velha Guarda do Choro da cidade abaixando o tronco, e abriu os braços para a comunhão de árvores genealógicas das mais distintas.
Todas, porém, vindas de uma linhagem senão nobre, humana: em sua não tocável matéria, música. O humano escondido em poses, traços, raças, cores, cargos, funções, foi o que se passou a mim naquela confraternização.
A arte como leveza, despretensiosa, alegre e triste, emanando por espíritos com um só instrumento: a lupa. Não a de verificação, mas de aprochegança. Pois objetos de execução coexistiam vários: violão, sete cordas, bandolim, percussão, órgão, sopros, sapatilhas, lenços e leques.
Mas eu só percebi o violão quando ele chorou de dor na mão dos rapazes e dos velhos ainda energizados, vi a matemática das sete cordas no momento em que um colega afagou o outro com Picolé (apelido de infância), senti a vibração do bandolim ao ler o salmo de Jacob em braile, e o tremor da percussão, e o pito do órgão, as peripécias dos sopros, os saltos das sapatilhas, a sensualidade de lenços e leques enrolando torsos femininos, invadindo os seios.
E a cantora cantando ‘Carinhoso’ que eu não vejo, Lígia Jacques, dizem lá, vem Lígia Jacques, egressa da minha memória, mais cedo trocamos palavras, espantos, admirações, no camarim do espetáculo, onde está, onde está, que eu não vejo.
Senti, sem perceber nem ao menos raciocinar que aquela (aquela?) sem nome, indefinida, abadia de santos e santas, fadas e gnomos, aos poucos, como quem põe criança a ninar com canções de dormir, foi subindo lentamente pelas minhas pernas, trepadeiras que silenciam o coração das árvores.
E eu saí de ontem abismado, mudo, calado, parado no presente, antevendo o futuro, jogando com o passado, pois desde então desde então desde então uma música cercou meus limites, já não consigo pular o muro. Mas sorrio de (canto).
Raphael Vidigal
4 Comentários
ouço sensualidade nesse chorinho… coisa linda!
Sempre agradecida, Raphael!! Grande abraço!
Agradeço os comentários. Voltem sempre ao site! Abraços
Puxa, Raphael, só agora vejo essa beleza de texto… Estou muito comovida, muito mesmo. E agradecida. Agradecida por você, por sua sensibilidade e gentileza de alma. Aquela noite foi mesmo sublime. Fiquei muito honrada em estar ao lado de tantos músicos maravilhosos. Mas nem vou dizer mais, você disse com muito mais beleza. Abraço com carinho!