Roberta Martinelli: “Jornais amam matéria destruindo a música brasileira”

*Raphael Vidigal Aroeira

“Você pode até dizer que eu tô por fora
Ou então que eu tô inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem” Belchior

A ironia é a suprema dama das contradições humanas. Foi em um estúdio acanhado da gravadora Odeon que, em fevereiro de 1959, tudo aconteceu, “provocando estupefação geral”, como nos contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no segundo volume de “A Canção no Tempo”, cuja publicação data de 1998. Mas como as datas não são capazes de nos oferecer o sentido das coisas, coube àquela histórica gravação de João Gilberto sustentar o enigma que nos conecta ao momento presente. Com letra de Newton Mendonça e melodia de Tom Jobim, ele cantava em “Desafinado”, abrindo alas para a bossa nova com sua dissonante revolução: “Se você insiste em classificar/ Meu comportamento de antimusical”. A expressão foi a mesma utilizada por Dori Caymmi em recente entrevista à Folha de S. Paulo para lançamento de seu novo disco, curiosamente intitulado “Utopia”, na qual desanca o panorama atual.

“Num momento tão antimusical, meu disco não tem a menor possibilidade de uma divulgação decente. É uma coisa do passado mesmo. Nós estamos vivendo um outro tipo de postura no século XXI. E eu não posso botar uma roupa brilhante, chamar 12 bailarinos e fazer um show no palco, dançável, para todo mundo gostar”, debochou. Se não é possível negar a filiação de Dori à bossa nova, também taxada por detratores da época de “antimusical”, tampouco se pode deixar escapar as nuances de seu descontentamento. Em outro trecho da entrevista, acompanhado em suas críticas pelo letrista e parceiro Paulo César Pinheiro, ele diz que “a música brasileira está doente”, e volta sua mira para o mais popular gênero musical do Brasil atualmente. “O vibrato dos cantores sertanejos é um pavor. Não sei de onde vem, talvez do trio elétrico!”, disparou.

Apresentadora do programa “Cultura Livre” na TV Cultura, que abre espaço para artistas de diversos segmentos da música contemporânea, a jornalista e pesquisadora musical Roberta Martinelli não digeriu bem as críticas de Dori. “Acho triste quando vejo isso acontecer, pois a música brasileira segue brilhante e criativa, como em tantos outros momentos. Talvez não tão amplamente divulgada, mas ocupando espaços importantes e chegando ao público dentro da loucura que vivemos de tanta informação nos tempos atuais”, observa. Ao mesmo tempo, ela se ressente de uma maior valorização dessa produção, especialmente nos jornais, “que amam uma matéria com alguém destruindo a música brasileira, sabendo o quanto isso dá cliques e reforça os clichês de uma opinião reproduzida muitas vezes sem fundamento”, declara.

Qual a sua opinião sobre o diagnóstico de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro de que a música brasileira atual está “doente com tanto mau gosto” e a que você atribui essa percepção?
Acho triste quando vejo isso acontecer pois a música brasileira segue brilhante e criativa como tantos outros momentos. Talvez não tão amplamente divulgada, mas sim ocupando espaços importantes e chegando no público dentro da loucura que vivemos de tanta informação nos tempos atuais. Mas sim a música segue firme, atenta e forte. Mas, sinceramente sinto falta de espaços valorizando a música brasileira nos jornais que amam uma matéria com alguém destruindo a música brasileira, sabendo o quanto isso dá cliques, e reforça clichês de uma opinião reproduzida muitas vezes sem fundamento.

Os compositores parecem se ressentir de um momento em que o tipo de música produzida por eles tinha amplo espaço na mídia, e acabam voltando suas miras para gêneros populares como o axé e sertanejo que pouco dialogam com a tradição da bossa nova, do samba e da MPB da qual descendem. O principal desafio da dita MPB hoje em dia é mesmo a veiculação da obra ou há outras barreiras a serem superadas?
Eu acho difícil usar MPB como gênero. Música popular brasileira é um cabide enorme né? Eu acho que os desafios da música como um todo hoje são muitos. Como ser monetizado bem no streaming, pensar em lançamento, ter espaço para shows, circular pelo país. Acho que temos um problema coletivo de criar um mercado mais saudável. Me parece que nesse contraponto específico dessa fala existe uma visão de superioridade de um gênero musical sobre outros – que não faz sentido. Não é porque é para muitos ou atinge muitas pessoas que não é bom. Temos muitos artistas do mainstream dominando mídias tradicionais e fazendo história na música brasileira. Glória Groove é um baita exemplo. Emicida outro, e tantos mais.

O que a geração de Chico, Caetano, Gil, Djavan, Milton, dentre outros, trouxe de peso, influência, liberdade ou herança para a atual geração da MPB e no que ela procura se diferenciar em termos de proposta estética ou qualidade?
Essa geração é inspiração demais para todas as gerações e trouxe muita coisa na nossa formação, não sei nem o quanto conseguimos ter a dimensão mesmo. Mas a música segue e depois deles outros artistas estão pensando e criando a música de seu tempo, tanto que esses medalhões estão sempre buscando a nova geração. Eu não enxergo nem ruptura, nem submissão, acho que essas figuras seguem presentes na nossa música e nossos artistas estão criando e sobrevivendo ao mercado atual da música. Eu não sei se é uma questão de superar, são outros tempos, mas estamos vendo artistas criando e brilhando e construindo um repertório muito fundamental, como Luedji Luna, Tim Bernardes, Criolo, Marina Sena, Baiana System, só para citar alguns.

O que mais te chama atenção ou quais são os artistas que mais despertam o seu fascínio na MPB contemporânea?
Eu acho que a música brasileira está viva e criativa e construindo nosso futuro, que será bonito e fruto do que estamos vivendo. “Ahhhh mas não se faz mais música como antigamente”. Não mesmo, fazemos diferente no modo de fazer porque o mercado e o mundo são outros, mas isso não significa que não é boa. Ela é maravilhosa! Ouçam Thalin, Juliana Linhares, Letrux, Jucara Marçal, Melly, Zé Ibarra, Nyron Higor, Josyara, Luê e estejam atentos às mídias que celebram a música brasileira.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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