Relembre os grandes sucessos e regravações de Adriana Calcanhotto

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família” Adriana Calcanhotto

Adriana Calcanhotto nasceu em Porto Alegre no dia 3 de outubro de 1965. Cantora, compositora, instrumentista, produtora musical, escritora e professora, ela começou a carreira se apresentando em bares de sua cidade natal. Depois de se destacar no circuito de música independente de Porto Alegre e São Paulo, rumou para o Rio de Janeiro, onde gravou o primeiro disco “Enguiço”, de 1990, que lhe valeu o Prêmio Sharp de revelação feminina daquele ano. Com “Senhas”, de 1992, passou a tocar no rádio graças a baladas como “Mentiras” e “Esquadros”. Com “A Fábrica do Poema”, de 1994, emplacou o hit “Metade”, e se consolidou no cenário da música brasileira, com poetas do porte de Wally Salomão e Antonio Cicero. E também passou a investir em releituras.

“…E O Mundo Não Se Acabou” (samba-choro, 1938) – Assis Valente
Depois do estouro de “Camisa listrada”, Carmen Miranda gravou outra joia do repertório de Assis Valente, no mesmo ano de 1938. “E o mundo não se acabou” é um samba-choro que brinca com a possibilidade milenar do fim do mundo. Alardeado por boatos de nova guerra mundial e coalizão de cometas contra a Terra, o caso virou gostosa música que premeditava o arrependimento daqueles que acreditavam no fim, caso a confirmação não viesse: “beijei a boca de quem não devia, peguei na mão de quem não conhecia, e o tal do mundo não se acabou”. Adriana Calcanhotto voltou a essa canção já em 2000.

“Se Acaso Você Chegasse” (samba, 1938) – Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins
Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se Acaso Você Chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estreia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e da amizade posta em perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo. A música se configurou no primeiro sucesso da intérprete, e recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Noite Ilustrada, Lúcio Alves, Roberto Silva e Adriana Calcanhotto.

“Disseram Que Eu Voltei Americanizada” (samba, 1940) – Luís Peixoto e Vicente Paiva
Em 1940, após um longo período sem se apresentar no Brasil, a portuguesa Carmen Miranda voltou à terra que a acolheu e foi recebida no aeroporto por uma multidão de fãs. No entanto, ao se apresentar a grã-finos no Cassino da Urca acabou tendo uma recepção fria por cantar algumas músicas em inglês. Acusada de ter ficado “americanizada” pelo tempo que passou nos Estados Unidos, Carmen gravou, no mesmo ano, o samba “Disseram Que Eu Voltei Americanizada”, de Luís Peixoto e Vicente Paiva, no qual era enfática: “Enquanto houver Brasil, na hora da comida/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!”. Adriana Calcanhotto a regravou em 1990, na estreia em álbum.

“Mulato Calado” (samba, 1947) – Marina Batista e Benjamim Batista
“Mulato calado” consta como sendo de autoria de Benjamim e Marina Batista, esposa de Wilson, a pedido do próprio. Tendo sido inclusive registrada por seu verdadeiro autor, além de Aracy de Almeida e Adriana Calcanhotto, entre outros, o samba retrata uma história dramática que exemplifica a realidade dos morros cariocas, ainda na década de 40. Revivida por Clementina de Jesus 30 anos depois de seu lançamento, em 1977, apresenta integralmente personagens complexos do cotidiano brasileiro, acostumados a conviver com vida e morte na mesma sentença. “Vocês estão vendo aquele mulato calado, com o violão do lado, já matou um, já matou um…”.

“Ela Disse-me Assim” (samba-canção, 1959) – Lupicínio Rodrigues
“Ela Disse-me Assim” apresenta uma situação pouco usual na canção popular brasileira. Lançada em 1959, na voz poderosa de Jamelão, a música tem como mote um pedido suplicante da amante para o homem com quem ela está traindo o marido. “Ela disse-me assim/ Tenha pena de mim/ Vá embora/ Vais me prejudicar/ Ele pode chegar/ Está na hora”. As más línguas contam que toda a situação abordada foi vivida pelo próprio Lupicínio Rodrigues que, como de costume, se inspirava em sua vida para compor. O quiproquó se complica porque, a despeito da intuição da mulher, o marido os pega no flagra. A música ganhou regravações de Simone, Adriana Calcanhotto, Noite Ilustrada, e outros.

“Gatinha Manhosa” (balada, 1965) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
A dupla formada por Roberto Carlos e Erasmo Carlos enveredou por um caminho mais sentimental e através de metáforas para abordar a relação com os animais de estimação. No auge da Jovem Guarda, em 1965, os dois criaram uma das mais românticas e sensíveis canções do gênero, em que o adjetivo para se referir à protagonista se impregna em cada verso da letra. “Gatinha Manhosa” utiliza-se da visão do próprio animal, normalmente dolente, e, vez ou outra, atrás de um afago; e do sentido de galanteio que a expressão recebeu com o passar dos anos: “Um dia gatinha manhosa eu prendo você no meu coração”. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto, sob a pele da personagem infanto-juvenil Adriana Partimpim, e repetiu o sucesso de outrora.

“Onde Andarás” (bolero, 1968) – Caetano Veloso e Ferreira Gullar
Maria Bethânia queria uma música de fossa, e pediu a Ferreira Gullar que escrevesse a letra. A melodia ficou a cargo de Caetano Veloso, que não se conteve com isso. Acabou lançando a música em 1968, em seu primeiro disco-solo, um ano antes de a irmã regrava-la. “Onde Andarás” se vale do mais sofrido gênero musical para embalar seus versos. É um bolero que, ainda assim, troca o derramamento pela suavidade, graças ao talento de Ferreira Gullar e Caetano. “Onde andarás nesta tarde vazia/ Tão clara e sem fim/ Enquanto o mar bate azul em Ipanema/ Em que bar, em que cinema te esqueces de mim”, diz a letra também regravada por Adriana Calcanhotto e Marisa Monte. Foi a primeira canção de Ferreira Gullar a alcançar algum êxito.

“Loucura” (samba-canção, 1973) – Lupicínio Rodrigues
Lupicínio Rodrigues nasceu em Porto Alegre, no dia 16 de setembro de 1914, e morreu na mesma cidade no dia 27 de agosto de 1974, aos 59 anos, após sofrer uma parada cardiorrespiratória. Inventor da dor de cotovelo, Lupicínio Rodrigues legou diversos clássicos da canção de fossa para a música brasileira, como “Nervos de Aço”, “Cadeira Vazia”, “Esses Moços”, “Vingança”, “Castigo”, entre outras, e teve suas composições gravadas por Elis Regina, Gal Costa, Paulinho da Viola, Elza Soares, Nelson Gonçalves, Jamelão, Linda Batista, João Gilberto, Arrigo Barnabé e Arnaldo Antunes. Ele também é autor do “Hino Oficial do Grêmio”, seu clube de coração. Sem tocar instrumento musical, Lupicínio recorria à caixinha de fósforos para criar as suas melodias. “Loucura”, que ganhou uma versão arrebatadora de Maria Bethânia, batizou o disco de Adriana Calcanhotto dedicado ao cancioneiro de Lupicínio, em 2015.

“Dona de Castelo” (samba-canção, 1974) – Jards Macalé e Wally Salomão
“A música romântica brasileira sempre foi over. Orestes Barbosa escreveu: ‘a porta do barraco era sem trinco e a lua furando nosso zinco parecia um estranho festival’. Wally queria uma coisa que fosse o over do over. Que exacerbasse essa dor da música brasileira”, conta Jards Macalé. Esse conceito guiou a linha de morbeza romântica proposta por Wally Salomão, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. O disco “Aprender a Nadar”, lançado por Jards Macalé em 1974, foi concebido sob essa ótica. De Orestes Barbosa e Valzinho, ele gravou “Imagens”, e, com Wally, compôs “Dona de Castelo”, belo exemplar. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto, Fafá de Belém, Leila Pinheiro.

“Passaredo” (MPB, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Chico Buarque e Francis Hime compuseram, em 1976, uma ode aos pássaros brasileiros e, em última instância, à rica fauna do país. Interessante notar a influência indígena em muitas dessas nomenclaturas, como se observa, por exemplo, em uirapuru, saíra, inhambu, patativa, macuco, juriti, e muitos outros. Nesta letra repleta de lirismo, os autores não deixam de denunciar a presença destruidora do ser humano no contexto de preservação da natureza. “Toma cuidado/Que o homem vem aí”, alertam. A melodia segue, até esse instante, o ritmo do voo gracioso desses animais. Foi regravada por Adriana Calcanhotto.

“Traduzir-se” (MPB, 1981) – Fagner e Ferreira Gullar
A parceria entre Fagner e Ferreira Gullar partiu do cearense que, em 1981, musicou o poema “Traduzir-se”, do maranhense, com que batizou o seu disco daquele ano. A música ganhou um dueto, também em 1981, entre Nara Leão e Fagner, no disco “Romance Popular”, da cantora, em que ela dava voz a compositores nordestinos. Em 1998, outro dueto, desta vez entre Fagner e Chico Buarque. “Traduzir-se” seria regravada diversas vezes, como por Adriana Calcanhotto, no registro de show ao vivo intitulado “Público”, de 2001. “Uma parte de mim/ É todo mundo/ Outra parte é ninguém/ Fundo sem fundo/ Uma parte de mim/ É multidão/ Outra parte estranheza/ E solidão”, dizem os versos do poema, publicado originalmente em “Na Vertigem do Dia”, em 1980.

“Injuriado” (pop rock, 1981) – Eduardo Dussek
Parece que foi ontem, mas no primeiro disco de Adriana Calcanhotto, 53, posto no mercado em 1990 e intitulado “Enguiço”, a intérprete, que aparecia numa colorida capa com os cabelos tingidos de loiro, terno vermelho, camisa roxa, calça amarela e sapatos brancos, dava provas cabais de sua modernidade na última das faixas. Ao gravar uma personalíssima versão para “Injuriado”, deliciosa sátira de Eduardo Dussek sobre o momento político do país lançada pelo autor em 1981, a gaúcha levava ao pé da letra o sentido da palavra “irreverência”.

Quando Adriana desconstruiu tudo o que se conhecia sobre “Injuriado”, ela o fez portando a mais clássica das formações brasileiras: um banquinho e um violão. E de dentro dela mesma retirou um cartel de personagens para as quais deu voz. Mascando chicletes, com língua presa, imitando um bronco paulista, uma carioca descolada e até um cocainômano, a cantora mastigou, puxou, freou e acelerou o andamento da canção como uma massa elástica, que foi o que de fato ela se transformou nesse registro.

“Me Dê Motivo” (música soul, 1983) – Michael Sullivan e Paulo Massadas
Incorrigível, Tim Maia interpretava a música “Me Dê Motivo”, um dos maiores sucessos da sua carreira, fazendo com as mãos o símbolo do chifre. Na sua visão, a música era uma espécie de “melô do corno”, tanto que, na introdução, se valia de um texto que explicava a intenção da letra. “É engraçado, ás vezes a gente fica pensando que está sendo amado”, resumia, antes de soltar o vozeirão rouco. A composição é mais uma da dupla de hitmakers Michael Sullivan e Paulo Massadas, que também rendeu a Tim outro sucesso: “Um Dia de Domingo”, que ele interpretou com Gal Costa, em mais um dueto polêmico. “Me Dê Motivo” foi regravada por Adriana Calcanhotto no CD “Olhos de Onda”.

“Ciranda da Bailarina” (ciranda, 1983) – Chico Buarque e Edu Lobo
Incumbidos de compor a trilha sonora do balé “O Grande Circo Místico”, inspirado em um poema homônimo do alagoano Jorge de Lima, a dupla formada por Chico Buarque e Edu Lobo deu vazão a alguns clássicos da música popular brasileira. Dentre eles, está a “Ciranda da Bailarina”, de teor infantil, lançada originalmente por um coro de crianças de Córdoba, na Argentina. Embora nunca a tenha gravado em disco, Chico a registrou em especiais de TV. A ciranda voltou a fazer sucesso em 2004, quando Adriana Calcanhotto, investida da personagem Adriana Partimpim, a relançou. Sandy e a Orquestra Filarmônica de Paraisópolis a revisitaram em 2015. “Todo mundo tem marca de bexiga ou vacina”, diz a letra.

“Milagres” (rock, 1984) – Cazuza, Denise Barroso e Frejat
Não existem limites para os passos atrevidos de Elza Soares, única “Dama do Samba” a atravessar as barreiras do rock e do blues para cantar com Angela Ro Ro, Lobão, Cássia Eller e Cazuza. “Adoro todos os loucos, me identifico”, garante Elza, que gravou com o autor de “Exagerado”, em 1984, uma versão para “Milagres”, lançada no terceiro disco do Barão Vermelho e mais tarde revisitada por Adriana Calcanhotto na estreia fonográfica da gaúcha. “Cazuza era uma pessoa maravilhosa, tão divertida e alegre que Papai do Céu o levou pra seu lado”, afirma Elza. Parceria de Cazuza, Denise Barroso e Frejat, “Milagres” ganhou clipe exibido no “Fantástico”, em que a dupla de intérpretes contracena em meio aos entulhos.

“Do Fundo do Meu Coração” (balada, 1986) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Roberto Carlos vinha, aos poucos, de descolando do título de ídolo da garotada para se consagrar como o Rei da música brasileira. Um dos principais ativos nesse movimento foi apostar em canções mais maduras, que deixavam para trás o espírito juvenil e rebelde, em busca de declarações de amor capazes de acalentar corações de todas as idades. “Como É Grande o Meu Amor Por Você” destoa do repertório de “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, LP lançado em 1967, exatamente por esse motivo. Também de pegada romântica é a balada “Do Fundo do Meu Coração”, parceria com Erasmo lançada pelo Rei em 1986, e regravada por Adriana Calcanhotto, Daniel, Joanna, e outros.

“Mais Feliz” (balada, 1986) – Cazuza, Bebel Gilberto e Dé Palmeira
Cazuza e Bebel Gilberto construíram uma amizade que foi da adolescência até o final da vida. A filha de João Gilberto compôs com o poeta exagerado “Preciso Dizer Que Te Amo” e inspirou “Mulher Sem Razão”, lançada por Cazuza no disco “Burguesia” e, mais tarde, regravada por Adriana Calcanhotto. A gaúcha também deu voz a “Mais Feliz”, outra parceria de Cazuza, Bebel e Dé Palmeira, baixista do Barão Vermelho que chegou a namorar Bebel. “Mais Feliz” é uma balada romântica, que fala sobre uma prova de amor feita entre dois amantes. “Rimas fáceis, calafrios/ Fura o dedo faz um pacto comigo”, diz um dos versos da faixa.

“Naquela Estação” (MPB, 1990) – Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos
João Donato e Caetano Veloso estavam enrolados com um verso de “Naquela Estação”, quando Ronaldo Bastos chegou e resolveu a pendenga. Nascia, assim, a parceria tripla, lançada por Adriana Calcanhotto em 1990, e logo puxada pra trilha de “Rainha da Sucata”, novela da Rede Globo, onde era tema da personagem de Renata Sorrah. Triste, melancólica, quase deprimente, “Naquela Estação” conserva uma beleza que afoga o ouvinte na singeleza de seus versos sobre despedida, um sentimento que, certamente, todos já experimentaram. “E o meu coração embora/ Finja fazer mil viagens/ Fica batendo parado naquela estação…”. A música ganhou versões de Emílio Santiago e da cantora Claudya, mas permaneceu associada à voz de Adriana.

“Água Perrier” (MPB, 1992) – Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero
“Os romances do Chico Buarque estão entre os mais importantes do nosso tempo. Arnaldo Antunes é um poeta de ponta. Antonio Cícero tem dois livros de densa filosofia. Caetano escreveu um dos ensaios mais relevantes sobre a nossa cultura contemporânea. O que chama atenção é a excelência dessas pessoas nos dois campos”, observa Zé Miguel Wisnik, que também transita entre a academia e a música popular, a canção e a literatura. Uma prova é “Água Perrier”, parceria de Antonio Cicero e Adriana Calcanhotto que conjuga expressões originariamente francesas com sentimentos comuns a todos. “Adoro esse olhar blasé/ Que não só/ Já viu quase tudo/ Mas acha tudo tão déjà vu mesmo antes de ver”. A música foi lançada em “Senhas”, do ano 1992.

“Por Que Você Faz Cinema?” (MPB, 1994) – Adriana Calcanhotto e Joaquim Pedro de Andrade
Em “O Padre e a Moça” e “Macunaíma”, sob a batuta de Joaquim Pedro de Andrade, o ator Paulo José dava vida a personagens completamente distintos, mas não representava nada, como fazia questão de frisar, “vivenciava”. O naturalismo de um pode ser contraposto ao artificialismo do outro, enquanto a presença de Paulo imprime sempre algo de “verdade” na tela diante da farsa em que o espectador embarca. Da preguiça à angústia, o magnetismo impera. Ao musicar uma resposta de Joaquim Pedro de Andrade em uma entrevista, Adriana Calcanhotto compôs “Por Que Você Faz Cinema?”, lançada em 1994.

“Âmbar” (MPB, 1996) – Adriana Calcanhotto
Maria Bethânia voltou à temática circense em 1996, com o disco “Âmbar”, um dos mais bem-sucedidos de sua carreira, que faturou, inclusive, certificado de ouro pelas milhões de cópias vendidas. No repertório, ela revisitava a clássica “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, e dava voz a novidades de Adriana Calcanhotto, Chico César, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e outros. Dentro dessa seleção luminosa, também constava “O Circo”, um blues de Orlando Morais e Antônio Cícero. Já a faixa-título era de Adriana Calcanhotto, assim como “Uns Versos”, também presente no ótimo repertório.

“Alexandre” (tropicalista, 1997) – Caetano Veloso
Ao criar a personagem Adriana Partimpim, Calcanhotto também se deu a liberdade de recriar canções para o universo, à priori, infantil do seu espetáculo. Como, por exemplo, a interpretação da música “Alexandre”, lançada sob o espectro tropicalista do disco “Livro”, de Caetano Veloso, em 1997. Nesse número, a canção é de tal maneira transformada em brincadeira de criança que os versos referentes aos amores gays do grande guerreiro se unem a outros acontecimentos de sua vida com a mais pura naturalidade.

“Vambora” (balada, 1998) – Adriana Calcanhotto
“Vambora” integra o quarto disco de Adriana Calcanhotto, “Maritmo”, que deu início à trilogia marítima da cantora, finalizada em 2019 com o elogiado “Margem”. A música rapidamente se transformaria em um dos principais hits da gaúcha. Calcada em uma estrutura romântica, em que o ponto de partida é o desenlace amoroso, Calcanhotto se vale de estratégias ambivalentes que aumentam a complexidade da canção, sem eliminar a sua atmosfera romântica. Assim, “Vambora” atende tanto aos anseios do público que busca um consolo para a frustração romântica quanto para aqueles mais antenados, que pescam as referências às obras literárias dos poetas Ferreira Gullar (1930-2016) e Manuel Bandeira (1886-1968), cujos títulos dos livros “Dentro da Noite Veloz” e “A Cinza das Horas” são citados. Até hoje, “Vambora” é indispensável em qualquer show de sucessos da compositora gaúcha.

“Depois de Ter Você” (balada, 2001) – Adriana Calcanhotto
A música “Língua” fechava o disco gravado por Caetano Veloso em 1984, e trazia citações a escritores de variados gêneros, estilos e épocas. Passava dos clássicos Luís de Camões e Olavo Bilac aos consagrados Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, chegando até ao contemporâneo Glauco Mattoso. Mas, como numa ironia, ao fim Caetano determinava a superioridade musical quando o assunto era o idioma português: “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão”. No ano de 2008, Adriana Calcanhotto arriscou-se na prosa com “Saga Lusa: Relato de Uma Viagem”. O universo infantil foi abordado em “Melchior, O Mais Melhor”, parceria com Vik Muniz. Já em 2018, Adriana organizou a antologia “É Agora Como Nunca”, com obras de poetas contemporâneos. Em 2001, a irmã de Caetano, Maria Bethânia, lançou “Depois de Ter Você”, balada de Adriana.

“Se Tudo Pode Acontecer” (balada, 2001) – Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Paulo Tatit e João Bandeira
Arnaldo Augusto Antunes Filho, conhecido como Arnaldo Antunes, nasceu em São Paulo, no dia 2 de setembro de 1960. Poeta, músico, compositor e artista visual, ele começou a carreira no grupo de Titãs no início da década de 1980, contribuindo com canções famosas, como “Comida”, “Não Vou me Adaptar”, “Televisão”, entre outras. Após seis discos, deixou o grupo e iniciou uma bem-sucedida carreira-solo, que também abriu espaço para projetos coletivos como os Tribalistas, ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown. “Se Tudo Pode Acontecer” é, por assim dizer, um projeto coletivo de canção, pois reúne Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Paulo Tatit e João Bandeira. Lançada por Arnaldo em 2001, no disco “Paradeiro”, foi regravada por Adriana Calcanhotto em 2002.

“Programa” (rap, 2002) – Adriana Calcanhotto, Wally Salomão e Antonio Cicero
Wally Salomão nasceu em Jequié, na Bahia, no dia 3 de setembro de 1943, e morreu no dia 5 de maio de 2003, aos 59 anos, vítima de um tumor no intestino. Poeta, compositor e agitador cultural sempre ligado às vanguardas, Wally foi uma figura fundamental da chamada contracultura brasileira, e atuou em diversas pontas, como a poesia marginal e a Tropicália. Em 1972, começou a fazer barulho com o livro “Me Segura Que Eu Vou Dar Um Troço”, com a sua poesia expansiva e indomável. Ele também atuou no cinema, ao interpretar o poeta conhecido como “Boca do Inferno” no filme “Gregório de Mattos”. Na música, dirigiu shows antológicos de Gal Costa e Cássia Eller. Com Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero compôs o rap “Programa”, lançado em “Cantada”.

“Fico Assim Sem Você” (funk melody, 2002) – Abdullah e Cacá Moraes
Por coincidência ou destino, a dupla Claudinho & Buchecha estava no auge do sucesso quando gravou o disco “Vamos Dançar”, em 2002, que trazia a canção “Fico Assim Sem Você”, de Abdullah e Cacá Moraes. Tristemente, os versos do funk melody se tornaram proféticos quando Claudinho morreu em um acidente de carro, em julho daquele mesmo ano. A música dizia “Amor sem beijinho/ Buchecha sem Claudinho/ Sou eu assim sem você”. Em 2004, Adriana Calcanhotto a repaginou para seu projeto infantil, em que vestia a persona de Adriana Partimpim, e amplificou o sucesso da canção. No mesmo ano, a cantora Roberta Tiepo gravou uma nova versão, para o disco “Alegria, Diversão e Festa”.

“Três” (tango, 2006) – Marina Lima e Antonio Cícero
“O instinto e a intuição são importantes, é matéria-prima. Mas é necessário aprimorar, burilar, inserir critérios artísticos”, teoriza Marina Lima. No disco “Clímax”, de 2011, ela se reuniu com Adriana Calcanhotto, parceira de “Não Me Venha Mais Com o Amor”, em virtude de “afinidades e vontade de repetir a dose”. A gaúcha regravou de Marina a canção “Três” no disco Maré, que foi originalmente lançada em 2006, no álbum “Lá nos Primórdios”. A canção é uma parceria de Marina com o irmão Antonio Cícero, e parte da premissa de um tango dividido em três partes, em que a história se desenrola lentamente. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Stendhal estão entre os autores favoritos de Marina Lima, o que justifica a preferência pela concisão.

“Back to Black” (soul, 2007) – Amy Winehouse
Janis Joplin cantava blues. Cássia Eller ia do samba à MPB. Amy Winehouse priorizava o R&B. Não importa. Todas elas eram roqueiras, na acepção da palavra e, tragicamente, investiram tanto na tríade “sexo, drogas e rock’n’roll” que acabaram morrendo em função dela. Amy foi herdeira dileta desse estilo que consagrou Janis Joplin, Cássia Eller e a irreverente Angela Ro Ro, que conseguiu escapar da morte na juventude, embora tenha passado muito perto dela, ao se reinventar e conservar o humor ferino a despeito de ter colocado um fim na relação com o álcool. O que confere a essas cantoras a aura de “roqueiras” – independentemente do gênero escolhido para interpretar –, é a atitude, ingrediente indispensável na combustão que propõe o rock, nascido para contestar a moral dos caretas e desafinar o coro dos contentes. Em 2014, Adriana Calcanhotto se atreveu a regravar “Back to Black”, grande hit de Amy.

“Definição da Moça” (MPB, 2009) – Adriana Calcanhotto e Ferreira Gullar
Adriana Calcanhotto e Ferreira Gullar iniciaram a parceria com as canções infantis para o espetáculo “Adriana Partimpim: o Show”, quando compuseram “Dono do Pedaço”, “Gato Pensa?”, “O Gato e a Pulga” e “O Ron-Ron do Gatinho”. Na continuação do projeto, Adriana deu voz a “O Trenzinho do Caipira”, histórica parceria de Gullar com Villa-Lobos. Já em 2008, no disco “Maré”, ela concedeu sua versão para “Onde Andarás”, o bolero lançado por Caetano Veloso em 1968. Até que, em 2009, eles compuseram “Definição da Moça”, de conotação erótica, lançada pela cantora Simone no álbum “Na Veia”. Simone voltou à canção no disco “Em Boa Companhia”, que também rendeu um registro audiovisual, em 2010. “Como defini-la/ Quando está desnuda…”.

“Tua” (MPB, 2009) – Adriana Calcanhotto
Marcam presença no disco “Maré”, de 2019, as músicas “Era Pra Ser” e “Tua”, obras de Adriana Calcanhotto lançadas por Maria Bethânia. “Sempre ouvi canções de amor no rádio, e elas se tornaram referência para mim”, admite a artista, que segue prezando pelo minimalismo em suas composições. “É um gosto pessoal, eu não quero o enfeite, mas a clareza. Gosto de coisas simples, não fáceis”, conclui. “Tua” deu título ao disco de Bethânia de 2009, que também trazia no repertório músicas de Roque Ferreira, Chico César, Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, entre outros, todas canções pautadas pelo amor.

“Pode Se Remoer” (samba, 2011) – Adriana Calcanhotto
Adriana Calcanhotto, embora discreta, nunca dispensou uma mordaz ironia. Também sempre gostou de balançar as estruturas e suspender os padrões. No disco “Micróbio do Samba”, de 2011, a intenção era dar nova cara ao gênero, e, por que não, colocar a mulher no papel desempenhado, historicamente, pelo homem. Por isso na canção “pode se remoer”, é o homem quem espera pela mulher em vão, já que ela não volta, encontrou alguém que “só quer lhe beijar”. Além de um elogio à liberdade feminina, ao prazer e ao desprendimento, carrega ainda uma pitada de crítica aos relacionamentos modernos, e como eles têm se modificado, principalmente, pela postura dessa nova mulher.

“Vai Saber?” (samba, 2011) – Adriana Calcanhotto
O mote é samba. Mas o sotaque é de Calcanhotto. Em álbum recheado de dedicatórias, Adriana não presta homenagem. Isso porque recusa a nostalgia para apresentar salutares desvios nos quais ambienta suas composições, com coloquial destreza para o inusitado. Um dos que recebe menção honrosa na contracapa do disco é Jards Macalé, outro iconoclasta da canção brasileira. Aliado a ele vem Lupicínio Rodrigues, chamado tão intimamente de “lupi” que merece registro a maneira descompromissada com que Adriana se enverga do “micróbio do samba” dito pelo inventor da dor-de-cotovelo para dar nome à 12ª obra de sua carreira fonográfica (exceção à coletânea “Essencial” lançada em 2010). Outra canção com título questionador “vai saber?”, lançada e oferecida para Mart’nália, marca o ponto do disco em que o samba se esgueira com mais focinho tradicional. A se reparar o fato de Adriana tocar cuíca nessa faixa e caixa de fósforos na seguinte, “vem ver”.

“Os Ilhéus” (MPB, 2012) – Zé Miguel Wisnik e Antonio Cicero
Não é demais imaginar que muitos fãs de Adriana Calcanhotto, 53, gostariam de ter nascido na secular “Terra do Sol Nascente”. Isso porque a edição japonesa do álbum “Margem” recebeu um bônus luxuoso. Uma versão da gaúcha para “Futuros Amantes”, clássico de Chico Buarque, foi incluída no CD. A grande novidade do roteiro busca dialogar com o âmago do disco.

“Acho que ‘Futuros Amantes’ é meio irmã do poema do Antonio Cícero, musicado pelo Zé Miguel Wisnik”, observa a cantora. Adriana se refere a “Os Ilhéus”, uma das nove faixas inéditas de “Margem”. Com melodia morosa e letra intrincada, a primeira estrofe da canção afirma: “Uma onda pode vir do céu/ Imponderável como as nuvens/ E cair no dia feito um véu”.

“É a ideia das civilizações, que vão se empilhando umas sobre as outras, e acabam no fundo do mar, como a cidade submersa do Rio. Então, os escafandristas vêm explorar a sua casa e têm as mesmas dúvidas que temos agora: quem somos, da onde viemos e para onde vamos?”, sustenta a intérprete, sem disfarçar o entusiasmo com tais questões filosóficas.

“Dessa Vez” (balada, 2019) – Adriana Calcanhotto
No espetáculo “A Mulher do Pau Brasil”, Adriana Calcanhotto apresentou, em primeira mão, “Dessa Vez”, uma das nove faixas inéditas de “Margem”. A letra parte de uma questão formal para chegar a um típico desenlace amoroso. “Aos poucos, fui me dando conta do significado desta minha relação com o mar, em suas várias frequências: física, literária, metafísica, metafórica. Os discos me levaram a investigar isso”, afiança a artista, que cita Herman Melville (1819-1891), Homero (928 a.C.-898 a.C.) e Luis de Camões (1524-1580) como referências. E a música também ganhou um videoclipe protagonizado por ela.

“O Terno e Perigoso Rosto do Amor” (blues, 2019) – Adriana Calcanhotto, Jacques Prévert e Silviano Santiago
Pela primeira vez na vida, Fafá de Belém registrou, com o disco “Humana”, de 2019, uma música de Fátima Guedes. “O Resto do Resto” foi revelada nas redes sociais da autora em 2017, por meio de um vídeo caseiro. Joyce Moreno e Adriana Calcanhotto se somam ao time de compositoras do disco. Apesar disso, esse passou longe de ser um critério para Fafá. “Gosto de boas canções, se foram compostas por mulheres, homens ou pessoas, não importa”, assegura. De Adriana Calcanhotto, surge na voz de Fafá o blues “O Terno e Perigoso Rosto do Amor”, canção feita a partir de poema de Jacques Prévert em versão em português de Silviano Santiago.

“2 de Junho” (MPB, 2020) – Adriana Calcanhotto
A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou: “O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim…”. Tergiversações à parte, a voz ainda encorpada de Maria Bethânia, aos 74 anos, segue vibrando como um metal que é despertado por um leve toque: “País negro e racista”. O que vem depois é bem pior, mais aterrador, pois nos lembra que essa inscrição, gravada com ferro em brasa no corpo dos escravos, representa a morte de uma criança negra, que Adriana Calcanhotto, autora da discursiva letra, compara a Ícaro, aquele do mito grego que morreu ao se aproximar do Sol.

“Corre o Munda” (MPB, 2020) – Adriana Calcanhotto
Com uma boa e orgânica fusão entre funk e MPB, “Ninguém na Rua” abre os trabalhos de “Só”, disco de nove canções composto por Adriana Calcanhotto no tempo recorde de onze dias, durante a quarentena imposta aos brasileiros por conta da pandemia de Covid-19. “Corre o Munda”, que traz a explicação de que os romanos chamavam o rio que banha Coimbra de munda, reflete a nostalgia de Adriana da cidade portuguesa em que ela escolheu morar, e para a qual a pandemia a impediu de regressar. Com uma poesia mais elaborada, a espontaneidade desse sentimento parece contribuir para a beleza da música, cujo fulgor fica nítido frente a um cenário de mormaço.

“A Flor Encarnada” (MPB, 2021) – Adriana Calcanhotto
O batismo da turnê e do álbum “Claros Breus”, de Maria Bethânia, teve como ponto de partida “A Flor Encarnada”, inédita de Adriana Calcanhotto. A gaúcha telefonou a Bethânia para falar sobre a canção, ao que a baiana perguntou se “era uma coisa muito viva”. Adriana respondeu: “Pelo contrário”. Bethânia concorda que a música é “de uma desolação total”, o que não a impediu de “ficar completamente apaixonada” e pedir autorização para gravá-la. “O autor tem sempre direito de lançar primeiro”, sustenta. Os versos “eu e meus breus” a fascinaram e se acoplaram ao desejo de “cantar o amor de uma maneira quente e viva”, sublinha.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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