*por Raphael Vidigal Aroeira
“Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí…
Levando um violão debaixo do braço” Zé Kéti & Hortênsio Rocha
José Flores de Jesus ficou conhecido primeiro como Zé Quietinho, porque era uma criança muito introspectiva, e, depois, se transformou em Zé Kéti, o sambista que cantou os morros cariocas com suas mazelas e belezas. Nascido no Rio de Janeiro há um século, no dia 16 de setembro de 1921, ele morreu na mesma cidade, no dia 14 de novembro de 1999, aos 78 anos, não sem antes legar verdadeiros clássicos para a canção popular, do porte de “A Voz do Morro”, “Diz Que Fui Por Aí”, “Acender as Velas” e “Opinião”. Ele também se aventurou pela folia carnavalesca, com a marcha “Máscara Negra”, eternizada no canto emocionado de Dalva de Oliveira. Zé Kéti foi figura fundamental do espetáculo “Opinião”, ao lado de João do Vale e Nara Leão, e ficou pra história.
Abertura. Subindo as ruas íngremes de Bento Ribeiro, José Flores de Jesus lembra-se da sua adolescência, quando morava no subúrbio de Piedade, e de sua infância, que passara em Inhaúma, redutos conhecidos da malandragem do Rio de Janeiro. Ao passar pelas ruas do atual bairro, José Flores enxerga velas acesas, máscaras negras e pede licença para cantar o seu amor. Quando ele finalmente chega à roda de samba para a qual caminha, nem precisa se apresentar, todos já sabem que aquele sujeito de chapéu de aba pequena na cabeça, caixinha de fósforos na mão e andar sambado é o Zé Quietinho filho da dona Leonor, ou o Zé Kéti da Portela que hoje todos conhecem: a voz do morro, da opinião, da prece de esperança e do poema de botequim.
“Leviana” (samba, 1954) – Zé Kéti
Nascido no Rio de Janeiro, José Bispo Clementino dos Santos ganhou o apelido de uma fruta nativa da Índia, de coloração escura. Como Jamelão, ele se consagrou na música brasileira e viveu até os 95 anos. A voz poderosa se destacaria em sambas da Estação Primeira de Mangueira, e também com um repertório de primeira qualidade fornecido por bambas como Zé Kéti, Ary Barroso e Lupicínio Rodrigues. Jamelão manejou a força de sua voz entre o romantismo magoado da dor de cotovelo e a agitação dos sambas de avenida. Em 1954, ele provou essa vitalidade rítmica e interpretativa com a música “Leviana”, de um ainda pouco conhecido Zé Kéti, que conhecia seu primeiro hit.
“A Voz do Morro” (samba, 1955) – Zé Kéti
Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Quietinho tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: “A Voz do Morro”, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela.
Gravada por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme “Rio 40 Graus”, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e rendeu ao menino Zé Quieto a sua primeira oportunidade como ator. Na pele de Neguinho, ele dialogava com o malandro interpretado por Jece Valadão. Estava fazendo nada mais do que interpretar a si mesmo, e dar voz a seu povo sofrido com seu balanço de cronista esperto. Zé Kéti era o rei dos terreiros.
“Diz Que Fui Por Aí” (samba, 1964) – Zé Kéti e Hortênsio Rocha
Depois de algumas voltas, em 1963, a música de Zé Kéti tornou-se conjunto musical. A Voz do Morro contava em sua formação com bambas do peso de Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Nelson Sargento, Oscar Bigode, José da Cruz e Paulo César Batista de Faria, a quem Zé Kéti rebatizou de Paulinho da Viola. No mesmo ano, ele recebeu o convite para ser diretor artístico do Zicartola, com dona Zica na cozinha e Cartola no violão. Trazidos por Zé Kéti, a casa recebia artistas e atraía intelectuais da zona sul do Rio de Janeiro.
Até que um dia chegou por lá Carlinhos Lyra, diretor da UNE e um dos integrantes do que viria a se chamar de bossa nova. Seria esse Carlinhos que apresentaria a Zé Kéti uma moça chamada Nara Leão, que era cantora e que gravaria em seu LP de estreia, com acompanhamento do violonista Geraldo Vespar, o samba “Diz Que Fui Por Aí”, no ano de 1964. A ditadura se instalava no Brasil enquanto o morro se unia à bossa nova da zona sul através da música e da boemia. Anos depois, a canção seria sucesso também nas vozes de Jair Rodrigues, Elis Regina e MPB-4, dentre vários outros que a regravaram.
“Opinião” (samba, 1964) – Zé Kéti
A união entre Zé Kéti e Nara Leão, que começara com a gravação daquela música sobre as andanças de um boêmio, se estenderia até os palcos de teatro sob o nome de “Opinião”. A música composta por Zé Kéti sobre o processo de remoção de favelas que era executado pelo governo da Guanabara, seria o mote perfeito para que, no final de 1964, os artistas pudessem dar o seu primeiro grito de liberdade silenciada. E foi também no ambiente do Zicartola, onde segundo Zé Kéti os compositores podiam cantar à vontade, que surgiu a ideia do musical.
Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e contando com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do seu povo Zé Kéti, que interpretava mais uma vez o malandro dos morros cariocas, e atuava ainda ao lado de Nara Leão, no papel da mocinha da zona sul, e de João do Vale, representado a força nordestina.
O espetáculo encenado no Teatro de Arena, em Copacabana, e que depois daria nome a um famoso grupo de teatro de São Paulo, ficou mais de um ano em cartaz. Como já era comum na carreira de Zé Kéti, sua composição extrapolava as raízes da música, e tornava-se, além de um emblemático espetáculo teatral, o nome de um jornal, de um teatro, um grupo de teatro e do segundo LP de Nara Leão.
Era, inclusive, em uma de suas falas no show “Opinião”, que Zé Kéti explicava que adotara o K em seu nome por ser a inicial de estadistas da época, a exemplo de Kennedy e Kubitscheck, simbolizando mais uma vez o forte caráter político da opinião. Apanhando ou não, Zé Kéti era um sambista livre, que dialogava com todas as formas de música que surgiam no país da censura.
“Mascarada” (samba, 1964) – Zé Kéti e Elton Medeiros
Com o ídolo Cartola, Elton Medeiros compôs uma música de indistinta beleza, a tristíssima “Peito Vazio”: “Nada consigo fazer/ Quando a saudade aperta/ Foge-me a inspiração/ Sinto a alma deserta”. Na mesma toada, fez a música para “Mascarada”, cuja letra de Zé Kéti atenuava o refinado desalento melódico: “O poeta era eu/ Cujas rimas eram compostas/ Na esperança de que/ Tirasses essa máscara/ Que sempre me fez mal”. “Mascarada” foi lançada simultaneamente por dois grupos vocais, um feminino e outro masculino. O Quarteto em Cy e o MPB-4, em 1964. Posteriormente, ganhou as vozes dos próprios compositores e também de Emílio Santiago, Zeca Pagodinho e outros.
“Acender as Velas” (samba, 1965) – Zé Kéti
Depois de desfrutar do enorme sucesso de “Opinião”, Zé Kéti voltava-se novamente para o sofrimento do seu povo, e acendia velas contra o descaso que atingia crianças que morriam diariamente na sua favela. A amiga Nara Leão seria quem a gravaria primeiro, seguida depois com o mesmo sucesso por Elis Regina e Jair Rodrigues. No ano em que denunciava a tristeza que assaltava os morros, Zé Kéti era premiado com o troféu Euterpe, como melhor compositor carioca, e dividiria com Nelson Cavaquinho o posto de melhor compositor brasileiro, recebendo o troféu “O Guarany”. Também neste ano, o conjunto que ele idealizara como A Voz do Morro gravava o seu primeiro LP, através da Musidisc. Era o compositor sendo festejado e realizando vários sonhos no ano em que cantava o lado mais triste da favela, que via seu povo morrer sem querer morrer, iluminado apenas pela luz das velas.
“Malvadeza Durão” (samba, 1965) – Zé Kéti
No bairro carioca de São Francisco Xavier, onde morava próximo ao morro de Mangueira, Elizeth Cardoso foi descoberta por Jacob do Bandolim (1918-1969), e devolveu a honra sendo madrinha musical de João Nogueira, que a agradeceu no samba “Wilson, Geraldo e Noel”: “Peguei o meu samba e fui logo mostrando/ À meiga Elizeth, ela disse sorrindo/ Nego tem topete/ Já pode sambar lá em Vila Isabel”. Um ano antes da morte do padrinho, em 1968, a cantora realizaria com Jacob, seu conjunto Época de Choro e o Zimbo Trio, o histórico espetáculo idealizado por Hermínio Bello de Carvalho no Teatro João Caetano, que renderia dois álbuns ao vivo.
Ali, ela já estava perfeitamente entrosada com Hermínio, que produzira, em 1965, outro show marcante: “Rosa de Ouro”, cujo repertório seria eternizado no disco “Elizete Sobe o Morro”, com músicas dos bambas Nelson Cavaquinho (1911-1986), Zé Kéti (1921-1999), Elton Medeiros (1930-2019), Candeia (1935-1978), Nelson Sargento e o caçula, mas muito talentoso, Paulinho da Viola. Da lavra de Zé Kéti, ela teve a primazia de lançar “Malvadeza Durão”, samba que descreve a morte de um malandro no morro carioca, sempre com a lente da crítica social própria do compositor.
“Queixa” (samba, 1965) – Zé Kéti, Sidney Miller e Paulo Thiago
Comparado a Chico Buarque no início da carreira, o carioca Sidney Miller é, nos dias atuais, um nome bem menos reconhecido do que seu conterrâneo e contemporâneo. Mas o motivo para os elogios eram justos, tanto que, em 1967, a cantora Nara Leão selecionou quatro canções de Chico e cinco de Miller para compor o álbum “Vento de Maio”. A timidez do compositor falecido em 1980, com apenas 35 anos, vítima de um infarto é hoje apenas lembrança para os mais próximos. Já a acuidade das letras embebidas em poesia permanece ao dispor de todos. O primeiro registro importante como compositor foi no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior (SP), obtendo o 4º lugar com a música “Queixa”, composta em parceria com Paulo Thiago e Zé Kéti, interpretada por Ciro Monteiro. A música foi regravada por Zé Kéti, já em 1967.
“Samba Original” (samba, 1966) – Zé Kéti e Elton Medeiros
Elton Medeiros (1930-2019) tinha fama de difícil, genioso. Suas melodias também não eram das mais fáceis. Apesar disso, quando tocadas, espalhavam uma beleza melancólica, que dava a impressão de simplicidade, resultado da perfeita harmonização entre suas partes. Como ninguém, ele dominava as capacidades percussivas de uma caixinha de fósforos, instrumento usado por bambas como o conterrâneo Zé Kéti (1921-1999) e o paulista Adoniran Barbosa (1910-1982). Ligado a blocos carnavalescos e escolas de samba desde a infância, ele se definia como “fazedor de música”.
Compôs samba, frevo, valsa e até bossa nova. A base de sua formação, no entanto, perceptível em suas sofisticadas criações melódicas, era o choro. Provavelmente em nenhum outro de sua geração a presença do mais antigo gênero do país fosse tão marcante. Com a deliciosa “Samba Original”, feita com Zé Kéti, o incorrigível Elton Medeiros utilizou o deboche para expressar sua particularidade, numa melodia contagiante: “Meu samba é um samba diferente/ Pois de fato, minha gente, ele é muito original/ (…) Não fala, meus amigos, de ninguém/ Simplificando a história/ Não fala de mim também”. Lançada em 1966, no LP “Samba na Madrugada”, de Elton e Paulinho da Viola, foi regravada por Pedro Miranda, em 2016.
“Máscara Negra” (marcha de carnaval, 1967) – Zé Kéti e Pereira Matos
“Máscara Negra” foi o grande sucesso do Carnaval de 1967. A marcha composta por Zé Kéti se tornaria uma das grandes músicas cantadas por Dalva de Oliveira, e um dos últimos êxitos populares de ambos. Vencedora do Carnaval daquele ano, a canção contava a antiga história dos laços amorosos entre Pierrô, Colombina e Arlequim. A diferença é que, nos versos de Zé Kéti, a história ganhava contornos líricos e suaves, aproveitando-se do grande talento do compositor. Além disso, Zé Kéti corrigia um erro histórico e dava nova chance a Pierrô, fazendo com que Arlequim fosse o rejeitado dessa vez. “Máscara Negra” é uma das mais belas músicas de Carnaval já escritas, provando toda a essência poética do trabalho de Zé Kéti, que jamais mascarou os problemas de seu povo, mas também não deixou de iluminá-los com seus sambas e suas atuações.
“Avenida Iluminada” (samba, 1968) – Newton Teixeira e Brasinha
É da condição dos nossos compositores tornarem-se menos conhecidos que suas obras e mesmo os intérpretes delas. Também permanece na penumbra o motivo pelo qual Newton Teixeira supostamente fugia da polícia quando se encontrou com Sílvio Caldas numa noite de seresta. O bairro era a Vila Isabel, no Rio de Janeiro, reduto da boemia carioca que não podia deixar de contar com Noel Rosa, seu poeta, e outros bambas menos notórios, mas fundamentais na consolidação do gênero mais arraigado à miscigenada raiz musical brasileira, o samba.
Newton se arriscou a soltar a voz, mas uma cirurgia na garganta, em 1943, lhe obrigou a abandonar o ofício. O que não engessou a trajetória, pois era também hábil violonista, acompanhando os grandes cantores da Era de Ouro do Rádio. Em 1968, Zé Kéti se incumbiu de lançar o samba “Avenida Iluminada”, de Newton Teixeira e Brasinha, e assumiu o papel de intérprete sem negar fogo. A música também recebeu regravações de Jair Rodrigues e Cauby Peixoto, confirmando seu sucesso para além do momento passageiro.
“Samba Quente” (samba, 1999) – Zé Kéti e Adoniran Barbosa
Marco Antônio Vilalba, apesar do apelido popular, não se encontra em qualquer banca. Um dos ditos que profere talvez ajude a resolver o enigma. “Toda arte tem que ser experimental”, diz. Passoca, compositor, cantor e violeiro, tem um trabalho associado tanto à música caipira quanto à vanguarda paulista. Além de audaz, Passoca é, também, um estudioso da música.
Foi esse tipo de atividade que o permitiu lançar trabalhos como “Breve História da Música Caipira”, de 1997, acompanhado de livro, e se embrenhar nas composições guardadas no baú do autor de “Trem das Onze” e “Saudosa Maloca” para lançar, no ano 2000, “Passoca Canta Inéditos de Adoniran Barbosa”. Neste CD, as 14 faixas foram geridas da mesma forma. Eram letras deixadas pelo homenageado que receberam melodias de nomes como Tito Madi, Zé Keti, Paulo Bellinati e do próprio Passoca, entre vários outros. “Samba Quente”, de Adoniran e Zé Kéti, faz jus ao título, e foi lançada um ano após a morte de Zé Kéti.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.