Relembre sucessos de Wally Salomão, gravado de Maria Bethânia a Cazuza

*por Raphael Vidigal Aroeira

“sou um cara sem saída
mas não se iluda
com esta minha vida” Wally Salomão

Wally Salomão nasceu em Jequié, na Bahia, no dia 3 de setembro de 1943, e morreu no dia 5 de maio de 2003, aos 59 anos, vítima de um tumor no intestino. Poeta, compositor e agitador cultural sempre ligado às vanguardas, Wally foi uma figura fundamental da chamada contracultura brasileira, e atuou em diversas pontas, como a poesia marginal e a Tropicália. Em 1972, começou a fazer barulho com o livro “Me Segura Que Eu Vou Dar Um Troço”, com a sua poesia expansiva e indomável. Ele também atuou no cinema, ao interpretar o poeta conhecido como “Boca do Inferno” no filme “Gregório de Mattos”, de 2002. Na música, dirigiu shows antológicos de Gal Costa e Cássia Eller, e foi cantado por Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto em parcerias com Caetano Veloso e Jards Macalé, com quem criou a linha de morbeza romântica na MPB.

“Vapor Barato” (canção, 1971) – Jards Macalé e Wally Salomão
Aquela geração ameaçada e violentada pela ditadura resolveu não se dobrar a tiranias e truculência dos militares e encontrou na experimentação de drogas proibidas e alucinógenas e na prática do sexo livre e desprovido do sentimento de posse, formas de resistir aos dramáticos tempos de chumbo. É dessa vivência que fala a música de Jards Macalé e Wally Salomão, dois dos artistas mais inventivos e originais do Brasil, em “Vapor Barato”, cujo título é uma alusão à maconha. A desilusão com o momento também é refletida nos primeiros versos, com referência direta ao “casaco de general cheio de anéis”. Lançada no histórico show “FA-TAL – Gal a Todo Vapor”, em 1971, foi regravada pelo grupo O Rappa em ritmo de reggae e reforçou seu poder de hit.

“Mal Secreto” (rock, 1971) – Jards Macalé e Wally Salomão
Ao se incumbir de produzir e dirigir artisticamente o novo show de Gal Costa, o poeta e agitador cultural Wally Salomão já tinha em mente que aquele deveria ser um espetáculo emblemático, que colocaria Gal Costa definitivamente na linha de frente da Tropicália, enquanto os amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam exilados pela ditadura militar brasileira em Londres. Foi nesse contexto e com esse sentimento que nasceu “FA-TAL – Gal a Todo Vapor”, em 1971, um dos discos mais cultuados da carreira de Gal Costa. No repertório, músicas que Wally foi buscar no Morro de São Carlos, como “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, batizada com nome de travesti que Wally conhecia, e o rock “Mal Secreto”, parceria com Jards Macalé, que recebeu uma regravação com Frejat.

“Anjo Exterminado” (MPB, 1972) – Jards Macalé e Wally Salomão
Aos moldes de um espetáculo de teatro, o álbum “Drama – Anjo Exterminado” foi concebido por Maria Bethânia com produção de Caetano Veloso. A veia dramática da cantora havia sido estimulada pelo diretor Fauzi Arap. A canção que aparece no título do disco foi composta por Wally Salomão com Jards Macalé e remete ao icônico e perturbador filme do cineasta surrealista Luis Buñuel, “O Anjo Exterminador”, lançado uma década antes, em 1926. Após receber a versão de Bethânia, a música foi gravada por Jards Macalé no álbum “Aprender a Nadar”, de 1974, e seguiu recebendo regravações. Miúcha a registrou em 1989, e Zezé Motta voltou a ela em 2011. Adriana Calcanhotto e Jards Macalé a interpretaram juntos no ano 2005, em disco para saudar Wally.

“Dona de Castelo” (samba-canção, 1974) – Jards Macalé e Wally Salomão
“A música romântica brasileira sempre foi over. Orestes Barbosa escreveu: ‘a porta do barraco era sem trinco e a lua furando nosso zinco parecia um estranho festival’. Wally queria uma coisa que fosse o over do over. Que exacerbasse essa dor da música brasileira”, conta Jards Macalé. Esse conceito guiou a linha de morbeza romântica proposta por Wally Salomão, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. O disco “Aprender a Nadar”, lançado por Jards Macalé em 1974, foi concebido sob essa ótica. De Orestes Barbosa e Valzinho, ele gravou “Imagens”, e, com Wally, compôs “Dona de Castelo”, belo exemplar. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto, Fafá de Belém, Leila Pinheiro.

“Negra Melodia” (reggae, 1977) – Jards Macalé e Wally Salomão
Jards Macalé e Wally Salomão escreveram “Negra Melodia” pensando em Luiz Melodia, amigo de ambos. A música é uma exaltação bem ao estilo da dupla, e também ao feitio do homenageado. Prepondera a mistura de influências e a miscigenação de linguagens que formou a própria sociedade brasileira. Não por acaso, o idioma português se mescla ao inglês em determinadas passagens da letra. Lançada por Jards Macalé em 1977, no álbum “Contrastes”, ela só recebeu a voz de Luiz Melodia em 2005, em dueto com Macalé. Antes, foi regravada por Itamar Assumpção, Margareth Menezes e Lenine, até dar nome ao disco lançado por Zezé Motta em 2011, dedicado ao repertório de Luiz Melodia e Jards Macalé. O ritmo de reggae se abre a fusões.

“A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa” (MPB, 1978) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Com título de música de Djavan, o disco “Álibi”, lançado por Maria Bethânia em 1978, foi o primeiro de uma cantora brasileira a ultrapassar a marca de um milhão de cópias, consolidando o ápice artístico e popular da irmã de Caetano Veloso, que despontou para o estrelato após substituir Nara Leão no espetáculo “Opinião” e imprimir sua interpretação rascante a “Carcará”, de João do Vale. No repertório de “Álibi”, uma coleção de sucessos, do porte de “O Meu Amor”, que a anfitriã dividia com Alcione, “Ronda”, “Explode Coração”, “Negue”, “Sonho Meu”, esta com Gal Costa, “Cálice” e “Interior”, da amiga Rosinha de Valença. Também comparecia “A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa”, parceria de Caetano e Wally Salomão. A faixa ganhou regravação de Alcione.

“Mel” (MPB, 1979) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Depois de gravar “Mel”, em 1979, Maria Bethânia passou a ser conhecida como a “Abelha-Rainha da MPB”, dado o sucesso da canção, que traz, logo no primeiro verso, essa denominação. A história da música que deu nome ao LP de Bethânia é curiosa. Encomendada a Wally pela cantora, que já havia gravado, de sua lavra, “Anjo Exterminado” e “A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa”, ela enfrentou percalços. Wally já pesquisava o tema, mas empacou no meio e Caetano, responsável pela melodia, aconselhou Bethânia a desistir. Pelo contrário, ela afirmou que queria Wally “mil vezes mais tenso”. Foi esse o raio que impulsionou Wally a finalizar a letra de “Mel”, que cita espécies de abelha. “Ó abelha rainha faz de mim/ Um instrumento de teu prazer/ E de tua glória…”.

“Talismã” (MPB, 1980) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Novamente, uma música de Wally Salomão com Caetano Veloso deu título ao disco de Maria Bethânia. “Talismã” foi lançado em 1980, e se tornou o terceiro disco consecutivo da cantora baiana a superar a marca de um milhão de cópias vendidas, algo, até então, inédito na música popular brasileira. A música combina sensualidade com ímpeto de vida, sob a malha poética própria de Wally Salomão, criado sob a égide da poesia marginal, mas com uma formação pra lá de erudita e multidisciplinar. Tropicalista por natureza, como Caetano, ele consegue estabelecer conexões entre som e palavra, sem descambar para o simplório. “No coração do meu corpo um porta-joias existe/ Dentro dele um talismã sem par/ Que anula o mesquinho, o feio e o triste”, enuncia a bela letra.

“Assaltaram a Gramática” (pop, 1984) – Lulu Santos e Wally Salomão
A partir da década de 1980, Wally Salomão passou a se interessar pelo emergente rock nacional, e a travar contato com outros parceiros musicais. Frequentemente, ele era visto em noitadas no Baixo Leblon, ao lado de nomes como Cazuza, Antonio Cicero e Luiz Melodia. Essa aproximação o levou até Lulu Santos, outro nome da nova cena pop da música brasileira, dono de hits de peso como “Tempos Modernos”, “Como Uma Onda”, “Apenas Mais Uma de Amor”, entre outras. Em 1984, os dois se juntaram para compor a divertida “Assaltaram a Gramática”, lançada pelo grupo Os Paralamas do Sucesso no disco “O Passo do Lui”, o segundo da trupe. A letra se vale de uma habilidosa metalinguagem pra tecer uma sutil crítica social, com a artimanha dos autores.

“Balada de Um Vagabundo” (balada, 1985) – Roberto Frejat e Wally Salomão
Wally Salomão faz uma radiografia do comportamento errático e contagiante de Cazuza na letra de “Balada de Um Vagabundo”. Com melodia de Roberto Frejat, antigo companheiro de Barão Vermelho e seu principal parceiro, a música foi lançada no primeiro disco-solo de Cazuza, “Exagerado”. Letrista acima da média e um dos mais talentosos artistas de sua geração, Cazuza tomou para si a letra que diz: “Eu sou o beijo da boca do luxo na boca do lixo”, verso que ele adorava. Cazuza e Wally se tornaram companheiros de balada nas agitadas noites cariocas da década de 1980, o que justifica a precisão com que um poeta registra o outro. “Eis o Sol, eis o Sol/ Apelidado de Astro-Rei/ Eis que achei o grande culpado/ Desse meu viver destrambelhado”, canta Cazuza.

“Holofotes” (MPB, 1990) – João Bosco, Antonio Cicero e Wally Salomão
Ao dar um tempo na parceria com Aldir Blanc, o bom-mineiro João Bosco não deixou barato em termos de poesia, e recrutou Wally Salomão e Antonio Cicero para auxiliarem, com os textos impecáveis que detinham, as suas melodias. Esse trio de ouro da música brasileira compôs, em 1990, a música “Holofotes”, lançada por Gal Costa no álbum “Plural”. O próprio João Bosco registrou a sua versão um ano depois, no disco “Zona de Fronteira”. Valéria Oliveira também a regravou, em 2004. Ela voltou ao repertório de João Bosco em “Mano Que Zuera”, álbum lançado em 2017, renovando o seu poder de encantamento. “Ar, pedra, carvão e ferro/ Eu lhe ofereço/ Essas coisas que enumero/ Quando fantasio/ É quando sou mais sincero”, dizem os expressivos versos dos poetas.

“Cobra Coral” (MPB, 2000) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Extremamente profícua, a parceria entre os baianos Caetano Veloso e Wally Salomão deu à música brasileira canções do porte de “Cobra Coral”, gravada no álbum “Noites do Norte” com as presenças de Lulu Santos e Zélia Duncan. “Para de ondular, agora, cobra coral/ A fim de que eu copie as cores com que te adornas”, introduzem os belos versos da poesia de Wally. As cores tripartidas em vermelho, branco e preto foi, justamente, o que levou o Santa Cruz a adotar a cobra coral como mascote, pela igualdade com a vestimenta tricolor do clube. A música também inspirou o batismo do grupo mineiro Cobra Coral, formado por Flávio Henrique, Mariana Nunes, Pedro Morais e Kadu Vianna. Como não poderia deixar de ser, o grupo gravou a sua versão da faixa.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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