*por Raphael Vidigal Aroeira
“A ladeira gelada, o desvio na escuridão e o efeito do álcool explicavam muita coisa – explicavam, na prática, no final das contas, após o inquérito e infinitos mexericos, tudo; porém havia aspectos da vida dele – episódios e perigos estranhos, distúrbios secretos, vícios mais do que suspeitados – que teriam explicado muito mais.” Henry James
O próprio título da série denuncia a sua assumida filiação à novela “A outra volta do parafuso”, originalmente publicada em 1898 por Henry James. Em “A Maldição da Mansão Bly”, dirigida, escrita e produzida por Mike Flanagan para a Netflix, de princípio toma-se emprestado o nome da fictícia cidade onde a história se desenvolve. Acrescente-se a isso as personagens centrais do enredo – no caso, duas crianças órfãs e uma governanta – e o próprio mote da ação: aparições fantasmagóricas na gótica residência. Tal como o livro de James, o seriado de Flanagan opta por explicitar o fato de que a história ocorre dentro de outra história, ou seja, o que acompanhamos acontece no âmbito de um relato, de uma construção narrativa, de palavras articuladas.
A premissa é importante para se comparar os caminhos que ambas tomam. Se James concede à “moldura” apenas a condição de disparar a trama, Flanagan opta por retomá-la como uma maneira de arrematar – e, sobretudo, – arredondar a história, talhando suas pontas soltas, ainda que mantenha um tímido suspiro de ambiguidade no ar. A partir do conceito cada vez mais alargado de “adaptação” e recusando termos notadamente moralistas que advogam em favor da fidelidade, não é difícil reconhecer que “A Maldição da Mansão Bly” parte de “A outra volta do parafuso” para tanto avançar quanto retroceder artisticamente em relação a seu material-fonte. O efeito mais expressivo talvez seja o de estabelecer limites àquilo que era mantido insondável.
Pegue-se um exemplo aparentemente banal como a nomeação da protagonista. Nas páginas escritas por James, a governanta sequer chega a ter uma alcunha, enquanto, na tela da Netflix, é tratada por Srta. Dani Clayton. Provavelmente apenas o mais visível dos artifícios na escolha por uma comunicação que estabeleça menos o distanciamento e mais a empatia com o espectador – demandando um mergulho, uma afetação à história que o livro de James propositadamente evita e trunca. Longe de ser segredo como o aspecto sensível da imagem favorece essa comoção, por sua própria materialidade, em detrimento à abstração das palavras, que, em última instância, são sons que pouco trazem de comum com aquilo o que pretendem representar, aludir, etc.
Para alcançar tal resultado, torna-se óbvio que a seleção do elenco apostou em intérpretes carismáticos, como a protagonista Victoria Pedretti, que compõe essa governanta de fragilidade comovente, cujos lábios a qualquer perigo tremulam e os olhos, inquietos e claros, parecem buscar algo para além de sua capacidade de deter. Essa figura à deriva, necessitando de ajuda, impetuosa e covarde quando o terror a assola recebe uma descrição sucinta e sóbria no livro de James. Ali, ela é pouco mais do que um turbilhão de imagens desconexas, pensamentos sombrios e contraditórios, atitudes por vezes ríspidas, duras, que, na tela, são sublimadas por uma doçura pueril.
Flora e Miles Wingrave, vividos pelas crianças Amelie Bea Smith e Benjamin Evan Ainsworth, denotam a própria ausência de intencionalidade, com expressões incrivelmente opacas, que adensam no espectador a dificuldade vivenciada pela governanta de detectar os desejos e as razões por trás daqueles rostos angelicais de órfãos, e, justamente devido a essa inexpressividade, perturbadores. O jogo do seriado é sempre o dessa assimilação às agonias da governanta. Ele quer o espectador o mais simpático possível à sua protagonista, com estratégias de comoção, empatia e reconhecimento. Herdeira do folhetim, a série pratica o melodrama sem culpa ou medo.
O que ela faz é, pela imaginação de seu criador, dar-se a liberdade de preencher lacunas oferecidas pelo texto de James. Por exemplo, o desconhecimento que cerca a governanta é destrinchado com um trauma pregresso, que oferece uma resposta para sua atitude inusitada de topar cuidar de duas crianças órfãs numa mansão interiorana, sendo ela uma mulher jovem. Repete-se a estratégia com outras personagens, como a Sra. Grose, que, de confidente às dúvidas e suposições da governanta, passa a protagonista de um episódio inteiro, no qual se debate com percepções acerca do tempo, inserindo a “lógica metafísica”, e, por conseguinte, diálogos sobre vida e morte.
Ao expandir e amplificar “A outra volta do parafuso”, em franca conversa com outras produções literárias do mesmo autor, Flanagan assume uma postura criadora e criativa, delimitando semelhanças e diferenças com seu inspirador, tanto no meio de elaboração – que passa da literatura para a série – quanto de objetivos e possibilidades que nunca deixam de estar totalmente desconectadas desta primeira condição. As referências são outras, assim como o tempo e o espaço. Flanagan dilui a ambiguidade, investe no melodrama, e não é possível dizer que isso se deve à passagem da palavra à imagem. Hoje conhecemos amplamente palavras imagéticas e imagens abstratamente verbais…
O que ocorre é que temos a dobra de uma obra, com uma dentre tantas interpretações, e, claro, expressões possíveis. O caminho percorrido por Flanagan tem seus achados, certamente menos esconderijos que o de James, mas isso, por si só, não condiciona o mérito ou demérito da empreitada. Dito isto, não resta dúvidas de que a experiência proposta pela Netflix é menos hermética e incompreensível do que a novela de James, oferecendo certo conforto ao espectador mesmo que o assuste, em determinados momentos em que ele não espera por isso, e em outros que se tornam quase previsíveis. E tudo já estava dito no batismo da série. “A outra volta do parafuso” é um título um tanto quanto insólito – na medida da narrativa de James – enquanto não nos gera exatamente surpresa que uma série de pendor gótico nos convide a conhecê-la informando sobre uma mansão localizada numa cidadezinha interiorana, da qual suspeitamos logo que abrigue fantasmas e outras criaturas tenebrosas e aterrorizantes.